Carlos Cruz: As duas vidas
Vítor Higgs / DN

Carlos Cruz: As duas vidas

Prova de Vida faz parte de uma série de perfis - este é já o n.º 33 -, por António Araújo.
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É sintomático e bem expressivo que, na sua autobiografia (Uma Vida, 2016), Carlos Cruz tenha decidido parar a narrativa no Processo Casa Pia, não avançando mais, com isso pretendendo mostrar - coisa de que não duvidamos - que a sua primeira vida terminou em 1 de Fevereiro de 2003, quando foi detido à porta da casa dos sogros, em Quarteira, por suspeita de abuso sexual de menores. Logo depois, mas já na sua segunda vida, seria preso preventivamente e depois condenado a seis anos de prisão efectiva, dos quais cumpriria dois terços no Estabelecimento Prisional da Carregueira, Sintra, até ser libertado condicionalmente em 7 de Julho de 2016.

Recentemente, em 2021, o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou um recurso seu, para revisão extraordinária de sentença. Ao fim de quase 20 anos de julgamentos, de recursos, de pedidos de habeas corpus e de um enorme alarido mediático, caiu enfim o pano - e agora em definitivo, sem apelo, nem agravo - daquele que foi, sem dúvida, e até ver, a maior cause célèbre da III República Portuguesa.

Volvidas duas décadas, só falta, porém, e como sempre, ressarcir os lesados: em 2022, a Relação de Lisboa condenou Carlos Cruz a pagar 50 mil euros às suas duas vítimas, 25 mil euros a cada, mas o seu advogado, Ricardo Sá Fernandes, anunciou que iria recorrer daquela decisão.

Em 2018, foi noticiado que deu entrada no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, para tratamento de um cancro do fígado, mas que se encontrava já em recuperação. Hoje com 81 anos (nasceu em 24 de Março de 1942), o popular ex-apresentador continua a protestar a sua inocência e, ao que parece, tem estado bastante activo nas redes, ora dando os parabéns à filha mais nova, Mariana, jovem de 21 anos, ora comentando, quase sempre em tom crítico e causticante, diversas estrelas da nossa pungente mídia.

A sua neta Yasmin - pasme-se - é já uma moça de 17 anos, que, após ter bombado à larga no The Voice Kids, lançou há pouco o primeiro single, Para Quem Não Sabe Amar, espera-se que não inspirado no avô materno, um homem que teve o país aos pés durante décadas, e que milhões de portugueses tinham por íntimo, muito lá de casa, até ao dia em que foi detido por três agentes da Judiciária e entregue às mãos do dr. Rui Teixeira.

É espantoso saber que, nas suas tribulações e sucessos, esta foi - e é - uma vida que poderia não ter havido, se acaso sua mãe tivesse dado ouvidos às vizinhas de Parceiros de São João, Concelho de Torres Novas, que lhe aconselharam o desmancho da gravidez e da criança, argumentando que esta viera a destempo, pois Emília tinha já 43 anos e cinco filhos a cargo. Depois, no correr das décadas subsequentes, não foram poucas as ocasiões em que a morte o rondou por perto, fosse nas ondas revoltas da Nazaré, ainda miúdo, trauma que o fez nunca ter aprendido a nadar, fosse, durante a adolescência, a bordo de uma canoa que quase naufragava ao largo do Mussulo, Luanda, fosse numa corrida de toiros em Vale de Gatos, em que ele, já adulto e matador, acabou abalroado por uma besta de mais de 400 quilos, em faena processada na presença da Miss Brasil à época, hoje mais que esquecida.

Não muito depois, meados dos Anos 60, começaram a surgir boatos de que tinha morrido e outros de que se suicidara, após matar a mulher e um filho que acabara de nascer sem braços, deficientíssimo. Vinte anos depois, na década de 80, deram-no morto com um cancro, e o facto é que o teve, dois aliás -nas cordas vocais, em 1993, e no fígado, em 2018 -, como é facto que foi alvo de uma operação de peito aberto, em 1994, e que, em 1995, flagelado por uma depressão, chegou a pensar atentar contra si próprio, valendo-lhe nesse momento insano o auxílio de um médico muito amigo, o dr. Eduardo Mendes, e das sessões de psicoterapia com Daniel Sampaio, aconselhadas por Júlio Machado Vaz, com quem fez o programa Sexualidades.

