Cantoneiros: “Só custam os primeiros dois dias. Depois, o cheiro entranha-se”.
“Vim para este trabalho porque o ordenado é certo ao fim do mês. É uma questão de hábito. Só custam os primeiros dois dias, por causa do cheiro. Depois, o cheiro entranha-se”, confessa Ramiro Fernandes, 35 anos, cantoneiro há dois. Ramiro faz parte de uma equipa de quatro homens, três cantoneiros e um motorista, que faz a recolha de resíduos indiferenciados - lixo comum - na zona de Alvalade, Lisboa.
O percurso é difícil e longo. Todo feito a pé, à medida que vão sendo recolhidos os caixotes do lixo dos edifícios. É inverno, a noite está fria e o cheiro não se nota por aí além. “No verão é pior, com o calor há mais mau cheiro”, explica Júlio Flor, 49 anos, chefe de divisão de limpeza urbana, que nesta noite também saiu à rua, para acompanhar a reportagem do DN. Tiago Correia, 37 anos, e Luís Monteiro, 48, são os outros dois cantoneiros desta equipa. E são novos na profissão: ambos chegaram há dois meses. “Estive 13 anos a trabalhar no porto de Lisboa, sou monobrador de máquinas”, conta Tiago. A pandemia atirou-o para o desemprego. Viu na recolha de lixo uma oportunidade de emprego e está satisfeito. “Sinto-me útil. A recolha de lixo é bastante importante, não só para manter os espaços limpos, como para evitar maus cheiros e doenças”. Ainda está a habituar-se à profissão. “Estou no período experimental mas espero continuar. É de louvar o trabalho que nós fazemos porque a higiene urbana é fundamental”. No dia a dia já se habituou a ter certos cuidados “com os carros que vão a passar, para não sermos atropelados, e com as pessoas, para não incomodarmos”. Quando lhe perguntam o que faz afiança que diz com orgulho ser cantoneiro. “Quando digo que ando na recolha do lixo perguntam-me muito pelo cheiro. O cheiro não se nota. De resto, é um trabalho honesto, como outro qualquer, e não sinto qualquer preconceito”.
Tiago, tal como os outros cantoneiros, ganha cerca de mil euros limpos por mês. Este valor já inclui o subsídio de insalubridade, atribuído pelo facto de estes trabalhadores lidarem, diariamente com lixo e sujidade. “Podíamos ganhar melhor”, lança. De resto, garante o antigo manobrador de máquinas: “Sinto-me bem, é um trabalho que gosto porque ando sempre na rua e com colegas, nunca estou sozinho”.
Luís Monteiro, o colega, trabalhava como motorista, a recibos verdes, antes de se inscrever para cantoneiro, na câmara municipal de Lisboa (CML). “Surgiu esta oportunidade e, acima de tudo, é um emprego com estabilidade”. No entanto, o cantoneiro, de 48 anos, não nega as dificuldades da profissão. “Imagino que muitas pessoas não querem fazer este trabalho. Talvez pelo estigma de andarmos a apanhar lixo e de mexermos com matérias perigosas e com sujidade. Uma pessoa tem de se mentalizar para o que vem fazer. Desde que isso aconteça, o trabalho corre bem”.
Tal como Tiago Correia, também Luís assegura:“Sinto-me muito útil, porque se não houver recolha de lixo não há uma boa conservação da limpeza da cidade. É uma profissão com uma grande nobreza, nesse sentido”. Quanto ao salário, também para Luís podia ser melhor. “Não é mal nem bem pago. Isto não é um trabalho fácil, por isso podia ser mais bem pago. No entanto, acabamos por ter outros benefícios, como o subsídio de insalubridade, porque o ordenado base é o mínimo. Acima de tudo, o que eu mais valorizo aqui é a estabilidade profissional”.
Luís não se queixa dos maus cheiros que, por vezes, exalam dos sacos e caixotes do lixo. “Sabemos que não estamos num jardim, a mexer em flores; estamos a mexer em lixo. Não posso dizer que cheira bem, mas são as nossas funções. Não somos jardineiros, portanto temos de nos adaptar ao que estamos a fazer”, afirma o homem que, ao mesmo tempo, afiança não sentir “qualquer preconceito ou rejeição por ter esta profissão”.
No meio do lixo, o que mais faz confusão a Luís é o desperdício alimentar. “Faz-me muita impressão quando vejo comida desperdiçada no lixo. Há muita gente a passar fome e, no meio do lixo, vê-se muita comida que podia ser aproveitada para alimentar muita gente. Há pessoas sem nada para comer e deita-se tanta comida fora”, lamenta”. O colega Ramiro Fernandes tem a mesma percepção. “Vê-se muita comida boa no lixo: bolos, batatas, todo o tipo de legumes, sobretudo nos caixotes dos supermercados. Isso, para mim, é muito chocante”.
