A formação de coágulos associados a um maior risco de hemorragia após a administração da vacina da AstraZeneca em mais de 30 doentes no continente europeu fez soar os alarmes da farmacovigilância. Durante esta semana, mais de 20 países, incluindo Portugal, decidiram suspender a administração da vacina até a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) fazer uma avaliação aos casos detetados e tomar uma decisão sobre o que fazer. O que está em cima da mesa e a importância da suspensão da vacina e de mais uma avaliação são algumas das questões para as quais o DN quis obter respostas. O médico, investigador em imunologia do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes e especialista da Comissão Técnica para Vacinação contra a covid-19, Luís Graça, aceitou responder, sublinhando logo que tal situação é normal e a sua deteção só prova que o sistema de farmacovigilância funcionou..A EMA reúne-se hoje para analisar os efeitos secundários identificados após a administração da vacina da AstraZeneca. Numa situação como esta, o que está em cima da mesa para ser avaliado? O que vai ser avaliado é se existe evidência científica que defina uma relação causal entre a vacinação e as situações médicas observadas em algumas pessoas vacinadas ou se é apenas coincidência. É muito importante que se faça esta avaliação, pois é natural que, quando se está a vacinar milhões de pessoas, muitas delas possam desenvolver, por coincidência, manifestações clínicas que não tenham sido detetadas anteriormente. Mas a EMA vai avaliar outra situação também: perceber se entre os casos que estão a ser revistos há pessoas com determinadas características específicas. Se assim for, e apesar de serem casos muito raros, pode ser necessário implementar medidas que reduzam o risco destes efeitos nessas pessoas..Foi o que aconteceu no caso das reações a alergias severas? Essa foi uma primeira situação que a EMA teve de rever com o início da vacinação contra a covid-19. Assim que começou a ser aplicada a vacina da Pfizer no Reino Unido houve pessoas que manifestaram reações alérgicas muito graves. E o que se verificou com a avaliação desses casos foi que era particularmente importante proteger e estar atento às pessoas que iriam ser vacinadas e que têm história de resposta a reações alérgicas a medicamentos. Isso permitiu condicionar os riscos e continuar com a vacinação..Os efeitos identificados com a administração da vacina da AstraZeneca na população real estavam registados nos ensaios clínicos? Estes efeitos não estavam verificados nos ensaios clínicos que deram origem à aprovação e utilização da vacina da AstraZeneca, mas, quer seja em relação às vacinas ou a qualquer outro medicamento, a avaliação de segurança continua mesmo após a sua aprovação. É uma garantia de segurança quanto ao uso da vacina ou do medicamento, porque assim é possível identificar situações mais raras e menos frequentes que só surgem quando estes são administrados a milhões de pessoas. Foi o que aconteceu neste caso. A avaliação não terminou com a sua autorização e quando a vacina começou a ser administrada em milhões foram detetados eventos muito raros que não foram identificados nos ensaios clínicos que envolveram milhares de pessoas. O que está a acontecer, repito, é a demonstração que o processo de farmacovigilância, mesmo numa situação que envolve milhões de pessoas, funcionou, provando ter mecanismos para garantir a segurança do produto..O número de casos de formação de coágulos é de cerca de 30 em 15 milhões de pessoas vacinadas. É um número significativo? Em termos de número até pode ser pouco significativo, mas se pensarmos que poderá haver uma maior representação destes casos num grupo de população com determinadas características, a situação muda de figura e tem um significado muito importante, porque passa a ser fundamental que se identifique todas as pessoas com maior suscetibilidade para o desenvolvimento de uma reação como a que foi detetada e que se tome medidas para as proteger. Por esta razão, não podemos olhar só à distribuição global dos casos na população vacinada, mas temos também de identificar os mais suscetíveis..O Regulador do Medicamento do Reino Unido disse ter registado a formação de coágulos em pessoas que receberam outras vacinas, como a da Pfizer. A formação de coágulos também não estava indicada como efeito nesta vacina e na da Moderna? É preciso salientar que a formação de coágulos, apesar de estar relacionada com os efeitos adversos detetados na vacinada AstraZeneca, não é a preocupação principal das agências de medicamentos. Os casos que estão a ser avaliados são os mais graves, aqueles em que existe uma associação de formação de coágulos, eventos trombóticos, associada ao aumento de