Neste rol de desastres iminentes, avulta ainda, nos tempos quentes de 1975, o pedido que fez a um amigo da LUAR para que lhe pusessem um segurança à porta de casa, com receio do que pudesse acontecer à sua companheira Isabel e aos filhos desta, de apelidos sonantes, ou, em 1978, uma conturbada viagem aérea de Caracas para Nova Iorque, com regresso de urgência à capital venezuelana, para não falar de duas aventuras na neve, quase fatais: uma na Estação de Tignes, França, com Marluce, a sua segunda mulher; e outra com Raquel Rocheta, em Andorra.

Como se não bastasse, sofreu ameaças de morte de islâmicos radicais, por ter caricaturado Maomé no programa televisivo Ideias com História, e, em Bucareste, no decurso da candidatura ao Euro2004, não ganhou para o susto quando o restaurante onde jantava foi invadido pela polícia, de pistolas e de metralhadoras na mão, em busca de elementos da máfia cigana que ceavam na sala ao lado.

Outra vez ainda, numa das gravações do 1, 2, 3, no Coliseu dos Recreios, não entrou na jaula das leoas de Paquito Cardinali, pese a insistência e os gritos do público, vindo a saber mais tarde, através de Paquito, que nesse dia uma das feras estava deveras nervosa e, por isso, difícil de controlar e perigosa.

Em face de tudo isto, quase seríamos tentados a crer que, mais do que um sobrevivente, Carlos Pereira da Cruz é um zombie, ou morto-vivo, o que talvez seja verdade aos dias de hoje, mas que de modo algum faz justiça à sua existência pretérita, na qual teve uma das mais duradouras e brilhantes carreiras do showbiz português, seja lá isso o que for, nas variantes rádio, TV e cinema (entrou nos filmes Uma Vontade Maior, de Carlos Tudela, estreado no Monumental em 1967, na presença de Américo Thomaz, e Vidas, de António Cunha Telles, de 1984).

Na verdade, tão espantosa como a frequência com que iludiu à morte é a amplitude - e a fulgurância - do seu percurso de vida, o qual o levou até aos cumes de Nova Iorque e da ONU, tendo começado numa aldeola minúscula da Região Centro, durante a Segunda Guerra, em casa sem electricidade, nem água canalizada e onde, à falta de instalações sanitárias, as necessidades fisiológicas dos residentes eram satisfeitas no quintal das traseiras, entre couves-galegas e árvores de frutos.

Para os parâmetros de Parceiros de São João, a terra onde nasceu, os seus pais não eram pobres, antes da classe média, ou até mais acima. O pai, José Abreu Cruz, agricultor, tinha cinco fazendas e uma destilaria, onde fabricava aguardente de figo e um vinho doce que baptizou de “Eduardinho”. A mãe, Emília da Conceição Pereira, servira em casa dos Schiappa, cuidando da menina da família, e, depois de se casar, tornou-se doméstica e mãe de muitos filhos. José e Emília conheceram-se em Torres Novas, na Feira do Melão: Emília estava a vendê-los na companhia dos pais, José quis comprar-lhos, deu-se o clique e o coup de foudre, foi amor à primeira vista. Ela muito devota, jurando ter visto o Milagre do Sol em Fátima, no 13 de Outubro de 1917, eram ambos muito poupados e trabalhadeiros (Carlos define o pai como “um workaholic por excelência”, vício de que ele também padece, ou padeceu).

Dois dos filhos do casal tinham rumado a Angola, em busca de uma vida melhor, e, aos 59 anos, o pai foi-lhes no encalço. Em Maio de 1948, a família Cruz viajou até África, a bordo do Lourenço Marques: em Luanda, instalaram-se na casa da família Couto, no Musseque Lixeira, bairro de odor nauseabundo; mais tarde, foram para uma vivenda acabada de construir no Bairro de São Paulo, na fronteira entre o asfalto e o musseque. Carlos estudou no Colégio Padre António Vieira, onde teve a primeira paixoneta, Irene, e depois, com apenas 9 anos, deu entrada no Liceu Nacional Salvador Correia, onde esteve até aos 17, sendo feliz.

