Centros públicos com dois anos de atraso nos tratamentos de fertilidade

A lista de espera para a procriação medicamente assistida soma atrasos no Serviço Nacional de Saúde e as doações são residuais. O problema não é novo, mas agravou-se com a pandemia. Peritos pedem medidas urgentes. Nascem três mil bebés por ano através estas técnicas.

Os centros de tratamento de procriação medicamente assistida (PMA) estiveram parados no início da pandemia. Os privados voltaram a funcionar em maio e conseguiram anular os atrasos. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) regressou em junho a 50% e foi recuperando, mas estacionou com este segundo confinamento. Os responsáveis de organismos desta área pedem medidas urgentes porque o tempo corre contra as mulheres que querem ter filhos e não podem. E não têm dinheiro para o privado, onde uma fertilização in vitro (FIV) custa seis mil euros.

"Em setembro, a atividade estava a normalizar, mas a partir de novembro tornou-se bastante complicado. Não houve uma recomendação oficial para pararem, o que houve foi uma dificuldade em manter o nível de tratamentos porque os diversos serviços foram alocados para os doentes covid. Há uma quebra à volta de 30% a 40%, depende dos centros", explica Pedro Xavier, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Reprodutiva (SPMR).

A lista de espera no público estava nos 12 a 16 meses, mas agora esse atraso foi alargado para dois anos, informa Carla Rodrigues, presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA). "Estávamos numa fase de recuperação, agora poderá levar mais oito meses a recuperar o que ficou para trás com a pandemia, vai demorar muito tempo até se conseguir dar a reposta idêntica à anterior à pandemia, e já havia atrasos", refere Carla Rodrigues.

Estamos a falar de técnicas de inseminação artificial (IA), fertilização in vitro, microinjeção intracitoplasmática de espermatozoide (ICSI) e transferência de embriões criopreservados (TEC). Nos casos em que há necessidade de recorrer a doações de gâmetas - ovócitos ou espermatozoides -, os tratamento estão praticamente parados, denuncia aquela dirigente.
"No primeiro confinamento, todos os centros suspenderam a atividade, estávamos assustados e o medo paralisou-nos, só se mantiveram os procedimentos obrigatórios, como a recolha de gâmetas nos doentes oncológicos. Penso que o impacto desta segunda vaga será menor, mas continuam muito reduzidos. Esta é uma área sensível, a vida não para, há pessoas que estão a atingir o limite de idade, que já fizeram estimulação ovárica, etc.", sublinha Carla Rodrigues.

De tal forma, que a estrutura se viu na obrigação de emitir uma recomendação no sentido de avançar em seis meses a idade-limite para aceder aos tratamentos de PMA no público. Justificam: "De maneira a ser garantido o direito de acesso aos tratamentos programados a todas as beneficiárias que, por força da perturbação da atividade dos centros, ultrapassaram o limite de idade para acesso aos tratamentos de PMA a partir do dia 18 de março de 2020 [data em que foi decretado o estado de emergência em Portugal]."

A deliberação é de 26 de junho e tem como objetivo prolongar os tratamentos até 31 de dezembro. Os centros públicos acabaram por seguir a recomendação, embora devesse ter havido uma indicação da tutela sobre esta questão, o que não aconteceu. O CNPM estuda agora a possibilidade de recomendar um novo prolongamento.

A lei estipula os 18 anos como a idade mínima para recorrer a estes tratamentos. Não indica uma idade máxima da mulher, considerando-se como razoável os 50 anos (faixa etária praticada nos privados). Não há limite para o homem. Mas estes tratamentos só têm financiamento público se concretizados até 40 anos da mulher (FIV e ICSI) ou antes dos 42 anos na inseminação artificial. Existem 27 centros de fertilidade no país (dez públicos e 17 privados).

"Não posso dar um intervalo"

Sofia (prefere não divulgar o apelido) tem 38 anos, faz 39 em abril, está há mais de um ano para iniciar o tratamento no SNS. Fez uma FIV no privado que não teve um final feliz. Um dos problemas da fertilidade é a qualidade dos espermatozoides do marido. "Foi muito frustrante, só consegui cinco óvulos e, no final, tinha um embrião, estava com muita esperança. Perdi-o à oitava semana", recorda. Gastou 5700 euros. "É muito caro, os seguros não cobrem."

Recorreu ao SNS, teve a primeira consulta no Hospital de Santa Maria em novembro de 2019. Detetaram um mioma, que, embora os médicos digam não interferir na gravidez, necessita de uma avaliação clínica. Marcaram uma consulta para 2020, que acabou por ser adiada devido à paragem dos tratamentos no primeiro estado de emergência. Em julho, marcaram uma consulta para outubro.

No início de dezembro, retiraram um pouco de tecido do útero para análise, e Sofia continua à espera dos resultados. A justificação são os constrangimentos provocados pela pandemia. "Ainda perguntei se podiam ligar para o laboratório para saber o que se passa, até podem ter perdido a amostra", conta.

