"Ao ver a solidariedade e abertura do coração dos portugueses, já ganhámos a guerra"
Medidas do Governo, envolvimento das organizações não governamentais, movimentação das autarquias, empenho das empresas privadas, mobilização da sociedade civil. Todas as vias são utilizadas para apoiar quem foge dos mísseis da Rússia na Ucrânia, faz um mês esta quinta-feira. "Ao ver a solidariedade e a abertura do coração dos portugueses, já ganhámos a guerra. É sincero". Agradece o presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal, Pavlo Sadokha. Às às 18.00 desta quinta-feira está marcada uma manifestação de protesto frente à Embaixada da Rússia em Lisboa.
Caravanas - carrinhas, camiões, autocarros, ambulâncias - têm saído de Portugal em direção aos países fronteiriços com a Ucrânia. Levam bens, alimentos, roupa e medicamentos, trazem mulheres e crianças. A Missão Ucrânia foi uma dessas iniciativas, partiu de um grupo de amigos de São Jorge, em Porto de Mós (Leiria) que se organizou através das redes sociais , como tantos outros. "A palavra passou".
Começaram por ser dez viaturas, terminaram em 24 e quatro autocarros, vindos de todo o país, incluindo dois fretados na Polónia. Uma semana de viagem, com os últimos a chegar ao país no domingo - 284 pessoas resgatadas.
"Pessoas de todo o país com transporte próprio - dois voluntários por carrinha - quiseram juntar-se, outros deram donativos, roupa, alimentos, medicamentos. Acabámos por levar dois autocarros e alugámos mais dois na Polónia para trazer ucranianos que se juntaram à última da hora. E fomos tendo apoios ao longo da viagem das comunidades portuguesas", conta Rita Cerejo, uma das impulsionadoras. Faz parte da direção da Associação de Serviço e Socorro Voluntário de S. Jorge, que além de prestar apoio à comunidade local, desenvolve ações na Guiné-Bissau. "A associação acabou por dar o suporte oficial à operação, por exemplo, para passar recibos a quem nos dá donativos".
Receberam uma doação de 100 mil euros em equipamento médico mesmo antes de partirem, o que os obrigou a deixar roupa e outros bens, como artigos para crianças. Também porque perceberam que estes poderiam fazer mais falta aos refugiados que o país acolhe do que junto às fronteiras com a Ucrânia, o que demonstra a dinâmica do processo. Entregaram essa carga à Cáritas Internacional na Polónia para os colocar na Ucrânia.
As viaturas começaram a partir no dia 11 de março e distribuíram-se por várias cidades da Polónia, seis seguiram para a Roménia de onde trouxeram 36 pessoas. Refugiados que já faziam parte de uma lista levada daqui, constituída a partir dos pedidos de ajuda que iam chegando. Com uma exceção. Tinham o contacto de um padre que estava em Dnipro num bunker com outras 200 pessoas. Não conseguiram fugir antes da saída da caravana de Portugal, mas nos últimos dias, 80 conseguiram chegar à Polónia. "Não os podíamos deixar, tentámos tudo". Foi quando decidiram alugar dois autocarros.
"Aconteceu tudo naturalmente, a uma determinada altura, tinha contactos de quase todo o mundo", explica Rita Cerejo, sublinhando a boa organização que encontrou na Polónia. Conhecia bem a bondade dos portugueses, mas esta operação excedeu todas as expectativas. "Vimos uma solidariedade tremenda durante toda a viagem, pessoas a querer oferecer ajuda ao longo de todo o percurso."
Entre os 284 refugiados que trouxeram, a grande maioria tinha cá familiares e amigos que lhes deram alojamento e outros apoios para se instalarem. Apenas os que estavam no bunker e outras 15 pessoas não tinham contactos pessoais, acabando por ser reencaminhados para as autarquias de Mafra, Porto de Mós e Fundão, que também se envolveram na missão.
Outras 16 pessoas tiveram a mesma ideia, também lhe chamaram Missão Ucrânia. São ex-alunos do Colégio São João de Brito, em Lisboa. Em pouco mais de uma semana, organizaram uma expedição à Polónia, em cinco carrinhas, que seguiram com alimentos e medicamentos. Regressaram com 28 ucranianos, numa viagem entre 9 e 15 de março.
Entre as 28 pessoas acolhidas, está a família de Roman Barchuk , o ucraniano num grupo de portugueses. Tem 25 anos e trabalha numa empresa de segurança corporativa, tirou férias como os outros. Também receberam dinheiro e outros donativos, nomeadamente o combustível que foi doado por uma gasolineira. Agora, querem concentrar-se na integração de quem chega, defende Roman. "Chegámos à conclusão que ir à fronteira e trazer pessoas é fácil, o difícil é integrá-las, garantir-lhes alojamento e emprego, a escola para as crianças. Vamos começar com as aulas de português e a maior parte das pessoas que vieram já estão a trabalhar". Os estudantes vão frequentar a escola ucraniana na Pedro Santarém, em Benfica, que funciona aos sábados.
Esta semana, o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, informou que as escolas portuguesas já receberam a inscrição de 500 estudantes ucranianos fugidos.
O último estudo da Organização Internacional para as Migrações (OIM), realizado entre 9 e 16 de março, contabiliza 6,48 milhões de deslocados na Ucrânia, como resultado direto da guerra da Rússia. Concluíram que 13,5% já tinham experiência anterior com deslocamento durante 2014-2015. São pessoas particularmente "vulneráveis, grávidas e lactantes, idosos, com deficiência, doenças crónicas e diretamente afetadas pela violência". A OIM contabiliza quase 10 milhões que foram deslocados à força tanto na Ucrânia como ao longo das fronteiras com países vizinhos, entre eles 186 mil cidadãos de países terceiros. "A escala de sofrimento humano e deslocamento forçado devido à guerra excede em muito qualquer planeamento de cenário de pior caso", afirmou o diretor-geral da OIM, António Vitorino, apelando à solidariedade.