Ramiro chegou há dois anos à profissão. “Aqui o dinheiro é certo ao fim do mês e não me sentia bem no meu trabalho anterior. Trabalhava numa empresa de peixe congelado passava a vida fechado numa sala de produção, nem sequer via a luz do dia. Aqui, pelo menos, ando na rua”, observa. O salário, mais uma vez, não satisfaz totalmente. “Para conseguirmos tirar os mil euros limpos ao fim do mês temos de trabalhar aos fins de semana, à noite, temos o subsídio de insalubridade, porque a base é baixa, é o ordenado mínimo. Não me sinto bem pago, sobretudo tendo em conta o que é o nosso trabalho. A única vantagem que temos é que é trabalho certo”.
Há três turnos de recolha de resíduos urbanos: dois diurnos e um noturno. O DN acompanhou o turno da noite. Pelas 22:30 a azáfama era grande no Centro Operacional de Recolha dos Olivais. É daqui que saem todos os carros de recolha do lixo, com um condutor e dois cantoneiros. Se houver necessidade de reforço - como foi o caso da equipa que o DN acompanhou - outro cantoneiro é levado até à zona de recolha. Os cantoneiros começam a recolher os caixotes do lixo pelas 23:00. O percurso que o DN acompanhou é feito por ruas paralelas e perpendiculares no bairro de Alvalade. “Este circuito que estamos a acompanhar é um serviço de recolha porta a porta. Todos os prédios, nesta zona da cidade, têm contentores, com os vários fluxos - indiferenciados, papel e embalagens - o vidro é recolhido com recurso a equipamentos na via pública, os vidrões”, explica Júlio Flor. “Este trabalho é de louvar, porque é muito duro fisicamente. Repare que os cantoneiros fazem todo o percurso a pé, recolhendo os contentores, atrás do camião. São poucas as distâncias que percorrem pendurados nos estribos. Além disso, é um trabalho invisível, porque a maior parte da recolha do lixo é feita de noite, quando a maior parte dos munícipes está a dormir”.
A maior parte dos cantoneiros é do sexo masculino. “Ainda é uma profissão muito de homens mas já temos várias cantoneiras. E temos três senhoras motoristas que conduzem este tipo de camiões pesados. Durante o dia, temos mais senhoras a conduzir as carrinhas de caixa aberta para a recolha de monos”. Manuel Gomes, 66 anos, é o motorista da equipa que o DN acompanhou. “Antes de vir para a CML era camionista. Sucede que passava muito tempo fora de casa e, por exemplo, não assisti ao crescimento do meu filho mais velho”. Foi a mulher que insistiu para que Manuel mudasse de vida. “Quando nasceu o nosso filho mais novo decidi que não seria como o primeiro. Queria acompanhar o crescimento dele. Foi quando vim para este trabalho”.
O motorista está como peixe na água. “A minha mulher diz que para me verem feliz basta darem-me um volante para a mão e alcatrão debaixo dos pés”, ri-se.
Há 25 anos que faz esta rota de recolha, no bairro de Alvalade. Nota diferenças: “Antes, éramos os ‘gajos do lixo’. Hoje em dia somos mais respeitados, as pessoas já nos conhecem, a mim já me trata por Sr. Gomes. É uma diferença jeitosa”. Alvalade é, nas palavras de Manuel Gomes, “um bairro muito sossegado. Os únicos problemas são as pessoas não fecharem bem os sacos do lixo e, por vezes, os caixotes estão muito cheios e o lixo espalha-se todo pelo chão. Em certas ocasiões, há por aí rapazitos mais novos que passam pelo camião e tapam o nariz. Se mandam alguma boca digo-lhes logo: ‘Este lixo é daqui, veio da sua casa, não veio da minha’”, afiança o motorista que se orgulha do trabalho dos colegas cantoneiros. “Sem eles a cidade era só porcaria. E não tenho dúvidas que são mal pagos. Ganham mil euros mas sai-lhes do corpo. Não é nada fácil andar aqui, noite após noite, um mês inteiro, a esvaziar contentores. São sete ou oito toneladas de lixo todos os dias. E às segundas-feiras é pior, chegam a ser 12 a 15 toneladas de lixo que lhes passam pelos braços. Além de que o trabalho noturno desgasta muito uma pessoa”.
Caricata foi a ocasião em que um munícipe pediu para pararem o camião porque tinha atirado, por acidente, a carteira para o lixo. “Ele só dizia que tinha lá dinheiro, documentos, as chaves. Pediu-se ordem, mudaram-me o camião. Levaram o camião original, pediram uma autorização para abrir o camião e, lá a um canto, a pessoa lá procurou pela carteira”.
Pelas quatro da manhã termina a recolha. A cidade acordará sem despojos do dia anterior.