"As chamuças são boas, mas é da música dele que o mundo precisa"

Meses sem trabalho como DJ, 30 euros na conta e uma brincadeira puseram este filho de uma minhota e de um goês a fazer chamuças para fora. Mais "uma metáfora das merdas que estão a acontecer" comenta um responsável do Lux. "Porque é da música dele que precisamos". E ele também.
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"Quando és skater, tens uma posição por defeito: ou o pé direito à frente ou o esquerdo. Fazer switch stance significa trocar a posição, andar ao contrário, tentar o mais difícil." Arriscar. Marco Antão sabe do que fala, e não apenas por ter sido skater profissional; está habituado a trocar o pé, a mão, o corpo, a cabeça de sítio. E a cair: um skater cai muito, lesiona-se, torce tendões, parte ossos. Ser skater é cair em movimento. Como na canção de Laurie Anderson, walking and falling (andar e cair) -

"And you don't always realize it, but you're always falling

With each step you fall forward slightly.

And then catch yourself from falling.

Over and over, you're falling.

And then catching yourself from falling.

And this is how you can be walking and falling at the same time."

- ou no dito de Beckett: falhar, falhar sempre, falhar melhor. Não é que seja preciso ser skater para falhar e cair, mas nos skaters é uma definição de trabalho: sabes que vais cair, te vais magoar, e te vais levantar. Esperas levantar-te.

Como agora: DJ e músico, Marco, que escolheu para nome de guerra das pistas um trocadilho com o skate - Switchdance -, fez em julho um post no Instagram, na brincadeira, sobre chamuças. "Durante o primeiro confinamento estava em casa aborrecido e lembrei-me de que uma amiga italiana uma vez ao provar as chamuças da minha mãe gostou muito e disse que queria aprender. Então pensei que podia levá-la à minha mãe para ela aprender e eu aprendia também." Assim fez: a mãe ensinou-os a fazer chamuças, 200, 100 para cada um. "Quando acabámos tirei uma foto às chamuças para pôr no Instagram e escrevi algo do género: "Malta, isto está complicado, estamos há meses sem trabalhar - vou fazer o switch do meu business para chamuças. Quem gosta de chamuças ponha aqui três amigos que gostam também e eu ofereço."

Interrompe a narrativa, ri. "Não vais acreditar o que foi aquilo. Toda a gente a nomear três amigos e a dizer que queria chamuças, e eu "pá, estava a gozar, não vou fazer chamuças para vender e muito menos para oferecer"." Tanto interesse, porém, pô-lo a pensar. "Fui para a cama e não conseguia dormir. Tinha 30 euros na conta e pensei: "Se calhar ainda faço aqui uns 150. Fiz um brainstorming e no dia seguinte resolvi assumir - em 12 horas despachei as 100 chamuças."

O preço - 1,5 euros por chamuça - foi fixado com uma consulta aos dos restaurantes. Decidiu vendê-las congeladas, para que as pessoas as pudessem ir usando quando quisessem. "Como vendi tudo tão rápido, decidi criar uma página no Instagram, o Switchsamosa. Um designer de Guimarães, o Hugo da Silva, ofereceu-me o logótipo [uma malagueta e uma chamuça, agarradas uma à outra, a rir] e toda a gente adorou, é mesmo aquilo."

De repente, começou a conseguir "pagar as contas e ainda pôr de parte algum para fazer um investimento no futuro. Não estava nada à espera de que isto acontecesse. Está também a ser uma aproximação entre mim e a minha mãe. Até lhe vieram as lágrimas aos olhos quando vendemos as primeiras 100 chamuças."

Apesar de a ascendência goesa ser do marido, a mãe aprendeu a cozinhar as receitas indianas através de livros de cozinha comprados por ele. "Eram em inglês, o meu pai traduzia para ela", conta Switch, que herdou a mão para os tachos.

Antes de se meter nas chamuças até já tinha inventado um prato inspirado nas raízes indianas - feijoada de chouriço goês - que "resultou muito bem". Pedro Fradique, um dos responsáveis da discoteca lisboeta Lux-Frágil, na qual Marco é DJ residente desde 2010, lembra-se de aferir do jeito no festival Boom, em Idanha-a-Nova: "Cheguei lá e ele, que tinha ido como DJ, estava a cozinhar para o grupo todo, a fazer um alto refogado. Tinham uma tenda no acampamento que era só despensa. Convidaram-me para jantar e acho que nunca comi tão bem no Boom."

