António Nunes: "Quem esteve mal no terreno, com falta de coordenação, comando e controlo, foi a Proteção Civil"
O que aconteceu nesta última semana reforça a sua reivindicação de ser criado um comando nacional para os bombeiros?
Claro que sim. Está à vista de todos e dos testemunhos que nós podemos ter ao vivo, quer de presidentes de câmara, quer de comandantes de bombeiros e penso que da população. Aquilo a que nós pudemos assistir foi uma mobilização forte de bombeiros. Aliás, é interessante que nos últimos tempos a autoridade Nacional de Emergência e Emergência e Proteção Civil (ANEPC) tem tentado descaracterizar os bombeiros, chamando-lhes operacionais. Todos somos operacionais naquilo que fazemos. Mas era bom que no final do dia, nos seus boletins diários, dissessem, dos operacionais, quantos bombeiros lá estão e quantas outras forças lá estão. Basta ver esse mapa anexo do dispositivo para se verificar que, no dia a dia, para as cerca de 12.000 pessoas envolvidas no dispositivo, 10.500 ou 10.600 são bombeiros. Os bombeiros são, de facto, a estrutura fundamental do combate aos incêndios em Portugal. Quer se queira, quer não se queira. Quer se goste, quer não se goste. Na sua maioria são bombeiros voluntários. O que existe é um modelo de bombeiros voluntários no qual a primeira resposta deve ser profissional. Não estamos mais à espera que toque a sirene para poder atender uma urgência, qualquer que ela seja. Mas aquilo que se verificou foi uma mobilização forte, na nossa opinião, Liga dos Bombeiros Portugueses (LBP), um pouco atrasada. Deveria ter sido quando se decretou, e bem, o Estado de Alerta Vermelho. Nessa altura, devia-se ter logo feito essa mobilização e o envio de meios para determinados pontos mais próximos dos locais mais prováveis onde deveriam ocorrer estas situações.
Mas isso não aconteceu?
Aconteceu na segunda-feira, mas o alerta foi determinado no domingo. Esperámos pelos fogos e depois tivemos a situação de que alguns autarcas se queixavam, que todos os meios ficavam na Região de Aveiro e não passavam para a Região Norte, para a do Porto. Isso é nitidamente coordenação, comando e controlo. Não é mais nada. Portanto, não negamos a existência da Proteção Civil, antes pelo contrário, dizemos que a Proteção Civil deve estar num patamar superior àquilo que são os agentes de Proteção Civil, como determina a Lei de Bases da Proteção Civil. Os serviços de Proteção Civil são essenciais, mas não podem é querer-se confundir como comandantes diretos dos bombeiros, como têm feito nos últimos anos. Depois sucedem-se erros, que acabam diluídos, porque se diz sempre que não é altura de se avaliar, vamos esperar para o fim, pois vai haver um inquérito, depois o inquérito demora 30 ou 60 dias, e depois toda a gente se esqueceu porque houve um jogo de futebol, ou houve um fenómeno natural à frente. A LBP não. É em cima do acontecimento que diz o que está bem e o que está mal. O que é que esteve bem? Mobilização, capacidade de resposta dos meios e de colocação do dispositivo. O que é que esteve mal? A colocação do dispositivo nos sítios certos e no momento certo, de acordo com aquilo que são as prioridades de uma estrutura. Porque temos de definir claramente o que é que queremos para a vida. Ou queremos responsabilizar uma estrutura de Proteção Civil que assenta na base, na Proteção Civil Municipal e no seu principal responsável, que é o presidente da câmara? Ou não queremos? Nós não podemos é dizer que o presidente da câmara é o primeiro responsável, pedir-lhe para ativar o Plano de Emergência Municipal, o seu Centro Municipal de Operações de Emergência e depois não lhe atribuir meios, no princípio da subsidiariedade. E querer andar a mandar num sítio onde não se deve mandar.
Se houver um comandante nacional de Bombeiros, reporta ao comandante nacional da Proteção Civil?
Reporta ao presidente da Autoridade Nacional de Emergência.
