Casais que contrataram na Ucrânia mulheres para ter os seus filhos já podem dar-lhes o nome de família
São muitos os casais portugueses que desde 2015 têm recorrido a mulheres na Ucrânia disponíveis para ficarem grávidas dos seus filhos. É fácil e mais barato que em outros países, além de que a gestação de substituição ainda não é possível em Portugal pois falta regulamentar a lei. Com a guerra, ficaram sem saber o que fazer e estima-se que cerca de 30 casais esperavam por bebés antes da invasão russa. Grande parte das grávidas conseguiu fugir para Portugal e o Governo decidiu permitir que os pais biológicos registassem de imediato os bebés.
O alarme soou junto das entidades oficiais no último dia de março, quando uma ucraniana deu à luz uma menina no Hospital de São João, no Porto. O que se esperaria é que a registasse em seu nome e no do pai biológico, mas a mulher explicou que era apenas a gestante e que os pais eram portugueses.
Houve casais que tentaram ir à Ucrânia ou encontrar-se com as gestantes em outros países, mas aqueles com que o país tem fronteira não permitem a maternidade de substituição, à exceção da Rússia e da Bielorrússia. A solução foi, assim, deslocar as grávidas para os países onde estavam os casais que recorreram aos seus serviços.
A agência Successful Parents trabalha com a maioria dos casais portugueses. Muitos das fotos da sua página online são de bebés que irão crescer em Portugal. A última, a 1 de março, é de dois gémeos, um rapaz e uma rapariga, cujos pais os trouxeram para o país três dias antes da invasão. Alguns funcionários da empresa também fugiram para Portugal. E a relação privilegiada com o país facilitou o acolhimento das grávidas. Nesta agência, em regra, os casais encontram-se com a grávida na assinatura do contrato e após o parto.
Olga Tsisarenko, uma das sócias e quem gere a carteira de clientes, disse ao DN que estão em contacto com os casais "para os tranquilizar" e a fazer tudo para que estes se encontrem com os filhos. Suspenderam, para já, o início do processo com novos casais.
Destaquedestaque32 691 vistos proteção temporária a refugiados da Ucrânia
Só casais podem recorrer a uma barriga na Ucrânia, o que também irá acontecer em Portugal. Mas, ao contrário do que acontecerá no nosso país, as gestantes são pagas. O custo total depende dos tratamentos e do tipo de pacote, mas ficará entre os 60 e 80 mil euros.
Não há dados oficiais das crianças filhas de portugueses que nasceram ou em vias de nascer através da gestação de substituição na Ucrânia. A Embaixada de Portugal em Kiev, que é quem trata da documentação, está fechada.
A associação Portuguesa de Fertilidade foi contactada diretamente por 5 casais mas tem conhecimento de outros, contabilizando "mais de 20 e tal", podendo chegar aos 30. E há casos preparados para a fertilização in vitro ou para iniciar o processo.
Portugal está constantemente a receber refugiados da Ucrânia. Até às 19:00 desta quinta-feira, havia 32 691 pedidos de proteção temporária. Destes, 10 733 são homens, 11 327 crianças e
Destaquedestaque21 958 mulheres.refugiadas acolhidas em Portugal
E tentou-se encontrar uma solução para as gestantes de substituição.
"Aos casais portugueses que pretendem trazer, ou que já trouxeram, da Ucrânia as gestantes de substituição dos respetivos filhos, o IRN passou a disponibilizar um formulário de apoio no portal da Justiça", respondeu ao DN a assessoria da ministra da Justiça, Catarina S. e Castro. Justifica que se "trata de facilitar o registo de nascimento das crianças e agilizar o tratamento destas questões, que são de elevada complexidade porque os casais podem estar em qualquer ponto do país".
Uma vez preenchido o formulário, serão encaminhados para o registo. Finalmente, a criança nascida no Porto há três semanas vai ser registada com nome de portugueses, o que acaba por ser um processo bem mais rápido que o habitual.
Até agora, o bebé nascia na Ucrânia e a gestante abdicava da filiação, ficando esta em nome do pai biológico (ver P&R). Era feito testes de ADN para confirmar os pais biológicos (pelo menos um) e a ausência de material genético da gestante. A informação era validade pela embaixada que emitia um documento para a criança ser registada em Portugal. Posteriormente, a mãe biológica entrava com um processo de adoção, o que leva alguns meses. A situação de exceção permite que o casal registe logo o bebé em nome de ambos.
A Successful Parents foi criada em 2003 e começou a trabalhar com portugueses em 2015. Esta é uma área onde funciona o passa-palavra e a entreajuda entre casais, cujas mulheres não têm possibilidade de gerar uma criança ou correm um risco grave de saúde. Há outras agências, nomeadamente uma em Donbass, mas as principais estão em Kiev.
A BioTexCom trabalha há mais de dez anos, é uma agência de grande dimensão e trabalha com o mercado de língua portuguesa, em especial o Brasil. Tem colocado vários vídeos a ilustrar como os bebés e as suas mães estão seguros em Kiev e com acompanhamento médico.
