“Se eu tivesse condições não estaria aqui. A viver aqui, convivo com baratas e ratos todos os dias dentro de casa”, lamenta Elisabete Maria Afonso, 53 anos, que sobrevive numa casa abarracada, no bairro de Montemor, em Loures. “Tenho de ter tudo muito bem organizado e limpo porque senão os bichos atacam. As baratas já destruíram a minha alimentação”. Desolada, a mulher, santomense, desabafa: “Vieram ver a nossa desgraça?”. .Além da insalubridade, a mulher depara-se ainda com a sobrelotação da casa abarracada. “Somos oito pessoas em três divisões”. Está desempregada. “Vim para Portugal porque sou muito doente da coluna, recebi autorização para me tratar cá e fiquei”..Há muito lixo e destroços espalhados pelo bairro. A câmara municipal de Loures procedeu a duas demolições, de várias habitações precárias, há poucas semanas. Há quem já nem sequer tenha um teto. É o caso de Fábio, um dos elementos de uma família de oito pessoas, uma das quais um adolescente doente, que veio para Portugal por isso mesmo: para tratar-se. “Agora estamos divididos por várias casas, de parentes e vizinhos”, revela o rapaz, de 21 anos, desempregado, em cima da cama, que ficou intacta, no meio do entulho da barraca mandada abaixo. “O contrato acabou e o patrão mandou-me embora, era eletricista”, conta..Há poucas semanas também houve demolições noutro bairro de Loures, o Zambujal. Está previsto o realojamento de 40 famílias, em casas a construir em terrenos próximos de onde se erguem agora as construções precárias. Haverá outras demolições e realojamentos. “A Estratégia Local de Habitação, atualmente em vigor, prevê a reabilitação / construção / aquisição de 2294 fogos, de acordo com o levantamento efetuado em 2021, para colmatar as carências habitacionais identificadas no território”, informa o município, ao DN. .Porém, não é só nos arredores de Lisboa que há pessoas a viver em locais precários. Na própria capital, o DN encontrou várias situações destas. “Aqui vive um açoriano com a mulher e a filha”, relata um vizinho, na Quinta do Alto, paredes meias com o aeroporto Humberto Delgado. Ali ergue-se uma barraca, à qual não falta uma antena parabólica para receber sinal de televisão, mas onde falta tudo o resto..Mesmo em frente, outra barraca, de tijolo. “Aí mora um rapaz que era sem abrigo. Meteu-se aí dentro”, conta o mesmo vizinho, que prefere não ser identificado. Do lado de fora da barraca há roupa estendida. Apercebemo-nos que, lá dentro, há uma espécie de casa de banho. Pelo vidro, conseguimos observar produtos de higiene pessoal. Há muita sucata em volta da barraca. “Ele governa-se a vender isso”..Enclave de pobreza em Lisboa.A pouca distância, em Marvila, na Azinhaga do Ferrão, o DN deparou-se com situações idênticas. “Ali mora o Pinto e, lá para o fundo da azinhaga, estão três ucranianos, dois homens e uma mulher. Sei pouco deles, são muito calados. O Pinto morava numa casa mas zangou-se com a mulher e agora está aqui”, conta o vizinho Francisco Antunes, que tem uma horta naquela zona, apontando para a barraca do homem..Outro caso de habitação degradada e muita pobreza é o da Quinta do Ferro, em S. Vicente, perto do recinto onde se realiza a Feira da Ladra. José Rosa é um dos proprietários dos edifícios degradados que, mesmo assim, albergam gente. “Isto é inadmissível no centro histórico de Lisboa. Há casas que não estão em condições de ser habitadas, mas moram lá pessoas”..Os arrendatários nem sempre cumprem os contratos de arrendamento. “É uma habitação cíclica, porque há pessoas que estão lá uma semana ou duas, depois subarrendam e há negócios que nós não conseguimos controlar”.. Algumas casas já foram invadidas. Há tráfico de droga e medo entre os residentes. É o próprio proprietário de dois pequenos prédios - muito degradados - que dá conta da situação. “Há um problema ali. Aquilo tornou-se quase uma espécie de Casal Ventoso com traficantes de droga”..José Rosa garante já ter sido “ameaçado” e enfrentado os traficantes. “Um ocupou-me um sótão. Era a única parte da casa que estava com telhado. Vi-me obrigado a tirar as telhas, para que aquilo não se transformasse num armazém de droga”. Inconformado, garante: “Gastei mais dinheiro a destruir do que a construir”. .Por ali, além de senhorios