Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos quer travar venda livre da melatonina
Os portugueses dormem mal e estão a exagerar no consumo de substâncias calmantes que tomam e dão aos seus filhos. Como se não bastasse sermos campeões mundiais no consumo de benzodiazepinas - ocupamos o terceiro lugar do pódio - estamos a passar a dependência de substâncias às crianças, nomeadamente através da melatonina, vendida como um “suplemento alimentar”, que, na verdade, é uma hormona com potencial para interferir e prejudicar o desenvolvimento, alertam médicos ouvidos pelo DN.
A Agência Europeia do Medicamento (AEM) só refere indicação terapêutica para a melatonina em crianças com perturbação do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e autismo, havendo também alguma evidencia para crianças invisuais, com paralisia cerebral ou cefaleia da epilepsia, nas quais são visíveis ganhos na indução do sono. “São estas as únicas situações para as quais o uso da melatonina é indicado e estudado há mais de 20 anos”, disse ao DN Ivone Mirpuri, médica patologista e especialista em modulação hormonal.
Mas não parece ser esse o caminho que uma boa parte dos pediatras, em Portugal, estão a seguir. Questionado pelo DN, o presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, Ricardo Barros Costa, admite que “esta é uma questão que está a dividir a classe médica e para a qual está mais atenta”. Apesar dessa divisão, o responsável disse ao DN que “existe já um consenso no Colégio de Pediatria de que a melatonina não deve ser de venda livre”. Questionado sobre se a Ordem já tinha tomado alguma iniciativa, Ricardo Costa disse que “ainda não, mas já falámos nisso e vamos pedir uma alteração legislativa ao Infarmed, porque se trata de uma hormona”.
Em causa está um produto que ao ser classificado como ‘suplemento alimentar’ pelo fabricante fica sob tutela da Direção-Geral da Agricultura e Veterinária e não do Infarmed, que, ao ser confrontado, refere que não tutela suplementos alimentares, apenas medicamentos e, nestes, “a melatonina não é indicada para crianças”. Já em 2016 o Infarmed tinha emitido um parecer conjunto com a ASAE sobre a melatonina com a seguinte conclusão: “não recomenda a inclusão de melatonina em suplementos alimentares em mais de 1mg e não a crianças.”
Por que razão as indicações da Agência Europeia do Medicamento ou do Infarmed continuam a ser ignoradas e ultrapassadas por qualquer um que se dirija a uma farmácia ou faça uma compra online, mas também pela própria classe médica? “Há que não subestimar a influência das farmacêuticas”, admitem médicos ouvidos pelo DN. Os medicamentos de venda livre constituem, aliás, uma parte muito importante das receitas da indústria farmacêutica, pois os preços também são livres e não negociados com o Estado, lembram as mesmas fontes.
Por outro lado, “há também situações de famílias que chegam à consulta no limite do desespero de défice de sono, ao fim de algumas semanas ou meses, precisam de ajuda e às vezes é mais fácil recorrer à melatonina, quando o que deveria ser feito era uma terapia comportamental para a higiene de sono, que é um trabalho que exige mais tempo em consulta e mais disciplina familiar”, reconhece o pediatra Ricardo Costa. O clínico, a quem já lhe aparecerem em consulta bebés a tomar melatonina em idades muito precoces, com meses, não aconselha, mas admite “em situções extremas e nunca por mais de três meses”.
É também essa a leitura que faz a pediatra especializada em sono, Rosário Ferreira, que exerce no Hospital de Santa Maria, e já atendeu bebés com problemas de sono com um mês . “A indicação para a melatonina só deve acontecer em situações extremas, até porque, admite, a única terapêutica de sucesso é a terapia cognitivo-comportamental”. Trata-se de algumas técnicas como ajustar a luz, e, claro retirar os ecrãs, deixar que a criança se habitue a adormecer sozinha no seu berço ou cama ou sem embalo, ter cuidado com o ruído e a alimentação à noite e evitar açúcares e momentos de excitação prévia à hora de deitar.
A pediatra considera que “há um exagero no uso da melatonina para crianças, devia usar-se um milésimo do que se usa, são muito mais as vezes que tiro do que as que dou”. Nos bebés, o sono só começa a regularizar-se por volta dos três anos e nas crianças estabiliza por volta dos oito.