Mas estamos a andar muito depressa para trás. Ainda vamos no momento em que, aflito de dinheiro ao fim de cinco meses de confinamento, com todos os bares e discotecas fechados, Marco, que em todos os seus anos de trabalho como DJ só teve um contrato de efetivo, no Rive Rouge, bar/disco aberto por Manuel Reis no Mercado da Ribeira, em novembro de 2016 - e do qual saiu em 2019, após a morte do criador do Lux e do Frágil, quando uma nova gerência entrou - descobriu uma forma de não desesperar.

O negócio foi ganhando tração nas redes e no boca a boca e no início de fevereiro a SIC acabou por fazer uma peça com ele, o DJ que passou a fazer chamuças para sobreviver, para o Jornal da Noite. A partir daí, conta Marco, foi a loucura. "Logo a seguir à entrevista estava na Quinta das Conchas a correr e veio um rapaz abordar-me a pedir chamuças. Na rua há pessoas a dizer "olha o Marco das chamuças"."

Uma fama instantânea cuja ironia é acusada por quem pertence ao meio. Numa partilha no Facebook da reportagem da SIC, entre os aplausos, os corações, as manifestações solidárias e o interesse pelas chamuças, o músico e produtor Luís Nunes, aliás Benjamim, sente-a. "Deixa-me um bocado triste. Mas este é o espírito, resistir. E ir inventando maneiras de sobreviver a esta pausa forçada."

Porque, claro, há um Marco antes e para lá das chamuças, o Marco de olhos sérios que diz "a última coisa que quero fazer é vender os meus instrumentos, ou por questões económicas ou por não acreditar que vai haver mais música" enquanto se diverte com este switch inesperado na sua vida.

O de quem Pedro Fradique garante: "É daqueles gajos que é mais conhecido fora daqui que aqui. Os DJs que vinham cá apreciavam-no, falavam dele. Tem um público global e uma rede de conhecimentos internacional muito interessante. E anda sempre à procura, não se distrai. Sabe o que quer fazer."

O que tem composições suas, como O Amolador - cujo mote é o assobio com o qual os amoladores anunciavam a sua presença nas ruas - publicadas por boas editoras e dos melhores Djs internacionais de música eletrónica, como Solomun, Dixon, DJ Harvey, a passá-las pelo mundo. Que é convidado para grandes festivais, que está a terminar um disco com o ex-herói do mar Carlos Maria Trindade - o primeiro do projeto Surto, nome escolhido antes da pandemia, como presságio ou maldição.

O Marco a quem João Botelho, realizador, assíduo do Lux e autor do vídeo O som do amolador, faz uma declaração de amor: "Adoro o rapaz porquê? Para já porque é um bom rapaz, não tem maldade. As pessoas dividem-se no mundo entre as pessoas com maldade e as sem. E é um criador, não é um DJ. Eu gosto de DJs, claro, mas ele tem uma coerência que os outros normalmente não têm. Porque eles passam música de outros, ele inventa a música. Vai buscar coisas orientais, croatas, brasileiras, da África negra e faz uma construção musical. E está sempre atento ao que se passa no mundo. Tem uma narrativa musical própria."

Este Marco, nascido há 37 dezembros na Maternidade Alfredo da Costa e cuja história de vida talvez ajude a explicar a profundidade arrebatadora e por vezes tão sombria dos seus sets - "Adoro mas fazem-me vontade de chorar", disse uma das barwomen do Lux a Pedro Fradique.

Um Marco que, malgrado a timidez, começou cedo na vida pública por via do skate: aos 15 já tinha os primeiros patrocínios e aos 21 chegou a campeão nacional profissional. "Era levado aqui e ali pelo mundo, com tudo pago, para saltar umas escadas ou um corrimão numa cidade qualquer. Não tínhamos ordenado mas pagavam-nos as viagens, a roupa, os ténis. Como sou muito estimado, ainda tenho ténis e roupa dessa altura."

Que estudava ao mesmo tempo, com a ideia de seguir desporto ou fisioterapia ("Passava muito tempo na fisioterapia por causa das lesões e achei que era interessante"), mas que quando ia fazer os exames para entrar no curso se viu descarrilado por um drama familiar. "Os meus pais separaram-se, a minha mãe saiu de casa e o meu pai teve uma grande depressão. Fiquei de enfermeiro a cuidar dele."