risco de hemorragia. Ou seja, a preocupação não é a formação de trombos, mas a associação ao risco de hemorragia. É uma situação rara e com gravidade, porque as tromboses são habitualmente tratadas com medicamentos anticoagulantes, o que não poderá ser feito em doentes com risco aumentado para hemorragia. E é esta situação que tem de ser investigada..Quais os efeitos secundários mais frequentes nas vacinas? Os efeitos secundários atribuídos às vacinas e que são realmente frequentes, os chamados efeitos indesejados, mas não inesperados, são os que resultam da própria resposta do sistema imunitário, como mal-estar geral, alguma febre e dores de cabeça, já referidos por muito dos vacinados - por isso, é recomendado às pessoas que tomem o paracetamol para evitar tais efeitos. Quanto a efeitos graves, felizmente não se pode dizer que neste processo estejam a acontecer muito. Houve só a situação relativa às reações alérgicas, mas que nunca foi um problema fatal..Destaquedestaque"O que está a acontecer é a demonstração de que a farmacovigilância, mesmo numa situação que envolve milhões de pessoas, funciona, provando ter mecanismos para garantir a segurança do produto." .Há países que registaram casos de doentes que manifestaram a formação de coágulos que deram origem a trombose arterial e outros a trombose cerebral. Pode explicar-se a formação destes coágulos? E que consequências têm? A população em geral pode formar trombos por várias razões, nomeadamente por alterações do fluxo sanguíneo. Habitualmente, o sangue flui sem turbulência nos nossos vasos sanguíneos, se há alguma alteração, fazendo que o sangue não chegue a determinadas regiões, isso pode levar à formação de trombos. A consequência é a diminuição de irrigação do sangue e este processo ficar obstruído..Até agora não há indicação de que as pessoas que manifestaram este efeito secundário tivessem patologias associadas. Há mais alguma informação neste sentido? Como já referi, esse é o aspeto importante que vai ser avaliado. É identificar se existe alguma patologia de base que possa explicar a formação de coágulos associada a um maior risco de hemorragia..Há conhecimento de situações idênticas com outras vacinas? Não tenho conhecimento de que alguma vez tenha sido descrita essa situação com outras vacinas. Mas é preciso dizer que é uma situação rara, em milhões de pessoas houve poucos casos..A vacina da AstraZeneca é das que têm estado mais sujeitas a situações de precaução. Primeiro foi a questão da eficácia em maiores de 65 anos e agora a formação de coágulos. São situações normais num produto recém-aprovado? A questão da idade deve ser separada desta. Na idade nunca esteve em causa a perda de eficácia da vacina, apenas os estudos clínicos não envolveram muitas pessoas idosas para se garantir que era eficaz nessa população. E só por essa razão se optou por administrar outras alternativas nessa faixa etária. Em relação à situação específica que vai ser analisada, surgiu pela observação de casos clínicos graves, o que impõe que se investigue. Mas também acontece com outros medicamentos..Portugal e outros países europeus optaram por suspender a vacina, mas outros, como a Bélgica, não o fizeram. A suspensão foi o mal menor perante estes casos? É possível recuperar o tempo perdido? O que prevemos é que esta pausa seja muito curta. Os estudos relativos à segurança relacionada com os efeitos identificados deverão ser apresentados amanhã [hoje] e a EMA deverá anunciar uma decisão. Sabendo-se que destes estudos pode resultar a conclusão de que não existe uma particular preocupação de segurança ou que existe uma preocupação de segurança com determinado grupo de pessoas, a pausa pode ter protegido algumas pessoas e permitir que a administração da vacina seja retomada com melhor segurança..O atraso é recuperável? O atraso na vacinação é uma consequência da disponibilidade de vacinas e não propriamente da suspensão desta vacina. Assim que sair a decisão da EMA será possível recuperar a vacinação. O atraso na percentagem de população vacinada em Portugal e em outros países europeus face a Israel, EUA ou Reino Unido tem a ver com a quantidade de vacinas que estes têm recebido. Não é a estratégia que está a impedir mais vacinação, mas a quantidade de vacinas que nos está a chegar..Como membro da comissão de vacinação, como olha para o futuro da pandemia e para o processo de vacinação? Estou otimista. Já se percebeu que com a vacinação vamos ter cada vez menos mortalidade - veja os lares onde já se reduziu 98% da mortalidade - e cada vez menos internamentos em cuidados intensivos, e estes são o primeiro efeito visível da vacinação, não é a redução no número de casos. Cada vez mais temos uma população protegida em relação à doença grave.