"Chamas vinham de todos os lados, não havia como escapar"

Há muitos anos que Pombal e Ansião não eram tão fustigados pelo fogo. Para trás fica um rasto de destruição ainda por contabilizar, alguns feridos, e a serra de Sicó queimada. O dia fica ainda marcado pelos incêndios de Palmela e na Quinta do Lago, no Algarve, alastrando ainda mais o mapa vermelho do país.
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Depois da Região Centro, ontem as temperaturas fizeram soar os alarmes a sul. Palmela, em Setúbal, e a Quinta do Lago, Almancil, a par da Freixianda, Ourém (de novo) e, ao final do dia, Oliveira de Azeméis, foram as maiores dores de cabeça dos Bombeiros e Proteção Civil. No último balanço do dia feito por esta autoridade (ver peça ao lado), contabilizavam-se 778 pessoas já retiradas das suas casas e 135 feridos devido aos incêndios desde 7 de julho, dois deles graves (um civil e um operacional).

No centro, entre Leiria e Pombal, são quilómetros seguidos de pó, cinza e (quase) nada. O que ficou depois do fogo que, na terça-feira, consumiu várias aldeias dos concelhos de Leiria, Ourém, Pombal e Ansião estará durante muito tempo em carne viva. E não apenas para Sabina Lopes, que não sabe quanto tempo ficará na unidade de queimados do CHUC (Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra), ou para Mário Valente, que perdeu a casa onde cresceu; para Laurinda Gonçalves, que foi salva pelos vizinhos da morte certa, ou para os habitantes que restam na aldeia de Zambujais, na mesma freguesia de Abiul, onde os jardins de roseirais se eclipsaram com as chamas com a mesma velocidade com que um carro derreteu, literalmente.

Ali, tal como na vizinha aldeia do Mogadouro, já no Concelho de Ansião, não se sabe ao certo quantos graus atingiram os termómetros. Quarenta e muitos. Nas árvores, os frutos secaram de repente. O cenário, dantesco, não chegou a ser completamente presenciado pelos moradores. "Porque se houve alguma coisa que se aprendeu com Pedrógão Grande foi a retirar as pessoas de casa", diz ao DN um militar da GNR que desvia o trânsito perante um reacendimento.

Mas a seca extrema, as temperaturas elevadas e a morfologia daqueles terrenos formaram uma tempestade perfeita na tarde de terça-feira. E viveram-se horas de muita aflição nas aldeias mais recônditas do Concelho de Pombal, algumas incrustadas na Serra de Sicó, que viu desaparecer boa parte da sua vegetação. Arderam casas de habitação, barracões agrícolas, alfaias, carros, num rastro de destruição violento como não acontecia há muitos anos. "Eu até ia dizer que foi como nunca aconteceu, mas infelizmente já vimos pior", afirma Laurinda Gonçalves, 87 anos, moradora nas Fontainhas.

O DN encontra-a na manhã de quarta-feira, sentada numa cadeira de plástico à entrada do pavilhão gimnodesportivo da Escola Marquês de Pombal, onde passou a noite, juntamente com outros idosos da sua aldeia e das aldeias vizinhas. A maioria, porém, veio do Lar de Idosos Flor da Serra, evacuado ao final do dia "por precaução", tal como nos conta a diretora técnica, Liliana Oliveira.

Laurinda está agora acompanhada pela sobrinha, Maria Pontes, e ao telefone sossega uma das filhas, que a partir de França quer saber como está a mãe, a casa e a terra. Mora sozinha, e era assim que estava quando o fogo a apanhou. "Quem me foi tirar de casa foram duas vizinhas. O fogo andava longe - pensava eu -, mas quando demos por ele já estava à porta de casa. Tal e qual como há uns anos".

Terá sido em 1999, recorda a sobrinha, antes de reunir com as técnicas da Segurança Social, assumir a responsabilidade de devolver Laurinda ao lar e rumar à aldeia para, finalmente, ver os estragos.

