Bombons, tabletes, trufas e outros doces (ou não) mistérios
O que há numa tablete? Não é bem esta a pergunta de Shakespeare mas podia ser: o que há neste nome, chocolate, do qual desde a infância julgamos, por saborear, saber tudo?
"Não, não é um a pergunta parva, é uma boa pergunta", comenta Claudio Corallo, o italiano de 64 anos que desde os anos 90 do século passado produz cacau e chocolate (além de café e pimenta)em São Tomé e Príncipe e que até recentemente comercializou os seus produtos numa loja lisboeta, na Rua Cecílio de Sousa, explorada pelos seus filhos e ex-mulher (atualmente vendem chocolate de outras origens). "A verdade é que ninguém sabe o que é ou não é chocolate." Como assim? "A legislação sobre chocolate é tão complexa que não se percebe. Normalmente chocolate refere-se à fava de cacau moída misturada com outra coisa. Mas a fava de cacau moída, só por si, não pode chamar-se chocolate, chama-se massa de cacau. Já o chocolate branco - que é manteiga de cacau desodorizada com açúcar e leite em pó e que claramente não tem cacau senão não seria branco - chama-se chocolate. A legislação parece ser feita para confundir o consumidor." Mas que legislação é essa? "Há legislação europeia e depois cada país tem a sua definição."
Bom, tentemos antes assim: qual a definição dele, Claudio? "Para mim, chocolate é tudo o que deriva do cacau. E o rei do chocolate é o 100 por cento." Este título, 100 por cento, quer dizer que se trata de um produto só feito de cacau, ou seja, sem açúcar, sem emulsionantes, sem lecitina, sem leite. Só o produto da fava de cacau moída com manteiga de cacau (que é cerca de 54% da mistura). Algo que, como acabou de dizer, não é normalmente denominado como chocolate e que é o seu favorito entre os que produz. "Gosto imenso do meu. Há dois meses um jornalista francês, do L"Express, disse que quem não experimentou o meu chocolate não sabe o que é chocolate. E incomoda-me chamar-lhe isso, porque não tem nada a ver com o chocolate que há no mercado - é mais uma transformação do cacau."
Outra questão, explica Corallo, "é a da origem." Por exemplo, o chocolate de São Tomé: "Só são produzidas duas mil toneladas de cacau por ano em São Tomé. É uma pequeníssima produção. E eu sou o único, neste momento, a produzir chocolate no país. Mas uma companhia na Bélgica pode comprar cacau daqui, transforma, faz chocolate e tem o direito de lhe chamar chocolate de São Tomé." Isto porque não há certificação de origem (uma das reivindicações da campanha Make Chocolate Fair - ver texto secundário). Claudio ri. "Já me aconteceu virem-me dizer que o meu chocolate ficou pior quando mudei de embalagem. Porque compraram um chocolate que diz São Tomé pensando que é o meu e não é." Como resolver? Suspira. "A melhor garantia para o consumidor é a verdadeira transparência. O chocolate à venda deve ter toda a informação, para que as pessoas percebam claramente de onde vem o cacau e onde foi transformado. Mas o problema é que as leis são feitas em função das multinacionais, que transformaram defeitos em qualidade. Porque contam-se pelos dedos das mãos os que fazem o chocolate desde a fava. Muitas marcas compram chocolate e derretem - são aquilo a que se chama fonditori [fundidores]."
Nem de propósito para ilustrar a preocupação de Corallo, um escândalo abalou nesta semana o mundo do chocolate. Dois irmãos americanos chocolateiros, os Mast Brothers, que se anunciavam como produtores artesanais, "da fava [de cacau] à tablete", do "melhor chocolate do mundo", foram acusados de, pelo menos no início da sua atividade, lançada em 2006 em Brooklyn (supostamente a partir da cozinha do respetivo apartamento), se limitarem a comprar chocolate industrial, produzido pela famosa empresa francesa Valrhona, e a transformá-lo, embrulhando-o em papéis bonitos para o vender por uns inacreditáveis dez dólares (nove euros) por tablete. Quem expôs a história, o site Dallasfood.org, já tinha feito uma investigação semelhante, em 2006, sobre a companhia texana chocolateira Noka, que supostamente vendia "o chocolate mais caro do mundo", revelando que o casal que a dirigia tinha desde o início mentido sobre tudo - origem, composição, fabricação, etc. - do produto.