O que nós defendemos mais recentemente, na nossa última proposta, que apresentámos ao Governo e aos deputados, é muito simples. Transformar a Direção Nacional de Bombeiros que já existe na ANEPC, que é hoje um serviço administrativo e técnico, com apoio à formação, também com uma componente operacional. O diretor Nacional de Bombeiros seria alguém com experiência de comando de bombeiros - era, simultaneamente, o inspetor Superior de Bombeiros e, em situações operacionais, era o comandante Nacional Operacional dos Bombeiros. E porquê também isto do inspetor de Bombeiros? Porque o Estado não tem bombeiros. Quem tem são as câmaras municipais e as associações humanitárias. O Estado, ao nível descentralizado, são 18 (de sapadores bombeiros) e depois temos 436 associações humanitárias com bombeiros. Os tais 28.000 (bombeiros). O que podemos fazer, em tempo de não-crise, que era aquilo que o Serviço Nacional de Bombeiros fazia, é a inspeção aos corpos de bombeiros. Verificar se as leis, do ponto de vista técnico, estão a ser cumpridas. Não queremos ter nada a ver com questões administrativas ou financeiras, que devem continuar a ser a Inspeção de Proteção Civil a fazer. Estamos a falar do ponto de vista técnico. As viaturas, a formação, a prontidão dos homens, tudo isso deve ser feito por uma inspeção técnica. Porque a responsabilidade primeira pelo combate a um incidente é do comandante do Corpo de Bombeiros, da área de atuação própria. Por isso é que ainda continuamos a ter o único comandante de bombeiros de Pedrógão Grande a ser responsável por um incêndio em relação ao qual não tinha nenhuma consciência do que é que se passava a cinco quilómetros de distância. Mas quando chegámos à altura, quem é o comandante do corpo de Bombeiros? É o comandante Augusto Arnaut. Mais ninguém apareceu. É preciso ter esta noção. Já na altura existia a ANEPC e não está ninguém a responder em tribunal por nada.
A maior parte dos chefes regionais da Proteção Civil também são bombeiros ou não?
Isso é pouco importante.
Mas têm experiência, têm capacidade e conseguem fazer coordenação com os bombeiros, não é?
Não é isso que está em avaliação. A questão é que a Proteção Civil tem de perceber qual é o papel dela. Se virmos a Lei de Bases e se tivermos a experiência internacional, é muito mais que mandar bombeiros. A Proteção Civil e a resiliência das populações e dos territórios.
Eles fazem esse trabalho também...
Não tenho visto. Mas talvez porque tenha andado distraído. A única situação em que a Proteção Civil fez isso foi um trabalho que até foi organizado pela Agência de Gestão Integrada para os Fogos Florestais (AGIF), que é a Aldeia Segura, Pessoas Seguras. E fez um excelente trabalho. E também se fez um excelente trabalho quando se atribuiu à GNR a deteção e vigilância. Mas não se atribuiu aos bombeiros o combate. Esse está distribuído por toda a gente e toda a gente quer mandar nos bombeiros. Mas os bombeiros, que existem há mais de 600 anos, saberão certamente, não sei se na minha altura, se depois de passar pela LBP, saberão ter a sua independência. Não tenham dúvida disso. Isso e a descaracterização que foi feita aos bombeiros. Lembro-me de, em 97/98, quando se discutia se deveria haver uma junção entre Bombeiros e Proteção Civil e quais eram as vantagens e desvantagens, o padre Vítor Melícias ter recusado, porque entendia que podia verificar-se uma descaracterização da identidade dos bombeiros, coisa que hoje se verifica. Aliás, numa entrevista, penso que neste estúdio, o sr. presidente da ANEPC disse que os bombeiros não tinham capacidade para assumir esse comando. Então e têm capacidade para ser recrutados para a ANEPC? Vestindo a farda azul têm essa capacidade e vestindo de encarnado não têm?
É uma pergunta para o senhor presidente da Proteção Civil.
Faz muitas críticas a esta organização, a forma como, como a operacionalidade da organização depois acontece. Mas reconhece que há melhorias na forma como não só se combatem fogos, mas acima de tudo, como se previnem fogos, nos últimos anos, até tendo em conta a experiência que tem de décadas?
As críticas que fazemos é no sentido de que há alguma imprecisão da responsabilidade efetiva de quem é a responsabilidade pelo combate aos incêndios florestais. Reconheço que hoje, em termos de prevenção, estamos melhor do que em 2017. Agora, a questão é se nós estivéssemos tão avançados nessa questão da prevenção, ocorria aquilo que aconteceu nestes últimos dias com 100.000 hectares ardidos?