Sofia sente-se de mãos atadas: "Compreendo que estão assoberbados de trabalho. E a minha vida? Não posso parar a minha vida, não posso dar um intervalo. Estou a fazer 39 anos e há um ano à espera para iniciar os tratamentos. Respondem-me que o tecido ainda não foi analisado e não se pode avançar. Eu percebo o que está a acontecer com a pandemia, mas as outras doenças não podem deixar de ser tratadas. E se fosse um problema de cancro, também ficava para trás?" São as perguntas desta mulher que não tem outra forma de ter filhos. Entretanto, vai fazer mais análises ao sangue e uma ecografia, para ter tudo preparado para quando obtiverem o resultado.

Cláudia Vieira, presidente da Associação Portuguesa de Fertilidade, compreende que as situações como as de Sofia não põem em causa a sobrevivência das pessoas, mas sim a sobrevivência de um sonho. "Estávamos à espera que a situação regularizasse depois do primeiro confinamento, agora a situação voltou a complicar", diz, criticando o desinteresse dos políticos pelo tema. "Claramente, a covid domina a agenda política. A situação é sobretudo grave no campo das doações. A SPMR lançou em 2019 uma campanha para a doação de gâmetas e as pessoas querem doar, só que não procuram o público, mas o privado, onde têm mediatamente uma resposta e melhores condições."

É o Banco Público de Gâmetas, no Porto, que faz a distribuição das doações no SNS. Os dados provisórios indicam que, entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de 2020, houve 1265 doações, das quais 862 de ovócitos e 403 de espermatozoides, praticamente todas no privado. O público fez a recolha de oito ovócitos. "Há doações, só que o SNS não tem meios humanos para fazer a recolha. Num ano de pandemia, o número de dádivas é considerável, nomeadamente de ovócitos, só que o Banco Público de Gâmetas não funciona, é preciso dotá-lo de meios", critica Pedro Xavier, acusando: "O Estado anda a enganar as pessoas dizendo-lhes que têm direito a fazer esses tratamentos, mas, na prática, não o conseguem."

Portugueses querem doar

Refira-se que o setor privado não compensa com mais dinheiro do que o público as doações. Os valores estão estipulados na lei e trata-se de um reembolso de 43,88 no caso de esperma e 877,62 nos ovócitos, para compensar as despesas diretas ou indiretas para a recolha.

Uma forma de desbloquear o processo seria recorrer às doações dos privados, algumas das quais acabam por ser exportadas. Essa proposta foi feita em maio pelo CNPMA ao secretário de Estado da Saúde. "António Sales percebeu que, até a nível económico era mais vantajoso para o SNS, mas nada se avançou. Depois dessa reunião, enviámos as propostas por escrito e, até hoje, não obtivemos feedback", lamenta Carla Rodrigues.

O CNPMA realizou, junto dos 27 centros de PMA, públicos e privados, um inquérito sobre o impacto da pandemia de covid-19 entre 8 de março a 15 de agosto. A maioria reduziu a atividade de 75% a 100%, estimando-se que possam ter sido cancelados ou adiados aproximadamente 2900 ciclos. Então, estimava-se que, nos públicos, a suspensão ou a redução da atividade em PMA se repercutisse até oito meses adicionais de tempo de espera, previsões que, agora, são postas em causa. Alertaram então: "Se a resposta era já claramente insuficiente para as necessidades, os últimos meses agravaram a situação a um ponto crítico que obrigará a todos quantos têm responsabilidade na definição de prioridades nas políticas de saúde a tomar medidas urgentes para salvaguardar o futuro da PMA no SNS em Portugal."

A situação é claramente diferente no privado. Sérgio Soares, diretor clínico da IVI Lisboa, refere que a seguir ao primeiro confinamento se organizaram "para poder dar continuidade aos tratamentos que tinham ficado pendentes, sem prejudicar outros pacientes que iniciassem tratamento". O mesmo se passa com as doações: "Temos um banco próprio e com um número de dadores ativos que nos permite não ter lista de espera nestes tratamentos."

Relativamente a um possível adiamento por parte das pessoas por causa da pandemia, Sérgio Soares diz "ter variado em função da rotina que conseguem ter, de maior ou menor segurança em relação ao distanciamento social e os outros cuidados de prevenção do contágio pelo SARS-CoV-2".

Pedro Xavier lembra a contribuição da PMA para a natalidade no país, cujos primeiro dados indicam uma redução de nascimentos em 2020 face a 2019. "Nascem mais de três mil bebés por ano com recurso a estas técnicas, o que representa 3,5% do total de nascimentos. E o número de crianças PMA tem vindo a aumentar de forma sustentada.

Quem necessita destes tratamentos também pode estar a adiar devido à situação que se vive no país, mas há quem não possa adiar, e o SNS não dá resposta."

Em 2018, realizaram-se 2434 partos cujas gravidezes resultaram de PMA. Destes, 678 recorreram a doação de gâmetas, quase todas no privado. Há partos de mais de um bebé em 25% dos casos, ou seja, mais 609, ultrapassando os três mil bebés.

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