O Conselho de Ministros em Portugal aprovou no dia 10 de março um decreto-lei com "medidas excecionais no âmbito da concessão de proteção temporária a pessoas deslocadas da Ucrânia, de forma a permitir assegurar um efetivo e célere processo de acolhimento e de integração". Não só para os ucranianos como para os estrangeiros que vivam na Ucrânia.
Solidariedade não tem faltado em Portugal, nomeadamente da parte das autarquias. A Câmara Municipal do Fundão (CMF), onde começam por residir no Centro para as Migrações e rapidamente são encaminhados para habitação própria. Os refugiados estão sempre a chegar e, para já, a lista de acolhimento não está fechada. Na terça-feira, estavam 75 pessoas no centro (há espaço para mais 50) e 25 nas suas casas, muitas recebidas por familiares e amigos. Entre estes, há 47 crianças, três com menos de um ano, além de uma grávida. Ontem chegaram 20 crianças que viviam num orfanato e esperam-se mais cidadãos esta semana.
"Nesta primeira fase, avaliamos a situação de cada pessoa, são observadas do ponto de vista médico, também se inicia o pedido de proteção temporária. O nosso objetivo é sempre a integração na comunidade", explica Paulo Fernandes, o presidente da CMF. Essa integração passa por serem deslocados para casas da autarquia espalhadas pela cidade ou disponibilizadas por particulares. E emprego não falta no concelho, o que falta é mão de obra. Quarenta pessoas já registaram habitação para estes refugiados e há uma bolsa de 177 ofertas de emprego. Vão iniciar-se as aulas de português.
Andrii e Marii Lashcheva, de 38 e 33 anos, respetivamente, foram os primeiros a chegar ao Fundão, a 4 de março. Saíram de Kharkiv, cidade onde moravam. Fica ao lado da Rússia e foi uma das primeiras a ser bombardeada. As notícias dizem que está em ruínas. Viajaram para Lviv a 22 de fevereiro, dois dias antes de Putin invadir a Ucrânia e depois de reconhecer a independência de Donetsk e de Lugansk, no leste do país, que se autoproclamaram como países independentes.
"Percebemos que a guerra podia ter início, fugimos para Lviv [junto à fronteira com a Polónia]e esperar pelo que iria acontecer, queríamos regressar rapidamente a casa. No dia 24, amigos e colegas da nossas empresas disseram-nos que Kharkiv estava debaixo de fogo", conta Andrii. São os únicos da família a deixar a Ucrânia. Os pais vivem na Crimeia e aparentemente aceitaram a anexação pela Rússia.
O casal tem formação superior, ele é engenheiro informático e ela quadro na área de marketing, trabalhavam em multinacionais. Um dirigente da empresa de Marii Lashcheva disse-lhe ter boas referências de Portugal, que tinham contactos com a autarquia do Fundão e sabiam que precisavam de informáticos. Faz sexta-feira três semanas que chegaram ao Fundão, continuam nas suas empresas. Estão em teletrabalho na Incubadora A Praça, que conta com 18 projetos e que empregam 40 pessoas, além de 31 coworkers e 60 incubadoras virtuais. "Não sabíamos nada de Portugal, gostámos do que vimos e de como fomos recebidos. Agora, estamos aqui e não vamos para mais nenhum lugar. Esperamos regressar à Ucrânia, o que fosse o mais rápido possível, mas nem sabemos como está o nosso apartamento, há quatro dias que não temos contacto com Kharkiv", diz Andrii.
O resgate de refugiados também se faz por via aérea e não apenas através dos aviões fretados pelo Governo, nomeadamente da TAP. A associação Ukrainian Refugees (UAPT) constituiu-se logo a seguir ao 24 de fevereiro, foi formalizada dias depois. Dezenas de pessoas responderam ao pedido de mobilização de Mykhaylo Shemily, um ucraniano de 23 anos que vive em Portugal desde os 15. A ideia era reunir as associações de ucranianos no país. Cresceram e trabalham autonomamente e em contacto com outras organizações.
Têm recebido muitos bens, também dinheiro e é desse apoio que mais necessitam, até para agilizar o transporte de refugiados da Ucrânia. Fretaram já dois aviões da EuroAtlantic, que os disponibiliza a um custo inferior, mesmo assim, precisam de 50 mil euros por cada viagem. E há uma empresa petrolífera que oferece o combustível.
Na primeira viagem, com início a 10 de março, chegaram 250 pessoas , quase todos com familiares em Portugal. No segundo, vieram 210 e 40 % não tinham apoio familiar. "Ficam cinco a seis dias num acolhimento de emergência, depois passam para um alojamento mais duradouro", explica Mykhaylo. Está a ser planeado um terceiro avião, cuja data de saída depende dos pedidos que chegam ao call center e da associação. Estão em Olaias, com ligações pelo país.
Trabalham em cooperação com as instituições públicas, nomeadamente a Embaixada da Ucrânia, todo o transporte e integração são feitas segundo as regras, esclarece Mykhaylo Shemily, que sublinha: "A ajuda tem sido enorme, o que nos impressionou na primeira semana, ajuda não só de particulares como das empresas, para apoiar as famílias em Portugal".
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