No pavilhão da Escola Marquês de Pombal há dezenas de colchões espalhados pelo chão, numa operação coordenada pelo município. A maioria foram ocupados pelos 38 utentes do Lar Flor da Serra, sediado na aldeia de Ramalhais. Liliana Oliveira, diretora daquela residência sénior, começou a preocupar-se por volta das 16 horas, quando se apercebeu de grande intensidade de fumo. "Entretanto, o fogo estava na aldeia da Lapa, que fica a cerca de 3km. Pensámos que era melhor sermos previdentes, mobilizámos a equipa e optámos pela evacuação".

A essa hora, na Lapa, estava Luís Simões, advogado na cidade e vereador [da oposição], que se viu a braços com o fogo "sozinho, sem ajuda de bombeiros, nem polícia, só eu e o meu pai, que já é uma pessoa de idade", tal como contou ao DN. "Mais tarde apareceram dois militares da GNR, e só depois um carro de bombeiros para fazer o rescaldo. Estamos vivos, é o que importa", afirma, não sem lamentar "não ter visto nenhuma manobra da Proteção Civil Municipal, que devia existir para situações destas".

Já o presidente da Câmara, Pedro Pimpão, queixava-se da falta de meios durante a tarde, embora ao final da noite tenha mudado o discurso na TV, perante o aparecimento de corporações de vários pontos do país, quando o incêndio já tinha feito imensos estragos. Na manhã de quarta-feira, carros de bombeiros de Mira, Tábua, Porto de Mós, Batalha, Serpa, entre outros cruzaram-se com a equipa de reportagem do DN nos caminhos que o fogo queimou, nessa altura em fase de rescaldo.

Sabina Lopes, 39 anos, tinha o dia de trabalho quase feito no jardim de infância, onde é educadora, quando soube do fogo que lavrava na aldeia dos pais, a recôndita Vale Perneto, em Abiul, fronteira com o Concelho de Ansião. Aflita por eles, mas também pelas filhas, de 7 e 12 anos, que lá estavam com os avós, pegou no carro, a partir de Pombal. Quando chegou percebeu que a situação era mais complicada do que imaginava. Deixou o carro e foi ajudar um tio, que mora sozinho, numa casa mais isolada.

O calor e o fogo acabaram por lhe provocar queimaduras de segundo e terceiro grau em 70% do corpo. Quem conta a história ao DN é Filipe Lopes, o marido, que chega à aldeia com as filhas e o sogro, à hora de almoço. Na véspera, acabaram por ser todos alvo de evacuação para a Junta de Freguesia de Abiul.

Na aldeia seguinte, Mário Valente e a filha, Bruna, de apenas 14 anos, confortam-se mutuamente. Ainda não sabem como vão contar à família que a casa da avó já não existe: foi destruída pelas chamas, na aldeia de Mogadouro de Baixo, já no Concelho de Ansião.

O fogo que consumiu uma extensão ainda por calcular de floresta, casas e até empresas terá sido um reacendimento daquele que no fim de semana deflagrara na aldeia da Lameirinha. Todas aquelas aldeias fazem parte de montes e vales que a enfermeira Carla Rodrigues está habituada a contornar. Foi o que tentou fazer, quando a GNR a impediu de passar, na terça-feira, para chegar a Zambujais, onde mora. Estava de serviço no Hospital de Santo André, em Leiria, quando soube da gravidade do fogo. "Mas já não tive forma de chegar aqui. O que sei, e que facilmente agora se percebe, é que as chamas vinham de todos os lados. Não havia como escapar", conta ao DN.

Carla habituou-se a ver arder a serra desde pequena. "Mas nunca tinha visto um fogo como este", sublinha, porque "esta zona onde estamos costumava escapar".

Desta vez não aconteceu. Em frente, na casa da avó, que está agora a ser alvo de uma intervenção dos técnicos da E-Redes (porque os habitantes ficaram sem eletricidade e comunicações), há uma nespereira que ficou como seca. E do lado de lá, uma oficina ardeu com dois carros lá dentro. Ilesa, apenas uma pequena capelinha, com uma santa.