Vítor Higgs / DN

A mãe Emília, que morreu em 13 de Janeiro de 2000, com 101 anos, recordava amiúde que o filho nascera de olhos escancarados para o mundo, sinal de vivaz inteligência, que inquestionavelmente a tem, associada a uma não menor curiosidade, manifestada desde tenra infância. Nos seus relatos de menino em Luanda, o que mais surpreende e desvanece é a forma com que ele, muito miúdo, absorvia avidamente tudo quanto os adultos lhe mostravam: os livros de Sandokan, de Sherlock Holmes e Júlio Verne da biblioteca do senhorio dos seus pais, o Sr. Faia (e D.ª Eduarda, sua mulher, “um casal maravilhoso”), que o ensinou a escrever à máquina no teclado de uma Royal e que, mais tarde, o dissuadiu de Histórico-Filosóficas em favor das engenharias do Técnico; os bailes e o basquetebol no Clube União São Paulo; a cinefilia descoberta com o Sr. Ramos, dono do Cinema Colonial, onde o pequenito Carlos passava horas a ajudar o projeccionista; a aprendizagem da revelação no laboratório do Sr. Adriano, dono de uma loja de fotografia; o convívio com colegas de liceu de classes mais elevadas, cujos modos à mesa observava atentamente, sempre a estudar, sempre a aprender; o cineclubismo e a música pop, ouvida nas festas e na telefonia, as leituras dos clássicos russos e de O Drama de Jean Barois, do grande Martin Du Gard; a rejeição do existencialismo de Sartre, em favor da vida boa de Angola, com mergulhos na piscina do Clube Nun’Álvares e os camarões e as quitetas da ilha, ou a tertúlia no Café Monte Carlo, com Luandino Vieira e outros, onde recebeu as primeiras luzes de oposicionismo e de anticolonialismo, as quais, todavia, não o impediriam de colaborar num programa semanal da Mocidade Portuguesa, A Voz da Mocidade, a sua estreia aos microfones da rádio, em 1956. Tinha então 14 anos.

Pouco depois, e nesse mesmo ano mágico de 1956, ocorreu aquele que foi, muito provavelmente, o instante decisivo da sua vida, mil vezes contado: desejando ardentemente assistir ao jogo de futebol entre a selecção militar portuguesa e a selecção de Luanda, meteu uma cunha ao padre José Maria Pereira, seu professor de Religião e Moral no liceu e grande patrão da Rádio Ecclesia, Emissora Católica de Angola, para que este o autorizasse a entrar no estádio com a carrinha da emissora. Aconteceu que, a meio do jogo, ou coisa que o valha, o locutor Rui Romano passou-lhe o microfone para as mãos e anunciou que ele ia prosseguir o relato. Desenvencilhou-se com garbo e presteza, o que lhe valeu um convite imediato para ingressar nos quadros da Emissora Católica. Com apenas 14 anos, começava a sua carreira na rádio, na qual fez dezenas de relatos desportivos e, entre o mais, a cobertura de uma viagem promocional da Força Aérea a Angola, chefiada por Kaúlza de Arriaga, onde trabalhou ao lado de um dos seus ídolos, Artur Agostinho, que não só o ajudou na ocasião como viria a converter-se num dos seus mestres no ofício do éter.

Em 9 de Setembro de 1959, Carlos Cruz embarcou no Vera Cruz, para uma viagem de nove dias rumo a Lisboa e ao Técnico. O pai falecera entretanto, de uma angina de peito, a mãe regressara já a Portugal, ele hospedou-se em Lisboa, primeiro na Graça, na casa da família Andrade, e depois num quarto alugado na Avenida João XXI. Por vezes, a bolsa que ganhara do Governo-Geral de Angola, no valor de 1500 escudos, não dava para as despesas e o jovem estudante passou várias privações, chegou até a conhecer a fome.

