"Às vezes prefiro vir sem a expectativa do surf, há muito para fazer nos Açores"
É incrível como depois de ter andado a surfar pelos mares de todo o mundo e de há três anos ter cavalgado na Nazaré a maior onda do mundo, o lisboeta Hugo Vau ainda se entusiasma com os saltos dos golfinhos ou o repuxo do cachalote que acabamos de avistar ao largo de São Miguel. Admite que é muito por causa do fascínio pelos Açores: "A primeira vez que vim a estas ilhas lindas foi há 22 anos, em 1999, e a partir do momento em que vim uma vez nunca mais consegui deixar de vir. Passei a vir todos os verões aos Açores, para escapar àquela confusão das praias cheias. Estava habituado ao descanso do inverno, a surfar mais tranquilo, e aqui descobri isso e muito mais. Então, depois dessa primeira viagem para os Açores, para São Jorge, comecei a voltar todos os anos até que há 15 anos, numa altura em que fiquei na Terceira mais tempo do que era suposto, comecei a ficar, a ficar, até ficar mesmo. E passei a viver em Porto de São Mateus."
O surfista, de 44 anos, ganhou fama mundial quando a 17 de janeiro de 2018 apanhou uma Big Mamma na Nazaré, na praia do Norte, uns 35 metros que embora por homologar como recorde tem a seu favor as imagens e as palavras de confirmação de Garrett McNamara, o americano que é o suprassumo do surf. Quem reconhece também os dotes de surfista único em Hugo é o Clube de Exploradores de Nova Iorque, que tem nele o único membro português. E estamos a falar de uma organização que junta astronautas, mergulhadores, montanhistas, etc. Muitos deles estiveram em julho em Lisboa e em Ponta Delgada para a Glex Summit 2021. E esta viagem de observação de baleias faz parte do programa, forma de dar a conhecer à elite de cientistas aventureiros a beleza do mar dos Açores.
É muito mais do que o surf que liga Hugo aos Açores, mas diz que aqui também se encontram boas ondas, é saber procurar. "Os Açores são ilhas no meio do Atlântico e mais expostas às tempestades para o bom e para o mau. Às vezes tens mais ondulação, mas também tens mais vento. Por outro lado, também tens as vantagens de estar em ilhas e dá sempre para andar à volta para procurar uma zona que esteja melhor. Além disso, cada ilha tem a sua dinâmica. A Terceira tem uma grande área da ilha em que não há qualquer tipo de ondas para surfar porque é uma zona muito escarpada e muito vertical. Ou seja, em dois terços da ilha não há ondas. Mas há outras em que há ondas à volta de toda a ilha. Eu às vezes prefiro vir sem a expectativa do surf, até porque há muito mais para fazer nos Açores, e penso que se apanhar umas ondinhas é um extra espetacular. Só a viagem em si às ilhas já é uma surfada pela natureza."
Estamos num barco da Futurismo Azores Adventures, que largou de Ponta Delgada. O céu está limpíssimo e o mar sem grande agitação. Conheci Hugo uns dias antes, na Gare Marítima de Alcântara, em Lisboa, entre uma entrevista que fiz a Nina Lanza, cientista da NASA que controla os rovers que exploram Marte, e outra a Anousheh Ansari, a irano-americana que foi a primeira muçulmana a ir ao espaço. Falámos dos Açores, também de pesca e de bom peixe, e eu sou setubalense, e combinámos que o cenário para a nossa conversa gravada seriam as ilhas, segunda etapa da Glex Summit 2021, organizada pelo Clube de Exploradores de Nova Iorque e pela Expanding World, do português Manuel Vaz.
Sobre a sua vida nos Açores, o surfista conta: "Sou casado. E vem um bebé a caminho. Vivemos cá, mesmo se passamos muito tempo fora. Ela é do continente como eu. Mas os Açores é onde chamamos casa e onde nos sentimos em casa.
