Com destino incerto, requerentes de asilo lotam jardim em Lisboa
"Só quero um trabalho e uma vida melhor”. Quem diz é um cidadão segenalês de 38 anos, um das dezenas de estrangeiros que atravessaram terra e mar em busca de um sonho na Europa e, agora, estão a sobreviver em tendas no largo e passeio da Igreja dos Anjos, em Arroios. Na longa viagem, viu seis pessoas morrerem afogadas durante a travessia numa piroga, embarcação improvisada, comum em África. Depois de percorrer seis países para chegar a Lisboa, o senegalês está há dois meses a dormir numa pequena tenda com mais duas pessoas, protegidos por um cobertor encontrado no lixo partilhado por todos. O futuro do senegalês e dos demais é incerto: nem as autoridades de Portugal ainda sabem ao certo o que fazer.
A Câmara Municipal de Lisboa começou nesta semana uma intervenção com o objetivo de “resolver a crescente concentração de pessoas em situação de sem abrigo” no local. Há anos que o sítio, no coração do bairro, é utilizado como refúgio para cidadãos sem condições de terem um teto. A diferença é que, nos últimos meses, o número veio a aumentar, especialmente com requerentes de asilo de países como Senegal, Guiné, Gâmbia e Congo. A escolha do local, segundo a Polícia de Segurança Pública (PSP), é por ser perto de um balcão de atendimento da Agência para as Migrações, Integração e Asilo(AIMA).
A Câmara Municipal de Lisboa e a AIMA fazem um jogo de “empurra-empurra” sobre as responsabilidades. Sofia Athayde, vereadora dos Direitos Humanos Sociais, afirmou aos jornalistas que a AIMA foi alertada da situação várias vezes nos últimos meses. “Fomos alertando e alertando inúmeras vezes e não podemos continuar a ter esta situação”, disse.
A AIMA respondeu ao DN que “entre as atribuições da AIMA não se encontra a possibilidade de intercetar e identificar pessoas na via pública para verificar a sua situação documental”. O referido órgão não respondeu ao DN sobre a situação documental dos cidadãos, enquanto a PSP afirma a este jornal que, “após fiscalização legal realizada a 11 de abril, foi constatado que os visados se encontravam de momento em situação legal, com processos a decorrer na AIMA”, nomeadamente através da Manifestação de Interesse (MI). Foram identificadas 100 pessoas no local.
Porém,no terreno o DN identificou casos em que é tecnicamente imposível a solicitação da Manifestação de Interesse, uma vez que alguns não possuem passaporte, documento obrigatório para o procedimento. Ao mesmo tempo, outros são elegíveis para o pedido.
Ontem, a advogada Erica Acosta, realizou, com um conjunto de profissionais, um processo para regularização dos moradores. Ao DN, a voluntária relata que efetuou 10 subsmissões de MI. Na próxima semana, através de outro procedimento vai solicitar, adicionalmente, um pedido de regularização por razões humanitárias a todos os cidadãos, entre eles os que não se enquadram para a MI.
Situação social
A intervenção no jardim em Arroios ocorre após reclamação de alguns moradores da zona, que sentem-se inseguros. Ao DN, a PSP afirma que “por vezes gera o alarme social entre os moradores da área”, por “conflitos esporádicos entre os sem-abrigo” e que a problemática é mais “a nível social, em que pessoas encontram-se numa situação de particular fragilidade e de carência, em vertentes tão básicas e primárias, como não ter local onde pernoitar e na própria vertente alimentar”. Há relatos de pessoas que deixaram de ir à igreja por receio de passarem no local.
A intervenção conjunta suscitou mobilização de voluntários e entidades que atuam na defesa dos direitos de imigrantes. O DN notou que a fila de atendimentos com advogadas voluntárias era maior do que na tenda montada pelas autoridades para conferir a documentação. Uma destas voluntárias foi Erica Acosta, já citada nesta reportagem. Sentada nas escadarias da igreja com um portátil no colo, a profissional foi tentando perceber a situação dos que a procuravam. “A AIMA tem, reiteradamente, negado esses pedidos de asilo sem explicação e muitos deles sequerer recebem notificações, porque não há uma morada para envio”, explica a profissional.
Outro problema é que as notificações enviadas são em português. A profissional encontrou três casos em que o pedido de asilo foi aceite, no entanto, os requerentes não sabem português para perceber o documento. “Ou seja, já podem receber apoio da AIMA, mas continuam ali”, explica Acosta. O idioma é um problema também para a entrevista dos requerentes. É o caso de um jovem de 21 anos, que teve o pedido de asilo negado e está a dormir numa tenda no jardim. Natural de Gâmbia, contou que a entrevista, realizada a 1º de fevereiro, ocorreu em inglês, idioma que não possui total domínio.
De acordo com a advogada, é importante que a conversa seja em um idioma em que o requerente possa expressar-se com clareza, uma vez que as informações prestadas são essenciais para análise do pedido. O DN questionou a AIMA sobre a presença de intérpretes para o procedimento, mas não teve resposta.
Responsabilidades repartidas e falhadas
A lei que determina as atribuições da AIMA diz que uma delas é, precisamente, “garantir apoio aos requerentes de proteção internacional até à decisão do pedido”. Ou seja, a AIMA, mesma entidade criada para “prosseguir uma abordagem global na gestão das migrações e asilo, tornando o sistema mais eficiente e mais resistente a futuras pressões migratórias e crises humanitárias”, só possui a responsabilidade de cuidar dos requerentes de proteção internacional até terem uma resposta, positiva ou negativa.
Por outro lado, a mesma legislação determina que é a AIMA quem deve “promover o processo com vista ao seu afastamento coercivo” os cidadãos com ordem de sair do país. A AIMA recusou-se a responder ao DN se há imigrantes no largo da igreja nesta situação. A lei portuguesa prevê que a decisão sobre admissão do pedido de proteção seja comunicada ao requerente no prazo de 48 horas, “com a menção de deve o abandonar o país no prazo de 20 dias, sob pena de expulsão imediata uma vez esgotado esse prazo”.
As estatísticas oficiais mostram que o número de pedidos tem vindo a crescer no país. Em 2022 foram 1.992 pedidos, enquanto no ano passado saltaram para 2.701. Até à data, a AIMA, que facultou ao DN os dados, recebe 1.180 pedidos de proteção internacional, uma média de 393 por mês no primeiro trimestre.
André Costa Jorge, diretor geral do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) de Portugal, avalia que, em termos de moradia, Portugal não possui estrutura física de acolhimento. “É preciso mais respostas porque Portugal está a ser procurado por estas pessoas, respostas que outros países já tem”, explica. A JRS está à espera de autorização para operar um novo centro de acolhimento em Vendas Novas, com capacidade para 100 pessoas. O centro localizado em Lisboa possui 30 camas, mas está sempre com lotação esgotada.
O Bloco de Esquerda, na reunião da Câmara de Lisboa ontem, questionou a gestão de Carlos Moedas sobre a ação em Arroios. “É resultado da ação da CML, que encerrou a resposta do Pavilhão de Campolide” , denunciam.
amanda.lima@globalmediagroup.pt