Quando chegou a Lisboa, confessa, era ainda “um provinciano” e a atracção da capital e dos convívios no Café Império fizeram com que, no primeiro ano, concluísse apenas as cadeiras de Desenho e Química Geral. Ganhou bom dinheiro ao jogo, no póquer e no “abafa”, e, a instâncias de um ex-colega da rádio de Angola, acabou por ir parar à Rádio Universidade e, depois, à Emissora Nacional, novamente no jornalismo desportivo. Um dia, enquanto comia um combinado no Pic-Nic, desafiaram-no a preencher os papéis para a RTP, que o chamou a prestar provas em meados de 1961. Ficou. No dia 14 de Abril de 1962, estreou-se nos ecrãs, ao leme do Teledesporto.

Para trás ficaram os estudos, é claro, após um incidente com o professor Dias Agudo, de Matemáticas Gerais. Carlos era agora um jovem solto, que vivia num quarto alugado à senhora D.ª Amélia, na Avenida Almirante Reis, do qual só sairia para se casar, em Novembro de 1966 (a noiva, de resto, foi conhecida na Pastelaria Pão de Açúcar, também na Almirante Reis). No entrementes, mergulhou a fundo no jogo e na farra, cedeu à sedução da noite de Lisboa dos Anos 60, que recorda em tom nostálgico como uma “cidade de vida contente”. Com as raparigas do Bolero, o mítico cabaré do Martim Moniz, famoso pela sua orquestra de músicos cegos, apanhou uma doença venérea, que garante ter sido a única num vasto currículo amoroso, que, talvez para desfazer as suspeitas da Casa Pia, fez questão de desfiar ao longo da sua autobiografia.

Pelo próprio ficamos a saber que perdeu a virgindade, muito miúdo, com uma cabo-verdiana trintona, de enormes olhos verdes, que ele levou para as traseiras da mercearia do pai, onde colocou um saco de serapilheira por cima do chão de cimento, aí consumando o acto graças aos ensinamentos colhidos em A Nossa Vida Sexual, do Dr. Fritz Kahn. Já antes, no colégio, tivera a primeira paixoneta, Irene, a que se seguiu Lisete, filha do Sr. Ramos do Cinema Colonial, depois as moças dos bailes e uma tal de Helena, a acrescer à devoção platónica pela professora Clarisse e, enfim, Filó, a primeira namorada.

Em Lisboa, viveu gostosamente o “amor livre” dos Sixties e tornou-se assíduo das catedrais da boémia: o Sete e Meio, em Albufeira, o Caruncho, para os lados do Lumiar, o Ali-Babá, o Caixote, o Porão da Nau (onde decorreu o copo d’água do seu casamento, celebrado tão-só pelo Civil e seguido de lua-de-mel nas Canárias), o Ad Lib e o Van Gogo, em Cascais, Vangas para os habitués.

“Não sei com quantas mulheres fiz amor”, afirma Cruz, sem pudores, nem falsas modéstias. Diz ter ganho fama de mulherengo, que rejeita, mas confessa apreciar muito o sexo com o outro sexo, convicção que não foi abalada nas duas vezes em que foi abordado por gays, uma num single bar de Manhattan, outra em Lisboa, no Alcântara-Mar, na entrega dos Se7es de Ouro. Respeita-os, e às suas opções, mas entende que “normal é a heterossexualidade”. Em todo o caso, diz, “aceito mais facilmente um relacionamento entre duas mulheres do que entre dois homens”, fazendo-o por razões puramente estéticas: vê beleza em dois corpos femininos juntos, onde pressente “uma enorme carga erótica”, coisa que não encontra numa parelha de homens, perante os quais fica “indiferente”.

Com muitas conquistas de permeio, diz ter tido cinco relações oficiais na vida: Lisete, a primeira mulher; Isabel, um “tsunami sentimental”, mulher de um alto político; Joyce, a americana, de que já falaremos; Marluce, manequim brasileira que conheceu, não por acaso, em Felizardo & C.ª, em cena no Variedades; e Raquel Rocheta, sua assistente no 1, 2, 3”, com quem se casou em cerimónia budista na Tailândia.