Pergunto se dá para viver do surf e Hugo ri-se. Depois explica: "Para quem quiser viver do surf e tiver esse compromisso, dá, mas quando o surf se transforma num trabalho, perde-se um pouco a energia. O surf sempre foi para mim uma fonte de libertação, uma fuga, para a pessoa se relaxar. Quando a pessoa tem patrocínios está a assumir compromissos, e às tantas tem de estar na água como obrigação, e eu, que adoro estar na água, se for por obrigação, custa-me um bocado. No entanto, fui fazendo a minha carreira, e hoje, como as coisas me têm corrido bem, agora o que faço é estar com marcas como a Patagónia em que acredito, que têm valores ambientais fortes. Neste momento, para mim, só faz sentido funcionar com marcas que me completem, que sejam mais-valia."
A ligação ao Clube de Exploradores de Nova Iorque nestes últimos anos tem ajudado a abrir algumas portas. "Desde a onda gigante tenho feito muitas palestras a nível de corporate. Há muitas analogias entre o surf das ondas gigantes e o mundo empresarial, como trabalharmos todos para um objetivo comum. Além de serem fonte de rendimento, as palestras dão-me prazer, a alegria de partilhar a minha vida com outras pessoas e poder motivar e inspirá-las".
Do convívio com os outros membros do clube, como o presidente Richard Garriott, magnata dos jogos de computador que foi astronauta na Estação Espacial Internacional a título privado e também desceu à Fossa das Marianas, diz estar sempre a aprender. "Com este clube a história de cada um é quase como um filme de inspiração, são histórias de vida muito bonitas, em áreas totalmente diferentes, uns vão ao espaço, outros vão ao fundo mar, outros fazem pesquisas científicas superinteressantes, e agora aparece lá um que surfa ondas gigantes e ficam todos entusiasmados. Para mim é uma honra ter um astronauta a querer os pormenores sobre como foi na Nazaré e a querer tirar fotografias comigo", relata, entusiasmado.
Falemos então da tal onda de 2018. "Aquela foi diferente de todas. Aquela onda foi mesmo diferente, por causa de toda uma história de vida ligada ao surf, e depois pela onda em si, que foi completamente diferente de todas, pela dimensão, pelo sítio onde levantou. Até foi diferente pelos sentimentos que saíram dessa onda, de grande felicidade, pá!", relembra. Foi trabalho de equipa, acrescenta: "Nós quando fomos para o mar nesse dia já sabíamos que íamos experienciar condições extremas a nível de vento. Quando aquela onda aparece, quando o Jorge Leal fala com o Alex Botelho e diz que as ondas estão a rebentar na zona, nós estávamos ali à espera da Big Mamma, por aquela onda que acaba sempre por ser a mãe de todas as outras." E prossegue, entusiasmado, o relato: "Já sabíamos que íamos encontrar algo novo. E o Jorge Leal, a pessoa da minha equipa que em terra nos chama para aquelas ondas, especialmente para aquela, que já sabia ser a maior, precisa ter coragem porque quando se chama um amigo para uma onda daquela dimensão sabes que é a maior e que pode ser também a mais fatal. Foi mesmo corajoso."
"Quando vimos aquela onda a aparecer no horizonte era mesmo uma dimensão completamente diferente. Mesmo conseguir atingir a velocidade da onda com uma moto de água é muito desafiante, só mesmo o Alex Botelho, que é um gigante do mar, uma pessoa com uma força física e mental. E descê-la foi uma descida interminável."
Foram dias de fama para Hugo, dentro e fora de fronteiras. "No espaço de três semanas dei cerca de 450 entrevistas a jornais nacionais e internacionais, a televisões e rádios, até dos Estados Unidos, como a CNN e a Fox News. E acabei de escrever um livro sobre a onda com um jornalista italiano que conheci", conta. Vai sair em italiano, depois em inglês e terá também edição portuguesa. "A imagem do que as pessoas viram é realmente tão forte, tão impactante, que ficou na memória. São imagens que a pessoa à noite vê na televisão, e vai-se deitar na cama e quando fecha os olhos aquilo aparece. É daquelas imagens mesmo emblemáticas".