Há muitas situações que não estão resolvidas, como a limpeza de terrenos, por exemplo.
Parece que é a maioria. Há aqui um paradigma que temos de ver. Será que Portugal ou algum país do mundo tem capacidade para limpar todas as florestas? Ou o problema é um problema de ordenamento florestal? É que se o é, não é em cinco anos que se resolve. É em 10 ou 15. É a mudança de mentalidades. E foi isso que nós chamámos a atenção há dois anos. Dissemos: cuidado, porque este projeto pode ser bom, mas é um projeto a 15 anos. Não é um projeto a cinco.
Segundo os último relatório da AGIF, em 2023 foram registados 7523 incêndios rurais, o número mais baixo na análise desde 2001, 61% abaixo da média do período 2010-2019. Isto apesar do aumento do número de dias de maior severidade meteorológica (em 2023 foram 63 e em 2022 foram 61. Houve ainda uma diminuição de 53% da média da taxa de ignições nos dias de elevado perigo de incêndio desde 2001 a 2017 face a 2018-2023... O sistema está assim tão mal?
Que isso representa?
O investimento em prevenção passou a ser desde 2020 superior ao combate. Entre 2018 e 2023, a despesa do Estado totalizou 2,5 mil milhões de euros, sendo que comparativamente a 2017, aumentou 3 vezes, sendo 9 vezes maior em prevenção e 2 vezes maior no combate… Perante estes números consegue dizer que o sistema está a funcionar assim tão mal?
Não estou a dizer que o sistema está a funcionar mal. Estou a falar do sistema de resposta ao combate. Não estou a falar da prevenção.
Mas quanto maior for a prevenção, menos necessidade há de meios para o combate...
Claro que sim. Mas nós temos é de cruzar as linhas. O que é que aconteceu depois de 2017? Toda a gente disse assim: nós temos que apostar na prevenção. E esqueceram-se do combate?
A ANEPC transferiu 65M€ no ano passado para as Associações Humanitárias de Bombeiros destinados às equipas de combate a incêndios rurais.
Isso é para ressarcir as despesas que cada um dos bombeiros tem para estar no quartel a aguardar que haja um alerta. Não é um investimento. Desde 2012 até agora, quantas viaturas foram entregues pelo Estado aos bombeiros?
Diga-nos.
Do PRR foram 81, que não foram todas entregues este ano. Desde 2012 até 2022 não houve nenhuma entrega de viaturas ao Estado. As viaturas que os bombeiros têm para combate aos incêndios florestais foram obtidas através de verbas que concorreram nos programas da União Europeia, ou de subsídio das câmaras municipais ou recursos próprios das associações humanitárias. O Estado não deu nenhuma viatura. Deu agora 81 em regime de comodato comprada pelo PRR. Se o Estado,quando quer ter uma capacidade de resposta, tem de a montar e só a pode fazer de duas formas: ou tem ele próprio capacidade para o fazer ou então tem de fazer um contrato-programa com cada uma das associações, que é aquilo que nós defendemos.
Mas essa operacionalização também está a ser feita a partir do momento em que o Estado começou a ter uma força especial de bombeiros...
Mas qual força especial de bombeiros? A Força Especial da Proteção Civil tinha 400 homens. Agora tem 230. A força especial da GNR tinha 400. Agora tem 1070. Por isso é que achamos muito engraçado falarem em operacionais.
Mas são operacionais, não são?
Somos todos operacionais. Até quem está a atender o telefone. Não podemos é confundir as coisas. O combate aos incêndios florestais em Portugal é assumido pelos bombeiros. E depois há pequenas bolsas, cuja importância reconhecemos. Por exemplo, a responsabilidade pelo ataque de primeira intervenção aéreo não é dos bombeiros. É feito pela Unidade Especial de Proteção e Socorro (UEPS) da GNR, a cujo comandante já dei os parabéns, no sentido de lhe dizer que ele está a fazer um excelente trabalho. Não me custa nada reconhecer. E eu até era um crítico disso. Mas já que o modelo existe, devemos apoiá-lo, porque se está a funcionar bem, não devemos destrui-lo. Agora, isso não transforma essa situação dos 32 ou 34 ou 35 helicópteros e os cerca de 500 elementos que lá estão na principal força de intervenção. Não, a principal força de intervenção são os bombeiros.