Numa ocasião ou noutra, diz, a todas foi infiel, excepto a uma, tendo sido também enganado por todas, excepto uma. Com Raquel, mãe da sua filha Mariana, atravessou as agruras da Casa Pia, onde contou ainda com o indefectível apoio da anterior companheira, Marluce, mãe de Marta. Todas deixariam relato escrito dessa traumática experiência: Raquel Rocheta em Sozinha, de 2011, Marluce com Carlos Cruz - As Grades do Sofrimento, de 2004, e enfim a filha Marta com As Outras Vítimas - Relatos Inéditos das Vidas Atingidas pelo Processo Casa Pia, de 2011, prefaciado pelo pai.

Seria estranho, e ademais estúpido, cairmos num vício a que chamam interpretação retrospectiva, lendo e vendo toda a carreira pretérita de Carlos Cruz à luz do processo em que foi arguido e condenado. Ou, pior ainda, pretendendo apagar o muito que fez e nos deu, coisas populares e históricas, como o lendário Zip-Zip, de 1969, com Fialho Gouveia e Raul Solnado, e por onde passaram Almada, Amália, Caetano e Gilberto Gil, Agostinho da Silva ou Carlos dos jornais, entre tantos outros - era tal a audiência que a Companhia das Águas chegou a registar singulares picos de consumo à hora dos intervalos, às segundas-feiras à noite, quando os espectadores aproveitavam a pausa para ir ao WC.

Com Fialho e Solnado coordenou mais tarde a Operação Pirâmide, gigantesca acção humanitária que, em Dezembro de 1978, permitiu recolher uma astronómica quantia em donativos e bens, 130 mil contos, cuja repartição motivaria cenas de pontapé e soco entre os potenciais contemplados.

Coordenou também a cobertura televisiva das primeiras eleições livres em Portugal, as da Constituinte, em 1975 (mais de 30 horas de emissão em cada um dos canais da RTP), assinou Pão Com Manteiga, na Rádio Comercial, nos idos Anos 80 (o do Roque e da Amiga, casal de Campo de Ourique imaginado por Bernardo Brito e Cunha), apresentou concursos épicos (como o 1, 2, 3, trazido de Espanha, o da Bota Botilde, onde enfrentou Luís Almeida, o engenheiro papa-concursos), apresentou com Júlia Pinheiro a cerimónia inaugural da Expo’98, foi o rosto ganhador da candidatura portuguesa ao Euro2004, para o efeito escolhido por José Sócrates através de uma agência de head hunting.

Menos conhecidos, mas não menos importantes, serão outros conseguimentos: ao seu conselho, dado na campanha das presidenciais de 1976, se deve o abandono, por parte de Eanes, daqueles óculos escuros terríveis que lhe davam a aparência de um ditador das Américas e que em nada contribuíam para a consolidação da nossa democracia; foi ele, também, o responsável pelas vozinhas irritantes das personagens da Heidi, que mandou dobrar para a língua lusa, ou do nome Cocas do sapo de Abre-te Sésamo, versão portuguesa de Sesame Street, cujos direitos comprou, como comprou os direitos de Gabriela, Cravo e Canela, da Dona Xepa, do Bem-Amado, do Sandokan (“sem cuecas e sem sutiã”), de Miguel Strogoff, de Upstairs, Downstairs, entre outras maravilhas que nos encantaram nas idades moças.

Num percurso de várias décadas, houve apogeus e quedas (v.g., o fracasso do projecto do 24 Horas e da revista Mais, a falência da Carlos Cruz Audiovisuais, o insucesso de uma empresa de limusinas com Raquel Rocheta), e zangas e desencontros, uns efémeros, outros permanentes, com colegas e outros, como Henrique Mendes, Raul Solnado, Maria Elisa, Herman José, José Eduardo Moniz, Joaquim Vieira, Carlos Miguel (o Fininho), Carlos Pinto Coelho, António Sala, Soares Louro, Brandão de Brito, Arons de Carvalho ou Vasco Pulido Valente (este, além de ter tentado interferir na programação da RTP quando era secretário de Estado da Cultura, meteu-lhe uma cunha para ser entrevistado no Carlos Cruz - Quarta-Feira, a qual, não tendo sido satisfeita, o levou a escrever pouco depois uma crónica em que apelidava Cruz de “não-pessoa”).