Um pai derrubado por um desgosto de amor e um filho que larga tudo para o acarinhar. Anos disso, conta, até que se sentiu a dar em maluco. "Os meus colegas a acabar os estudos, a começarem a trabalhar e eu ali em loop a tratar do meu pai, que entretanto estava com Parkinson. Não me arrependo de nada, mas tinha de decidir o que fazer à minha vida."

Pediu finalmente ajuda aos tios paternos. E à mãe, que o ajudou a pagar um curso de produção de eventos e espetáculos. É quando começa a trabalhar nessa área que dá os primeiros "toques de DJ, nada sério."

Música. A paixão era pelo menos tão antiga como a do skate. "Começou logo em miúdo - passava a vida a fazer downloads de músicas da internet, até que os meus pais me puseram de castigo por causa das contas de telefone de 500 euros. E quando viajava para os campeonatos de skate pediam-me, porque achavam que tinha jeito, para tratar da banda sonora nas carrinhas - eram horas de viagem. Também às vezes no sábado à noite quando íamos para os bares diziam para eu pôr CDs, se os donos deixassem. Mas apesar de ter investido imenso em discos via como uma brincadeira. Até que um amigo me disse para experimentar pôr música no Purex."

O Purex é um pequeno bar no Bairro Alto, na Rua das Salgadeiras, onde a partir de 2006/2007 Switch (é assim que é conhecido) aprendeu "a lidar com pessoas e a ler as pessoas. E a esvaziar pistas." Ri. "É o que acontece quando se arrisca um pouco. Não no Purex, a pessoas eram muito abertas, tenho muito amor àquele espaço."

Foi praticamente DJ residente ali enquanto ia tocando noutros sítios - Lounge, Incógnito, etc. "Comecei a achar que tinha de criar a minha identidade musical. Numa quinta-feira saí do Purex ainda um bocado animado e passei à frente do Lux. Vi que tocava o James Holden [DJ, produtor e músico britânico, dono da editora Border Community] e que não havia fila. Lá consegui entrar e percebi que ele estava a passar as músicas que eu passava no Purex e ninguém gostava, mas ali estava toda a gente a dançar. Estava a passar Radiohead, por exemplo. E aí pensei: "Vou ser fiel àquilo de que gosto e insistir.""

Não foi fácil: "Comecei a ter dificuldade em arranjar datas porque tocava música viajante, introspetiva, melancólica, e as pessoas diziam "venho aqui para dançar, não é para cortar os pulsos." Estava a ficar um bocado desmotivado e a pensar que ia dedicar-me ao estudo." E zás, apareceu o concurso de DJs do Lux.

O ano é 2009, novembro. "Heineken e Lux procuram um novo DJ", lia-se em notícias surgidas na imprensa nesse mês, anunciando um concurso para procura de "novos valores que demonstrem qualidade, inovação e um toque pessoal". Fradique foi uma das pessoas que instigou Marco a concorrer: "Eu era vidrado no James Holden e um amigo disse-me "tens é de conhecer o James Holden português". Fui ouvir e gostei muito. Quando apareceu o concurso, avisei-o."

Eram mil candidatos, conta Marco. "Passei em todas as fases e ganhei. Um dos prémios do primeiro classificado era seis meses de residência no Lux. Quis experimentar, achei que aquilo era uma grande porta. E eles depois decidiram manter-me como residente."

Fradique não fez parte do júri, mas sabe porque é que Marco foi o escolhido. "A razão de ter sido ele e não outro foi porque se percebeu que tinha uma coisa específica dele. Havia uns que se encaixavam mais no Lux mas não traziam nada de novo. Quando percebes que há um discurso próprio, artístico, de alguém, isso tem um valor diferente, adicional. Ele tem um lado de quase ingenuidade - sou das pessoas que acham a ingenuidade uma qualidade - mas sabe conquistar as pessoas, levá-las a aceitar aquilo que tem para dar."

Reflete: "Com o Marco Antão fomos também o que devemos ser - nós o Lux. Saber encontrar, dar o espaço, ver a pertinência de alguém como ele. Trazer coisas novas às pessoas. Num DJ há sempre um equilíbrio difícil entre o que é autoral e artístico, fazeres aquilo que as pessoas esperam e aquilo que queres fazer. Há uma analogia muito fácil, que é não ir pela autoestrada, ir pelos outros caminhos. E de repente aparece alguém assim, que te mantém a fé naquilo."