privados há património pertencente à câmara municipal de Lisboa. E um projeto para acabar com a miséria que está à vista de quem passa pelo enclave, localizado numa das zonas mais turísticas da cidade. “O projeto foi finalmente aprovado em Assembleia Municipal, no dia 24, sempre com unanimidade”. Está prevista a construção de um prédio com cerca de 30 fogos para realojar quem ainda ali mora, na rua da Verónica, na Graça. “Estamos rodeados de habitações vendidas a mais de sete mil euros o metro quadrado. A Quinta do Ferro é uma bolsa de pobreza no meio daquela riqueza toda. Há ali prédios, à volta, com piscina no sótão”, assegura José Rosa..Este é o cenário, em Lisboa, 31 anos após o lançamento do Plano Especial de Realojamento (PER), que se propunha erradicar as barracas em Lisboa. De facto, muitas foram abaixo. Algumas continuam, desde esse tempo. Confrontada, a autarquia garante: “A habitação digna é uma prioridade para o executivo, presidido por Carlos Moedas, que em dois anos colocou em marcha um investimento inédito de 800 milhões de euros em habitação, que está já em execução e se prolongará até 2028”..O município afiança, ainda, que a par deste investimento existe um “acompanhamento próximo de situações de grave carência habitacional e de grande vulnerabilidade sócio familiar. A câmara está a investir mais, a construir mais, a reabilitar mais e a criar programas para combater as desigualdades na habitação”..No âmbito das suas políticas de habitação, a CML frisa já ter entregue “1800 chaves de habitações concretizada no atual mandato, resultante das reabilitações de frações vagas e devolutas, bem como da construção de novas habitações". .Mesmo perante as evidências, de continuarem a existir, dentro da capital, barracas, casas abarracadas e outras completamente degradadas, a autarquia afiança, ao DN, que conta com todos os munícipes. “A CML tem vindo a diversificar os programas de acesso à habitação para incluir mais famílias carenciadas, os profissionais deslocados, as famílias de classe média e os jovens profissionais”..Centenas de barracas em Almada.Na Trafaria, concelho de Almada, localiza-se um dos maiores bairros de barracas da área metropolitana de Lisboa: o 2º Torrão. “Atualmente, a narrativa de quem lá mora aponta para dois mil moradores, mas não temos números concretos”, revela João Cão, investigador em Ciências Sociais e que tem dado apoio, no bairro. .É muita gente a morar no meio do lixo, dos ratos e das baratas. “Quando houve as demolições, em outubro de 2022, aí havia mais pestes, mais baratas, ratos, tudo isso. Mas continua a haver ratazanas, sobretudo na zona mais junto ao rio. Além disso, há muitos cães e gatos que são ali abandonados e que deambulam pelo bairro”..João Cão aponta, ainda, outras necessidades básicas que não são supridas. “Há uma parte do bairro, que é a rua Gago Coutinho, que tem contadores de eletricidade. O resto são puxadas. Não há saneamento básico, o que muitas pessoas fazem são fossas, e também não há água canalizada”..Seguimos para o bairro Terras da Costa. Por ali, já houve demolições e realojamentos, dispersos pelo concelho de Almada. Os restantes moradores, segundo Ana Catarino, antropóloga, que acompanhou o DN, “serão realojados até ao final do ano”. . Domingas Cabral, 70 anos, sabe que terá uma casa mas não acredita que lhe arrendem um espaço comercial para poder ter um café e mercearia, como tem agora. “Tenho a minha reforma, é pequenina, mas a minha filha é doente. O que vamos fazer?”, interroga-se.Mesmo ao lado, outra vizinha, Maria Pereira, 43 anos, chora. Tem seis filhos, já teve três trabalhos ao mesmo tempo para sustentar a família. Agora tem um café. “Só vamos ter casa, não vamos ter o comércio. O pior é que quando procuro trabalho dizem-me que tenho muitos filhos e que não tenho tempo para trabalhar. Lutei muito para trazer os meus filhos para Portugal! Tenho medo”, conclui a cabo-verdiana.. A família numerosa acotovela-se numa pequena casa abarracada. O realojamento é bem-vindo mas a mulher teme que o marido, que trabalha nas obras, venha a ser o único sustento de tantas bocas para alimentar..Contactada pelo DN, a câmara municipal de Almada não deu qualquer resposta sobre a possibilidade de novos realojamentos.