Nos seus tempos áureos, dele e do mundo, Carlos Cruz esteve na transição do preto e branco para a cor, como foi escolhido para a campanha da passagem do escudo para o euro, e, em boa verdade, foi espectador e cúmplice do século XX português, pois entrevistou desde o Soldado Milhões, herói da Primeira Guerra, até ao Tino de Rans, anti-herói da actualidade. Apesar de ser de esquerda, ajudou Lucas Pires em campanha e, a convite de Marcelo, foi a uma reunião na sede do PSD, à Rua de Buenos Aires, coordenada por Joaquim Letria, para auxiliar a corrida do professor à Câmara de Lisboa. O que viu, porém, desiludiu-o: “A reunião, que era suposto ser de trabalho, foi quase reduzida a um monólogo do candidato Marcelo Rebelo de Sousa. Fiquei com a sensação de que ele não queria ideias ou opiniões, mas apenas estar acompanhado por pessoas que lhe dissessem que ele tinha razão.”

Anos depois, em Maio de 2011, João Soares Louro contactou-o, pedindo-lhe para ser mandatário da campanha de João Soares à CML. Usou para o efeito um argumento siciliano (“a família Soares não esqueceria a atitude que eu tomasse”) e Carlos Cruz aceitou, estranhando depois que uma jornalista do Público lhe tivesse perguntado por que é que, em plena campanha, a 15 dias das eleições, o contrato de arrendamento do Cinema Europa, que Cruz queria resolver, foi mudado para a titularidade da Câmara de Lisboa, para Soares aí instalar um centro cultural.

Na preparação do Euro2004, foi assediado por Tomás Taveira, na mira de fazer estádios, e apresentou-o ao presidente da Câmara de Leiria, não mais do que isso, garante. Tempos depois, recebeu do arquitecto uma tela de Pedro Calapez, coisa que acha natural e normal, a ponto de a revelar na sua autobiografia. Na candidatura ao Euro, ficou boquiaberto com a ligeireza e o à-vontade com que, à porta fechada, os nossos dirigentes desportivos se gabavam de ter corrompido árbitros e de mil traficâncias de influências, mas não tem pejo em revelar que, em três ocasiões distintas, a nossa candidatura foi muito para lá da linha: numa delas, Gilberto Madaíl, presidente da Federação Portuguesa de Futebol, entregou a um seu homólogo estrangeiro um envelope cheio de notas de dólar, assim comprando o seu voto (e, depois, novos envelopes para que este os desse a outros presidentes federativos); noutra ocasião, o mesmo Madaíl prometeu ao presidente da Federação Holandesa que iriam “tratar de tudo” para que o neto deste viesse estudar e viver em Portugal; e, noutra ocasião ainda, o presidente de uma federação de Leste pediu como contrapartida do seu voto uma moradia no Algarve, no valor de 100 mil euros, tendo Cruz falado do assunto com José Sócrates, que lhe respondeu enfaticamente “Ó Carlos Cruz, não podemos perder isto por uma questão de dinheiro! Era só o que faltava!”, dando luz verde para a operação (depois, ao que parece, o dinheiro não foi entregue e dali tudo lavou as mãos: contactado pelo estrangeiro corrupto, Cruz remeteu para os seus superiores, Madaíl chutou para Sócrates, este mandou Cruz falar com Madaíl e o assunto morreu, ou assim parece).

Em política, despreza Cavaco, que designa por “um economista de Boliqueime”, olvidando que, nesse seu transe classista, também poderiam chamar-lhe “um locutor de Parceiros de São João”, sendo esse aliás, e como atrás já se disse, o maior elogio que lhe pode ser feito. Proclama-se também agnóstico e de esquerda, mas não esconde ter ficado impressionado com os vira-casacas do PREC, que na véspera estavam com o Estado Novo e depois surgiram como os mais inflamados dos revolucionários, dispostos a sanear tudo e todos ou até a censurar documentários britânicos sobre a Segunda Guerra, apenas por falarem da Operação Barbarrosa e mostrarem a URSS a ser invadida por Hitler.