Um dos fogos que mereceu maior preocupação durante o dia de ontem foi o de Palmela, que deflagrou pela manhã nas encostas do castelo e foi combatido tanto por bombeiros, como por civis. Por volta do meio-dia, as chamas alastraram até à vila, com dezenas de pessoas a necessitarem de ser retiradas de suas casas e do Centro Social de Palmela. Também no Hospital da Luz, à entrada de Setúbal, foi ativado o Plano de Contingência.

Patrícia Bastos, proprietária de um café em risco devido à proximidade das chamas, esteve grande parte da tarde encerrada dentro do estabelecimento, junto com outras pessoas, "após as autoridades alertarem toda a população para não sair dos locais onde se encontrava abrigada, nem tentar ir para as suas casas se estivessem na linha de fogo", o que era o caso da sua.

Tal como Patrícia Bastos, também Viriato Pardal que, pelas 16.30 passava por Palmela, no regresso a casa depois do trabalho, relatou "um cenário de pânico e impotência da população, que tentava ajudar os bombeiros a combater as chamas, salvar vidas e resgatar bens antes da passagem das chamas". Ao final da tarde, a população de Aires também teve de ser retirada das suas casas devido à proximidade das chamas. À hora de fecho desta edição, devido a este fogo, havia registo de dez feridos, quatro deles bombeiros.

Algarve. O fogo que deflagrou na noite de terça-feira em Gambelas estendeu-se ontem a Almancil, tendo chegado a Quarteira e ao complexo urbanístico da Quinta do Lago, junto a Loulé, onde tiveram de ser retiradas pessoas das habitações "preventivamente", durante a manhã. Isto porque houve casas que chegaram a estar rodeadas - e, por isso, isoladas - pelo fogo. No local, as chamas chegaram também a um campo de golfe. Foi também evacuado um centro hípico, de onde todos os animais conseguiram ser retirados sem quaisquer problemas. Antes, já tinham sido retiradas cerca de 20 pessoas de um parque não-licenciado com caravanas móveis. Por outro lado, na zona de Quarteira, para onde o fogo progrediu a grande velocidade, a situação era tida como mais complicada, uma vez que as chamas chegaram a estar perto de um posto de combustível na localidade, mas o cenário não piorou.

Exército. No último balanço de ontem, feito pelas 19.00, a Proteção Civil confirmou que, no âmbito das medidas de emergência que foram tomadas, estava o reforço das equipas de combate, mais concretamente com o acionamento de seis pelotões militares, o que representava um acréscimo total de 1026 operacionais. Na mesma atualização, foi ainda confirmado o número de feridos (135), bem como o número de incêndios que deflagraram até à hora do balanço (171 fogos), encontrando-se, então, 27 ainda ativos. Estes focos de incêndio mobilizavam, a essa hora, 2654 bombeiros, 30 meios aéreos e 793 veículos. Segundo a Proteção Civil, havia naquela altura "14 ocorrências significativas" (destacando Leiria, Pombal, Faro, Palmela, Guarda e Aveiro). De acordo com o comandante nacional da autoridade, o período de maior número de ocorrências aconteceu entre as 12.00 e as 17.00 de ontem.

Detenção. Durante o dia de ontem ficou também confirmada a prisão preventiva para o suspeito de atear um incêndio no concelho de Montemor-o-Novo. Trata-se de um homem de 54 anos que terá ateado um incêndio na localidade de Santiago do Escoural na terça-feira. A denúncia, que conduziu à detenção, foi feita por um popular que terá visto "um indivíduo a atear um incêndio junto a uma estrada", com os militares da Guarda a deslocarem-se de imediato para o local, onde o suspeito já tinha sido "retido por populares". Na segunda-feira, a PJ, em colaboração com a GNR, também tinha detido um homem, de 45 anos suspeito de atear um fogo em Freixianda, no concelho de Ourém (segundo a PJ, já tinha antecedentes pelo mesmo tipo de crime). E na madrugada de sexta-feira, a GNR deteve um homem de 47 anos que estava a atear um fogo numa zona agrícola perto de uma área residencial de Santa Maria da Feira.

com Ana Martins Ventura
dnot@dn.pt

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