Essa é uma perceção que toda a gente tem, a de que são os bombeiros que combatem os incêndios…
As imagens não mentem. Agora escusamos é de depois, ao final do dia, dizer que tivemos lá 700 operacionais. Nós só queremos ter louros sobre aquilo que nós fazemos. Não queremos que os outros se apropriem do nosso trabalho. Se errarmos critiquem-nos.
Uma das, para mim, novidades que aconteceu durante estes últimos dias foi que, além do recurso a meios aéreos ao abrigo do Mecanismo Europeu de Proteção Civil, recebemos também de Espanha uma unidade militar. É algo que faz falta existir em Portugal?
Já temos com a UEPS.
Só que nós escolhemos um modelo diferente. Eles podiam ter posto isto na Guarda Civil e não puseram...
A Europa toda colocou isso nos militares. Era o nosso modelo. Em França está tudo apoiado em unidades de Engenharia que são militarizadas e integram dentro da Securité Civile. Em Espanha, eventualmente têm umas Forças Armadas mais musculadas do que as nossas. Aliás, nós temos uma unidade dessas em Abrantes. Só que não tem o número de efetivos que tem em Espanha. Portanto, foi determinado que fosse a GNR. Hoje, vendo a proficiência que eles têm, reconheço que têm um trabalho excelente e são uns parceiros dos bombeiros.
Voltando às contas, consegue dizer-me se houve mais ou menos investimento nos últimos dez anos nos bombeiros? Tem números concretos?
Não tenho aqui os números concretos sobre isso. A evolução geral é que as Associações Humanitárias de Bombeiros Voluntários estão subfinanciadas. Algumas delas vivem de mão estendida e muitas só conseguem sobreviver com o auxílio das câmaras municipais. É um dos problemas que temos e que temos vindo a chamar a atenção dos políticos. Não é do Governo, é dos políticos. Tenho tido reuniões com todos os partidos políticos na Assembleia da República. Estamos na quarta ou quinta ronda sobre esta matéria. Por uma razão simples: as câmaras municipais não são obrigadas. Do ponto de vista da ética, da moral e da corresponsabilização, com a figura do presidente da câmara como primeiro responsável pela Proteção Civil, vão ajudando os bombeiros. E se não fosse essa ajuda, então os bombeiros estavam muito pior. Temos situações em que há municípios que colocam 2 milhões de euros por ano nos seus corpos de bombeiros.
Quando as associações de bombeiros são criadas é tido em conta alguma perspetiva estratégica global? Ou seja, há aqui alguma forma de olhar para o país e perceber as áreas de maior risco...
Já não se criam associações há mais de 30 anos.
Mas as que existem agora estão nos sítios certos, com os meios adequados?
Com 436 Associações de Bombeiros haverá algumas que não estão nos sítios certos.
Não podia ser feito algum tipo de planeamento e de reorganização dessa estrutura?
A Liga é contra, por uma razão simples, porque é a livre iniciativa dos cidadãos. A responsabilidade da segurança é do Estado. No security e no safety. Foram as populações que, vendo que o Estado há 150 anos não conseguia, de uma forma organizada, ter uma viatura de combate a incêndios, ter uma ambulância-auto, se organizaram. Criaram as suas associações humanitárias. Estão reconhecidas legalmente e não faz muito sentido que o Estado agora venha a dizer bom, eu dei há 30 anos essa autorização, mas agora pensei melhor...
Mas não faria sentido, de facto, reorganizarem-se?
Mas quem é que vai dizer à população de uma determinada localidade que construiu, porventura até o seu quartel, que tem os seus homens e as suas mulheres a combater os seus incêndios e que está próximo da população que talvez fosse melhor reorganizar-se? Já aconteceu. Espinho fez isso. Há liberdade para isso. Não me parece é que tenha de partir do Estado. Tem de partir da própria sociedade e as associações que entendam que serão mais fortes, na defesa das suas populações, se se juntarem, não temos nada contra. Mas agora cortar verbas ou procurar dizer que se maximiza verbas se houver junções, não me parece que essa seja a solução, porque num caso poderá ser vantajoso e noutros pode não ser.