Não esperava o 25 de Abril (“nunca suspeitei de nada”) e, nesse dia, optou por ficar em casa, como mandava o MFA. No 1.º de Maio, já na rua, teve receio da multidão que o cercou no Campo Grande, quando ia ao volante de um burguês BMW, comprado dois anos antes. No plano sentimental, houve também revolução, ou, como ele diz, “o estado de graça da minha vida conjugal sofreu um abalão com o 25 de Abril. Vários abalões”. A mando de Eanes, então presidente da RTP, chegou a ter uma G-3 no cimo da secretária, para o que desse e viesse, e observou enojado as vis acusações então desferidas contra Artur Agostinho ou Amália, as loucuras de Vasco Gonçalves e os mandados de captura em branco assinados por Otelo, “dias em que ninguém parava para pensar e todos andavam a reboque dos acontecimentos”. Classifica o que então viveu na RTP como uma “bagunça perigosa” e uma “bandalheira”, dando vários exemplos disso, alguns até caricatos, outros aterradores.

Como repórter, cobriu o célebre discurso de Salazar em Braga, 1966, nas comemorações da Revolução Nacional, e o velório deste nos Jerónimos, em 1970, a vinda de Paulo VI a Fátima, as cheias trágicas de 1967, o Rallye de Monte Carlo, as 500 Milhas de Indianápolis, as 24 Horas de Le Mans, o Rallye TAP, a ascensão de Costa Gomes à Presidência e a visita deste à ONU e à Casa Branca, em Outubro de 1974, bem como as negociações dos Acordos de Alvor, cuja transmissão televisiva do discurso de Costa Gomes se atrasou quase uma hora pelo singelo motivo de o Presidente se ter distraído no bar do hotel à conversa com alguns conselheiros da Revolução.

Conheceu tutti quanti (a lista é interminável: Louis Armstrong, Françoise Hardy, Sylvie Vartan, Mireille Mathieu, Tina Turner, Roger Moore, Shirley Bassey, Dionne Warwick, Elis Regina, Rodrigues Miguéis, François Mitterrand, Tierno Galván, o Dalai Lama), entrevistou Christian Barnard na companhia de João Lobo Antunes, então jovem apresentador televisivo, ouviu o Gainsbourg e a Birkin a cantarem Je t’aime, moi non plus numa boate de Cannes. Enquanto acompanhava o Mundial de 1966, conheceu Ringo Starr numa discoteca londrina e, por seu intermédio, acabou por fazer a estreia mundial do álbum Revolver aos microfones da Renascença. A convite de Villas-Boas, foi o sócio n.º 2 do Cascais Jazz e esteve ligado, por diversas vezes, ao Festival da Canção, lamentando que Paulo de Carvalho não tivesse seguido o seu conselho de cantar E Depois do Adeus em inglês, o que o teria poupado a um desonroso e muito injusto último lugar na Eurovisão de 1974.

Entre 1975 e 1979, e a convite de Alfredo Barroso, chefe de gabinete de Soares no MNE, esteve ao serviço da Missão Portuguesa na ONU, em Nova Iorque. Viveu aí o “apagão” de 1977 e os domingos amenos do Central Park, aí falou com Woody Allen num brunch dominical no P.J. Clarke’s, dando-lhe os parabéns pelo recém-estreado Annie Hall, conversou com Sónia Braga, teve várias “namoradas de recibo verde” e gozou as delícias do pré-sida, com encontros casuais de uma noite rematados pelo clássico nova-iorquino “Your appartment or mine?”.

Um dia, quando comprava móveis para casa, conheceu Joyce, uma modelo oriunda de uma família judaica multimilionária, que lhe abriu as portas das mansões semitas de Long Island e dos seus ambientes extravagantes. Depois, regressado a Portugal, prosseguiu a sua carreira de sedutor - de mulheres e de audiências -, envolvendo-se com muitas colegas de profissão, hoje figuras famosas, mas cujos nomes tem a prudência e o bom gosto de não desvendar. Há pouco, publicou Conte-Me Tudo, resenha de algumas das suas grandes entrevistas, com destaque para uma com Álvaro Cunhal, em que falaram de galgos afegãos, entre outras bichezas.