"Não era doido por chocolate"
Num negócio - o do chocolate dito gourmet - em que se apregoa a "autenticidade" e o "genuíno" e se cobra com base nessa ideia, a revelação destes dois casos permite perceber que deve haver muito gato por lebre. Miguel Tedim, 42 anos, chocolateiro da Casa Equador, conhece o caso Mast. E assente: "Há muita coisa que se vende como chocolate que não é." Por exemplo, das marcas que se vendem no supermercado, quais são a seu ver aceitáveis? "Não vou falar de marcas, mas as pessoas devem estar atentas à rotulagem, aos ingredientes. Chocolate negro tem de ter a partir de 55% de cacau. E qualquer chocolate que se diga ter abaixo de 31% de cacau não é chocolate, é um sucedâneo." Como Claudio, que afirma nunca ter sido "doido por chocolate", Miguel, que fez formação de chocolateiro em 2009, na École du Grand Chocolat, da Valrhona, em França (era de origem cozinheiro), desafiado pelo irmão, Celestino Fonseca, que com a mulher abriu a primeira loja Equador no Porto, confessa que em miúdo uma tablete lhe durava seis meses. "A minha mãe colocava no sapatinho uma tablete de chocolate de leite da marca Jubileu e aquilo durava-me meio ano. poupava, para não comer todo de uma vez." Mais tarde "comprava aquelas barras tipo Bounty e adorava o chocolate de culinária, o Pantagruel. O resto que havia à venda era chocolate de leite de fraca qualidade."
Nada que se pareça com a oferta hoje existente e com a onda do chocolate gourmet e "de autor" que invadiu o mundo e também Portugal. "Em França sempre foi assim, e na Bélgica também. Sempre houve chocolateiros. Em França comem 15 quilos de chocolate por pessoa, por ano. Nós, agora, comemos um quilo e meio. E até há pouco tempo era muito menos." Criada em 2009 pelo irmão e cunhada, a Equador começou por encomendar os seus produtos a um chocolateiro de Leiria; só em 2011 abriu fábrica própria, dirigida por Miguel Tedim. "Somos transformadores de chocolate, não produtores. Mas no próximo ano vamos avançar para uma exploração em São Tomé. Vamos explorar uns cacaueiros que não estão a ser explorados, tivemos um convite. Vamos fazer o nosso próprio chocolate. Mas continuaremos a comprar de fora, que é o que praticamente toda a gente faz. Compra-se em pastilha, uma espécie de bolinhas, de pasta de cacau. A nossa vem de França, de uma empresa que tem uma marca belga e uma marca francesa. Mas o segredo é a alma do negócio."
Com cinco pessoas a trabalhar na produção (mais duas na embalagem), a Equador transforma por ano 20 a 25 toneladas de chocolate e, perante um ano que está a correr melhor do que os anteriores, prevê dobrar isso. Contando já com três lojas de rua e um corner no El Corte Inglés do Porto, está a planear a abertura de uma outra loja, com um sócio, em Copenhaga. "Já fazemos exportação para a Dinamarca. E também para Japão, China, Finlândia, e mais recentemente para Inglaterra, para Londres. Só de tabletes de cem gramas e algumas trufas. O bombom não exportamos porque é complicado de manter em condições." Terem começado o negócio em plena crise não parece ter sido um óbice ao sucesso, apesar de o chocolate, e mais ainda o chocolate gourmet, ser tipicamente um produto de luxo. "Não é um bem de primeira necessidade, claro - se bem que para mim é, aquele chocolatinho preto à noite tem de ir." Ri. "Mas não pensámos muito nisso e não investimos muito à primeira, só quando tivemos algum dinheiro fomos comprando máquinas." As máquinas em causa, de "emperagem", servem para aquecer e arrefecer a pasta de chocolate obtendo as temperaturas exatas. "Antes fazia à mão, numa pedra, e derretia o chocolate em banho-maria, ou no micro-ondas, e arrefecia-o de várias formas. Mas era muito difícil, não conseguia fazer muita quantidade."
Difícil é, diz Claudio Corallo, a quem uma revista alemã denominou "guerrilheiro do cacau", a produção agrícola e a transformação do cacau. Produzindo 20 toneladas por ano (um por cento da produção do país, informa) num total de 180 hectares de plantações que incluem também café e pimenta e envolvem cerca de 300 pessoas, com um volume de negócios de cerca de 350 a 400 mil euros por ano, Claudio, que tirou na Toscana natal o curso de Agronomia Tropical e esteve no antigo Zaire a explorar plantações de café até a situação política se tornar impossível, certifica que é "uma vida um pouco dura, uma luta constante". Trabalhar no campo, chova ou não chova, descreve. "E eu faço tudo. Tenho de saber fazer para dar o exemplo. E a minha paixão é a poda."
Decerto a maioria das pessoas que comem chocolate nunca viram um cacaueiro e muito menos o respetivo fruto, de média dimensão e casca amarela, que uma vez aberto revela as favas do cacau envoltas numa pasta branca. Tudo isso se vê no site de Claudio (www.claudiocorallo.com), que conta todo o processo: "As favas têm de fermentar primeiro - é uma fermentação natural - e depois são torradas. De seguida são reduzidas a pasta." E faz-se o chocolate, vendido em lojas de todo o mundo (há duas, na Califórnia, que só vendem produtos Claudio Corallo) e agora também online. "Tem sido um grande sucesso. A base é a Holanda. Escolhemos a Holanda porque faz frio, é melhor para o chocolate. Se escolhêssemos a Itália ou Portugal poderia haver problemas." O que se vende mais, adiante, é o ubric: "Passas maceradas em aguardente e chocolate 70%." Porque será? A voz tem um sorriso: "Talvez porque as pessoas gostam do chocolate mas também do álcool."