Como é a relação com os outros embaixadores na UNESCO de língua portuguesa, ou seja, o facto de falarem a mesma língua aproxima-vos ou, na verdade, para poliglotas - como geralmente os diplomatas são - é uma coisa de somenos? Não, é uma coisa que nos aproxima muito. Precisamos de fazer mais, de trabalhar mais em conjunto ainda, nos países da CPLP, nas organizações multilaterais, mas a nossa relação com o embaixador do Brasil é praticamente diária, assim como com Angola e Moçambique; com Cabo Verde é também muito regular. Portanto, a nossa proximidade é forte e estamos a conseguir, no quadro da UNESCO, ter uma ação concertada importante, e isso tem obviamente que ver com a língua portuguesa..Foi em tempos professor convidado da Universidade de Brasília e também no Rio de Janeiro. Quando pensamos na língua portuguesa é inevitável pensar no Brasil como - vou usar uma citação de Luís Faro Ramos, o anterior presidente do Instituto Camões e agora lá embaixador - "o navio-almirante da língua portuguesa"? Eu tenho uma relação muito próxima com o Brasil - fui várias vezes convidado por universidades brasileiras, estive em Brasília em 2014, estive no Rio de Janeiro em 2017 -, uma relação muito profunda a nível pessoal, institucional e académico. Obviamente, o Brasil é a grande referência da língua portuguesa do ponto de vista quantitativo, do ponto de vista da sua presença no mundo, e tudo o que fizermos sobre a língua portuguesa vai estar, em grande parte, dependente da colaboração do Brasil, e o Brasil tem dito isso. O Dia Mundial da Língua Portuguesa avançou, certamente por iniciativa nossa, mas desde o primeiro momento com a colaboração do Brasil, aliás, com a colaboração de todos os embaixadores dos países da CPLP, e foi isso que lhe deu força. Foi uma iniciativa que teve força justamente por essa presença conjunta de todos os embaixadores. É muito interessante ver, um ano e meio depois da proclamação do Dia Mundial da Língua Portuguesa, que a língua está nas organizações multilaterais com mais força, com mais visibilidade. Toda a gente fala deste dia, toda a gente fala da língua portuguesa. Obviamente que a eleição de António Guterres para secretário-geral das Nações Unidas teve também um contributo muito importante. Aliás, no vídeo do Dia Mundial da Língua Portuguesa, a mensagem que ele faz neste ano sobre a língua é muito interessante. Falando do Brasil, é óbvio que se um dia o Brasil conseguir chegar a ser membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, isso será também um elemento central para a afirmação da língua portuguesa no multilateralismo..Aquelas estimativas de duplicação do número de falantes até 2100, de 260 milhões para 500 milhões, é muito à custa do crescimento demográfico em África. Países como Angola, Moçambique, Cabo Verde, estão em condições de garantir que o ensino da língua, a educação em português, avança à medida do crescimento da população? Eu creio que sim. Há a presença nomeadamente na UNESCO desses três países que referiu - Angola, Moçambique e Cabo Verde -, com um compromisso muito forte das delegações e dos embaixadores desses países com a língua portuguesa. Obviamente que a demografia e o crescimento demográfico de África vai ser a grande realidade das décadas que nos faltam do século XXI. Essa realidade vai projetar a língua portuguesa para um outro plano, do ponto de vista da sua afirmação em África, uma vez que ela já é praticamente dominante ou fortemente presente na América do Sul. Essa realidade é muito importante. Claro que as situações não são iguais, pois a situação em Moçambique é mais difícil do que a situação em Angola ou em Cabo Verde. Claro que há um caminho imenso a fazer do ponto de vista da educação, do ensino, da cultura, da ciência. Eu tenho tocado muito na tecla da ciência porque esta é uma realidade central do século XXI, e nós não podemos deixar de fazer essa afirmação do português como língua de ciência. Foi por isso que no ano passado, no primeiro Dia Mundial da Língua Portuguesa, nós quisemos marcar a criação de um centro UNESCO para a formação de cientistas dos PALOP, o que é uma realidade muito importante. Neste ano, estamos a querer assinalar este segundo aniversário com um programa de formação de professores de língua portuguesa para os PALOP..Faz sentido para si quando se diz que a língua tem também um valor económico muito forte? Faz, porque quando nós olhamos, por exemplo, para uma realidade como a China, onde há um grande interesse pelo ensino da língua portuguesa - as universidades chinesas, e não só, estão a expandir muitíssimo a oferta de programas de língua portuguesa - vemos que, em grande parte, é porque há também um interesse económico, um interesse do ponto de vista do emprego, das oportunidades de emprego que isso cria e isso é, obviamente, um elemento central. De novo é o Brasil que tem aqui um papel preponderante, como, aliás, quando se diz que a língua portuguesa é uma das mais presentes em termos de conteúdos digitais no mundo - o que é verdade, e a questão dos conteúdos digitais é obviamente um tema muito importante para as próximas décadas - isso deve-se acima de tudo ao Brasil e à capacidade de produção artística, cultural, de conteúdos, de comunicação que o Brasil tem, à pujança que aquele país tem..Li uma referência sua à língua portuguesa nas Aventuras de Gulliver. Significa que um escritor britânico do século XVIII como Jonathan Swift estava a reconhecer o português ainda como uma língua franca. Como é que olha, a partir da UNESCO e da promoção da cultura e da língua portuguesas, para estas polémicas hoje sobre o legado do império , o revisitar da história? São duas realidades que têm de ser seguidas ao mesmo tempo, isto é, a ideia de que o português teve um papel muito importante no mundo e tem um papel muito importante no mundo. E essa ideia de que Gulliver, no princípio do século XVIII, se "desenrascava" em português, e que isso era a maneira de ele sobreviver no meio de tantos problemas e de tantas aventuras, é uma ideia muito, muito curiosa. Obviamente que hoje nós não podemos deixar de fazer - como disse o senhor Presidente da República - uma reflexão profunda sobre o que foi o império, sobre as diversas formas de colonialismo, de dominação, que existem no mundo. Esse é hoje um movimento central para todos nós e a língua portuguesa é uma língua que está bem colocada para fazer isso, justamente por aquilo que eu referia no princípio - o seu pluricentrismo. É uma língua que está em Portugal, claro, mas em Portugal somos dez milhões, o que comparado com os 260 milhões é pouco. Portanto, é uma língua que pelo seu pluricentrismo e pelo seu enraizamento em diversas culturas, em diversos continentes, em diversas realidades, está particularmente bem situada para poder ser um elemento positivo, um elemento importante nesse debate. No ano passado, citei várias vezes o Rui Knopfli que tem, de facto, uns apontamentos extraordinários. Uma das coisas que ele diz é justamente esta ideia de que a língua é um caudal de um rio e que esse caudal é o resultado dos seus afluentes. Depois acrescenta: "E tanto melhor quanto mais tumultuosos"..leonidio.ferreira@dn.pt