De súbito, tudo mudou. Em finais de 2002, surgiram as primeiras notícias sobre o seu alegado envolvimento numa rede pedófila com epicentro na Casa Pia de Lisboa. Pouco depois, foi detido, seguindo-se a acusação, o julgamento, a prisão. Sempre batalhou pela sua inocência, que mantém, e até publicou dois livros a proclamá-la (Preso 374, de 2004; Inocente para Além de Qualquer Dúvida, de 2016), mas não foi esse o entendimento dos sucessivos magistrados que o julgaram e, crê-se, de uma parcela significativa da população portuguesa, outrora sua fã devota. A natureza do crime prestava-se, e presta-se, a julgamentos sumários, em regra condenatórios e, pior ainda, indeléveis e eternos.

Durante meses, durante anos, no meio de intensa boataria, Portugal debateu com calor e paixão, e não pouco voyeurismo, coisas tão variadas e entusiasmantes como os sucessos na “casa de Elvas” e num apartamento na Avenida das Forças Armadas, as voltas e reviravoltas de Carlos Silvino, Bibi, as escutas a António Costa e a Ferro Rodrigues (este com o inolvidável “estou-me cagando para o segredo de justiça”), o approach zé-povinho e gingão do causídico José Maria Martins, mais tarde suspenso por nove anos do exercício da advocacia (Diário de Notícias, de 23/9/2015), o blogue Muito Mentiroso, o PGR Souto de Moura e o procurador João Guerra, hoje juiz do Supremo, o singular juiz Rui Teixeira, alvo de um processo disciplinar em 2015 por rejeitar documentos com o novo Acordo Ortográfico, o psiquiatra Rui Frade, que afinal o não era, um alegado sinal no ventre de Paulo Pedroso, a prisão deste em São Bento e o seu regresso ali, em arruaça de deputados que nem o mobiliário parlamentar poupou, e, por fim, mas não por último, as manchas no pénis de Carlos Cruz, tema a que este dedica várias páginas de um dos seus livros de auto-defesa.

Como sempre, a opinião pública tratou este caso como um Benfica/Sporting e, por todo o lado, das paragens de autocarros aos gabinetes ministeriais, passando pelos cafés de província ou pelas repartições do Estado, formularam-se juízos implacáveis, definitivos, ora num sentido ou no outro, com base apenas no que a comunicação social ia transmitindo do processo e seus avanços, em reportagens amiúde manipuladas por um dos lados da liça (a jornalista Inês Serra Lopes, filha do principal advogado de Cruz, acabaria condenada por crime de favorecimento pessoal por ter tentado que uma funcionária da Casa Pia incriminasse um suposto sósia de Carlos Cruz, reformado da RTP por razões psiquiátricas). Enquanto tal sucedia, poucos falaram do que noutros lugares se passava, fosse no silêncio das sacristias, fosse com o desaparecido Rui Pedro, jamais encontrado, ou fosse, enfim, com um antigo professor de Física da St. Julian’s, “Mike”, o qual, condenado a 34 meses de prisão por vários crimes sexuais com adolescentes, aproveitou o langor da justiça portuguesa para fugir rumo a parte incerta, onde, por ser incerta, nunca foi apanhado.

O passar dos anos veio mostrar que, para o cidadão comum, a culpabilidade ou inocência de Carlos Cruz não é, e nunca foi, uma questão de razão ou ciência, mas antes um artigo de fé, de impressão, de convicção. Quanto ao crime, seja ele culpado ou inocente, o certo é que Cruz pagou a pena que a Justiça entendeu aplicar-lhe. Agora, só falta a indemnização devida às vítimas, matéria ainda hoje entregue aos tribunais (quanto ao Estado, foi condenado em 2006 a pagar mais de dois milhões de euros a 44 vítimas de abusos na Casa Pia de Lisboa). Passaram quase 30 anos sobre os factos, o apresentador já entrou e saiu da cadeia, o mesmo sucedendo a Carlos Silvino, o qual, após 12 anos na prisão, rumou em 2022 a um centro de acolhimento, por ter perdido a casa onde morava. Trinta anos, ou quase, sem Justiça. Mais do que a culpa ou a inocência do cidadão Carlos Cruz, é isso, é essa inconcebível tardança, que a todos nós interpela - ou, melhor dito, envergonha.
 

Historiador.

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