À nossa volta a animação aumenta, com a tripulação a chamar a atenção para mais um grupo de golfinhos, agora a estibordo. Aproveito para perguntar a Hugo como começou a paixão pelo mar: "Surgiu tinha eu 3 ou 4 anitos, com uma prancha de esferovite. Não tenho ninguém na família relacionado com o mar, nenhum pescador. Íamos no verão para a praia Verde, perto de Vila Real de Santo António. Os meus pais são do Ribatejo e do Alentejo, casal típico que veio para Lisboa em busca de uma vida melhor. Na praia Verde, havia aquelas tendas de venda e eu pedi a prancha aos meus pais e passava horas de um lado para o outro. Primeiro andava com o colchão de ar, mas um dia ganhei um susto com o colchão levado pelo vento. Ia mar fora e a sorte foi a minha tia. Para incentivar esse meu gosto pela água, os meus pais puseram-me na natação, depois comecei a levar a carreira de nadador mais a sério. Cheguei a ir a competições. As coisas foram evoluindo, sempre no bodyboard. Só aos 17 anos comecei a fazer surf."
Ainda andou na universidade a estudar Psicologia, curso que travava uma batalha desigual com o mar. "Nessa altura vivia na Costa da Caparica e às vezes saíres às sete da manhã já a adivinhar um alto sol, e eu tinha uma janela em que sabia logo se havia ondas ou não, começava a pensar no trânsito da ponte e muitas vezes ficava. A universidade era em Lisboa, aquela coisa de ir para as aulas e estar sempre nas aulas a pensar nas ondas era uma perda de tempo. Então muitas vezes faltava às aulas para surfar. E era curioso. Às vezes à tarde estava sentado a espera das ondas na Caparica debaixo de sol, e lá faz uma espécie de microclima, e via Lisboa com o smog da poluiçãozinha misturada com nuvens e punha-me a pensar quanto dinheiro uma empresa teria de me pagar para eu vender a minha alma e o meu corpo para estar ali. Preferia como a malta ia para a praia antigamente, com uma mochilazinha com umas carcaças e umas latas de atum, um pacote de leite, e às vezes partilhava-se. Sempre o mar."
Hugo adora as ondas da Nazaré, apesar de no ano passado ter ganho um valente susto e uma perna partida na luta com uma delas, mas conhece os principais sítios de surf do mundo. "Sempre gostei muito de viajar. Já fui ao Havai, à Indonésia, ao México várias vezes. Aliás, foi no México o meu primeiro contacto com ondas maiores. Foi também onde fiz primeiro este tipo de surf assistido pela moto de água. Já viajei por sítios muito porreiros, mas também foi bom para perceber que temos um país fantástico. Com um grande potencial, com sítios ainda remotos por explorar.", diz.
Vamos iniciar o regresso a Ponta Delgada, não sem antes passar junto ao ilhéu de Vila Franca, célebre pela praia quase circular dentro e por os penhascos serem palco de mergulhos do circuito radical da Red Bull. Voltamos ao tema Açores. "Tive um barco de pesca com muitos anos que recuperei . Era o maior de Porto de São Mateus. Um dia estava na Terceira, precisava de ganhar uns trocos e vi um anúncio no jornal de que precisavam de gente para andar no mar. Fui noutros barcos, de outros pescadores, aprender. É uma comunidade fechada mas fui bem recebido, as pessoas são muito genuínas, uma comunidade que ficou no meu coração para sempre. Tenho lá bons amigos. E com eles comecei a ter aventuras no mar de forma diferente. Um barquinho de madeira no mar dos Açores ... no mar não há barcos grandes, são todos pequenos. Mesmos os cargueiros de 300 metros são mínimos. Foi aí que comecei a pôr na cabeça só fazer pesca tradicional, nunca aquelas linhas com milhares de anzóis. Eu pescava com sete, no máximo com 30. Uma pesca mais seletiva. O peixe que não queria, pequenino, devolvia ao mar, vivinho. Depois aquilo de matar começou a fazer-me impressão. Mas, dizia para mim, ao menos quando se come que se tenha coragem de sermos nós a matar. Comecei a apostar na pesca turística, a levar pessoas a experimentar a pesca tradicional, mas sobretudo pô-las a olhar para o mar de outra forma. Dar valor às baleias e aos golfinhos. Adoro os Açores e quero multiplicar os guardiães do mar. Quero mesmo".
leonidio.ferreira@dn.pt
O DN viajou a convite da Glex Summit 2021