Manter a fé. E a seriedade - essa qualidade rara e tão clara no que Switch faz, até no modo concentrado, aparentemente alheado, de rosto fechado, com que põe música. A ponto de haver quem lhe chamasse "o senhor do Millennium", como quem no meio da balbúrdia se entretivesse a calcular em Excel e a fazer balancetes. "O DJ é um bocado o centro de atenção daquela gente toda, ao princípio levantava pouco os olhos", justifica ele, ultimamente mais solto, capaz já de, enquanto toca, dançar, sorrir a quem lhe grita o nome.

"O Marco simboliza um bocado o que tu queres que se altere nesta situação que estamos a viver. É uma história bonita, louvável, a de como como ele está a viabilizar-se, uma metáfora das merdas que estão a acontecer - há que descobrir a chamuça que há em nós, não há nenhum desprimor." É outra vez Pedro Fradique a falar. "Mas por muito boas que sejam as chamuças, a música dele faz muito mais falta à humanidade. O mundo precisa é da música do Marco Antão." Mesmo se, admite, "ninguém sabe o que vai ser esta coisa dos DJs depois."

E dos clubes, dos bares, das discotecas, dos festivais. Do corpo a corpo, do inebriamento, da energia única da tribo sintonizada no ritmo, no transe.

"O que é o trabalho de um DJ? Providenciar uma banda sonora tribal", definiu, numa das suas últimas entrevistas, Andrew Weatherall, o DJ, músico e produtor britânico que morreu em fevereiro de 2020, aos 56 anos, pouco depois de tocar no Lux a convite de Marco, e imediatamente antes de a pandemia fechar o mundo, a começar pelas discotecas.

"A música de dança é uma experiência transcendente, e está connosco há 200 mil anos", disse também Weatherall. "As pessoas viviam essa experiência em salões de dança nos anos 1940, com bandas a tocar: agora é com caixas de ritmos e tecnologia eletrónica - mas o conceito é o mesmo. A humanidade não mudou, só a tecnologia."

Dessa transcendência faz parte estar com outros - dançar só é bom, mas é em grupo que se sente o arrepio. Esse de que Switch fala: "Sabes quando há uma paragem na música e as pessoas estão à espera e depois rebenta? É como se houvesse um elevador no corpo, sentes a energia a subir, não sei se é o diafragma, se o que é. Tenho imensa saudade desse sentimento, dessa sensação de que tens as pessoas na mão, consegues pegar nelas e levá-las para aqui ou para ali. De me sentir embalado."

Algo de vampírico nisso, assumia Weatherall: "É o mesmo que sente um xamã que recebe energia das pessoas, que um padre a sintonizar a energia da congregação."

Quando essa missa de novo? Quando o depois? Quando a dança sem a qual, diz Botelho, não há vida? Switch hesita. "Está tudo a adiar. Por exemplo, tinha uma grande data em Barcelona em julho de 2020, mas agora já não se fala de 2021, já é 2022. Este ano as coisas devem abrir cá no mesmo registo que no verão passado (de manhã e à tarde, sem dança), com tudo sempre a mudar, e as pessoas a terem de se adaptar. E não imagino que vá haver pistas de dança tão cedo. Se podemos estar uns em cima dos outros lá para o fim do ano? Há uns dias em que tenho esperança. E outros em que nada faz sentido nenhum."

Sim, confirma Pedro Fradique: "Há uma total consciência de que não vai acontecer nada tão cedo. No outro dia estive a ver uma entrevista com um sociólogo, Nicholas Christakis, que diz que no pós-pandemia virão os novos loucos anos 20, como no pós primeira grande guerra. Mas só lá para 2024. Ele diz também que por cada pessoa que morrer de Covid vai haver cinco que vão ter outros problemas."

Que será de locais como o Lux, de todos os sítios da noite, da música e da dança, se tiverem de esperar até 2024? Que será de festivais como o Boom, que se realiza de dois em dois anos, foi adiado de 2020 para 2021 e obviamente será adiado de novo? Que será de toda a gente que trabalha nesta área?

Pedro Fradique suspira. "Dá-nos bem a ideia de que as coisas não estão sempre disponíveis. Que podes não ter uma segunda oportunidade."

E podes não desistir. Podes neste rio onde a margem está sempre a ficar mais longe ser capaz, louva João Botelho, da humildade que faz os grandes: "O Switch é suficientemente humilde para dizer "a única hipótese que tenho é fazer chamuças com a minha mãe." E continuar a criar enquanto cozinha. Quando isto acabar ele vai ter música para mostrar - não sei é onde."

Não sabemos, nada se sabe. Mas vamos querer ouvir. E dançar, tanto.

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