Informaram o DN que os bebés que tinham pais já estão com eles e duas grávidas tiveram o parto já em Portugal. Têm 600 gestantes e cerca de 50 são de casais do seu departamento.
Desde o começo da guerra, nasceram mais de 50 crianças desta agência e 27 já foram entregues aos pais. Estão a trabalhar com limitações, uma vez que alguns funcionários mudaram para zonas mais calmas e outros voluntariaram-se para o exército.
"Por causa da guerra, fazemos algo que nunca tínhamos feito, entregamos o contacto das gestantes aos pais biológicos. Temos um abrigo antiaéreo em Kiev e, se necessário, enviamos dinheiro para alimentação e remédios para aquelas que não conseguimos trazer", explica Aleksandra, intérprete no departamento luso-brasileiro. Acrescenta que a maioria das grávidas que fugiram da Ucrânia querem regressar logo que possam.
Conta que nos primeiros dias, a cidade paralisou, mas está a recomeçar a atividade. Houve ataques russos perto da zona onde era o bunker e as gestantes tiveram de ficar nos abrigos das suas casas com as famílias. Têm uma base com os seus contactos e dos parentes para estarem em constante comunicação.
"As que estão em Kiev estão seguras e temos transporte para as que moram em regiões mais perigosas. Também contactámos a Cruz Vermelha e a OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa)", sublinha.
Acrescenta a responsável da agência: "Os procedimentos estão a ser restaurados, já tivemos várias entrevistas com gestantes e doadoras e logo vamos recomeçar os processos para os casais cujo material biológico temos".
O que é a gestação ou maternidade de substituição?
Quando uma mulher se disponibiliza para suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, que será filha dos beneficiários (os pais). Não pode haver material genético da gestante.
A quem se aplica a exceção do registo destes bebés?
A quem recorreu à maternidade de substituição na Ucrânia e a criança nasceu ou vai nascer em Portugal.
Quem pode pedir o registo de nascimento?
Os beneficiários da maternidade de substituição ou o pai biológico. Pode ser pedido no serviço online, ou presencialmente no balcão Nascer Cidadão do hospital, onde a criança nasceu, ou num serviço de Registo Civil.
Quais são os documentos?
Além da declaração de nascimento emitida pelo hospital, tem de provar-se que o material genético pertence a um dos pais biológicos; a impossibilidade de gravidez pela mulher beneficiária e que a gestante de substituição não doou ovócitos naquele procedimento. Se a criança nasceu no estrangeiro, tem de ter um documento em como a clínica está autorizada nesse país. Os documentos estrangeiros devem ser traduzidos.
Quem fica a constar como mãe e pai da criança no registo?
Conta como filiação do bebé, os pais beneficiários da maternidade de substituição. Caso não seja possível apresentar os documentos, a criança fica registado com o nome do pai e a filiação materna da gestante. Depois, a mãe beneficiária recorre à adoção e assim estabelecer o vínculo de filiação materna. Era o que acontecia até aqui.
Como era o processo até à guerra?
A criança nascida na Ucrânia tinha um certificado da maternidade, realizava um teste de ADN e a gestante renunciava à filiação em favor dos pais beneficiários (o casal que contratava a gestante). Obtidos os comprovativos, era iniciado o processo na embaixada de confirmação dos documentos da paternidade. Depois era emitido o documento e, posteriormente, a mãe beneficiária tinha de entrar com um processo de adoção da criança em Portugal.
A maternidade de substituição é possível em Portugal?
Não, mas já foi. A maternidade de substituição foi introduzida na Lei de Procriação medicamente Assistida (PMA) em 2016 (25/2016) mas Marcelo Rebelo de Sousa vetou e pediu a fiscalização. O Tribunal Constitucional (TC) deliberou a 14 de abril de 2018 que era inconstitucional. Entre estes dois momentos, o Conselho Nacional de PMA autorizou dois pedidos, o da mãe de uma mulher com duas tentativas de maternidade sem sucesso, e de uma com três filhos, mas faltavam duas semanas para iniciar o tratamento quando foi conhecida a decisão do TC. Havia sete pedidos pendentes.
O que estava em causa?
O TC considerou que não estavam protegidos os direitos das crianças e das gestantes, defendendo que estas deviam poder recusar a entrega da criança até depois do parto. Os deputados alteraram mas só em 2021 deixou de ter oposição do TC. É a lei n.º 20/2021, de 15 de dezembro, em vigor desde 1 de janeiro.
Porque não é aplicada?
O Governo tinha 30 dias para a regulamentar e estava demitido. Só a 18 de março nomeou a comissão que o irá fazer. É presidida pelo médico Carlos Calhaz Jorge e têm até 30 de junho para o fazer.
Quais são as linhas gerais?
A mulher deve ter filhos, aceitar a gestação a título gratuito e pode recusar entregar o bebé até ao seu registo, o que em Portugal deve fazer-se no prazo de 20 dias após nascer. Só podem aceder casais, portugueses e estrangeiros com residência permanente no país, e por razões de saúde. São os beneficiários e a técnica deve recorrer a gâmetas de pelo menos um.
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