“Não há suficientes meta-análises sobre este assunto, mas os poucos que existem referem que a melatonina não atua nas crianças ou adultos que acordam durante a noite, apenas pode ter, nem sempre, um efeito indutor do sono no início, e mesmo assim, haverá apenas uma antecipação entre 6 a 11 minutos”, refere Ricardo Costa. Valerá a pena correr o risco?
Uma hormona, muitos efeitos
Perturbações na puberdade, tiroide, insulina e intoxicações medicamentosas são apenas alguns dos riscos associados ao consumo daquela hormona que, no entanto, é prescrita por muitos pediatras portugueses. “Isto tem de ser denunciado”, considera Ivone Mirpuri, patologista clínica, em declarações ao DN, que já fez chegar a sua indignação à Ordem dos Médicos e ao Infarmed.
Segundo o DN apurou, o Brasil já proibiu o fabrico e comercialização de suplementos com melatonina para crianças e adolescentes, pois a Agência Nacional de Vigilância Sanitária brasileira “não considera comprovada a segurança do uso para essas faixas etárias”, o mesmo acontecendo para grávidas e lactantes e para adultos com idade inferior a 19 anos.
O assunto também está a gerar alarme nos Estados Unidos, onde uma pesquisa online realizada pela Academia Americana de Medicina do Sono sugeriu que cerca de 46% dos pais já deram melatonina a crianças menores de 13 anos para ajudá-las a dormir por um período entre 12 e 21 meses. Numa década, entre 2012 e 2021, o consumo subiu mais de 500% e há casos de intoxição, com 1% deles a necessitarem de cuidados intensivos. Também em Portugal têm acontecido intoxicações, sobretudo em adolescentes quando combinam a melatonina com medicação para TDHA, porque têm horários desajustados, ficam até tarde no telemóvel e depois não conseguem dormir. Os sintomas podem ser vómitos, náuseas, enxaquecas, segundo explica um dos médicos ouvidos pelo DN.
Estima-se que cerca de 30% das crianças sofram de perturbações do sono, de acordo com dados do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos. A indústria farmacêutica rapidamente ocupou este mercado de crianças e pais desesperados com défice de sono e lançou vários tipos de suplementos alimentares, que escapam ao crivo da regulação farmacêutica do Infarmed, incluindo os que contêm a melatonina e que, por isso, podem ser vendidos sem receita.
É um mercado de milhões de euros que também prospera com muitas prescrições por clínicos que minimizam os efeitos secundários em períodos curtos ou os desconhecem. Existem cada vez mais marcas no mercado, em cápsulas, gotas ou gomas, e estão a ser consumidos por bebés com três meses ou menos.
“As pessoas pensam que por a melatonina ser, erradamente, de venda livre é inócua e não é. São inúmeras as interferências quer a nível hormonal quer medicamentoso”, alerta Ivone Mirpuri, que é especialista em modulação hormonal e forma colegas nesta área, em declarações ao DN. “As consequências são atraso do desenvolvimento da puberdade, por inibir hormonas que secretam as hormonas sexuais, inibição da ACTH (Hormona adrenocorticotrófica, que secreta o cortisol, tão importante na nossa saúde) e MSH (Hormona melatrófica, responsável pela nossa pigmentação cutânea)”, avisa.
Há igualmente preocupação quanto à diabetes. A melatonina “também diminui a insulina e aumenta a sensibilidade à glucose com perturbação do metabolismo glucídico, e que se houver uma mutação no gene MTNR1B, podem desenvolver diabetes por inibição da secreção. Acontece que 30% da população tem este gene mutado”, continua Ivone Mirpuri.
Os efeitos ao nível da tiróide também se podem manifestar num funcionamento em “excesso” e a criança acordar de noite com palpitações, sudação, e aumento da frequência cardíaca. A suplementação prolongada com melatonina está ainda associada à redução de produção das hormonas tiroideas, verificando-se que estas "têm níveis mais baixos nas pessoas suplementadas com melatonina", acrescenta a especialista que se tem esforçado por chamar a atenção da Ordem dos Médicos para o descontrolo no uso da melatonina.