Mas se estão a exigir verbas do Estado também o Estado pode exigir que prestem contas e que vejam exatamente qual é o papel que cada uma das associações tem nos seus locais…
As Associações Humanitárias de Bombeiros Voluntários são obrigadas a entregar na ANEPC, até ao dia 30 de junho de cada ano, o seu Relatório de Atividades e Contas. Em 2022, o INE deu este número, que é importante: entre o valor da receita e das despesas das associações há um défice de 100 milhões. O Estado dá às 436 associações humanitárias 33 milhões por ano, dados de 2024. Veem a miséria que isso é.
Acresce todas as missões que pede às associações...
Já lá vamos. Interessante é que o Estado entrega 33 milhões e as associações entregam ao Estado 35 milhões em TSU. Agora, outra questão. Em 1979, a Assembleia da República, e bem, determinou que as taxas dos vários seguros de incêndio constituíam uma receita para o, na altura, Serviço Nacional de Bombeiros, apoio aos bombeiros. Onde está essa receita hoje? Na ANEPC.
Não é a ANEPC que distribui?
Até é interessante que na própria lei da ANEPC há um artigo que diz que os bombeiros têm um orçamento próprio dentro do orçamento da ANEPC. Nunca foi feito, desde 2019. Portanto, o que dizemos é que o Estado cumpra a lei. Cumpra as duas resoluções da Assembleia da República a dizer que os serviços de emergência hospitalar têm de ser ressarcidos aos bombeiros pelo valor real. Nós, para termos uma equipa de oito homens ou mulheres 24 horas, 365 dias por ano por uma ambulância de Posto de Emergência Médica (PEM), custa 12.000€ por mês. O INEM está a pagar-nos seis mil, 50%. Portanto, paguem às associações humanitárias o trabalho que prestam à sociedade, porque se não for às associações humanitárias, há de ser a alguém. Temos de transportar os doentes urgentes e emergentes, combater incêndios, fazer o rescue nos acidentes rodoviários e temos de transportar os doentes à hemodiálise, à fisioterapia.
Escutou com certeza a expressão do senhor primeiro-ministro, na conferência de imprensa que deu a seguir ao Conselho de Ministros, sobre interesses que sobrevoam os fogos rurais. O que é que leu nessas palavras?
Sinceramente, não tenho muita opinião sobre essa matéria e todos nós também sabemos que em cada ano, quando existe um elevado número de incêndios florestais, se fala dos interesses mais variados. Já ouvi de tudo e mais alguma coisa. Umas vezes eram os contratos dos aviões, outras vezes eram os madeireiros, outras vezes era o turismo, outras vezes tudo e mais alguma coisa. Não tenho nenhuma informação sobre isso. Ao longo do tempo o que se veio a verificar é que a maioria dos incêndios ou são causados por negligência, ou são causados por alguém, ou por um conjunto de pessoas que tem alguma vingança pessoal para o fazer. Não estou a desvalorizar nada. Acho muito bem que tenha sido constituída uma equipa especial de investigação dos incêndios, porque nós também precisamos de esclarecer isso de uma vez por todas. Deixe-me dizer mais: o Governo, nestes incêndios, tem andado bem quanto a cria um grupo para acompanhar já a fase da recuperação e reabilitação. Não teve a tentação de dizer: vamos lá primeiro acabar com isto e depois olhamos para esta situação. Eu sempre defendi isso. A proteção civil é por etapas, enquanto que alguns estão na prevenção, outros no combate, outros na reabilitação e recuperação. E tudo em simultâneo, porque quando uma frente de fogo é extinta, posso ir imediatamente olhar para estas pessoas. Não preciso de esperar o fim. Quem esteve mal nesta situação foi quem tem hoje a responsabilidade pela mobilização de meios, com a falta de coordenação, comando e controlo que houve no terreno.
A Proteção Civil especificamente?
A Proteção Civil especificamente. Quando temos quatro bombeiros falecidos, três dos quais numa frente de combate que morreram a lutar para salvar vidas e os seus bens, tem de haver responsabilidades e nós não somos daqueles que dizemos que é no fim que se procuram responsabilidades, que não é no momento. Já o disse e volto a dizer: se fosse eu que estivesse à frente da Proteção Civil, independentemente do apuramento de responsabilidades que possa haver, não teria convivido com esta situação. Teria ido embora nesse dia.
Até porque houve afirmações anteriores sobre esta matéria, até no Parlamento, sobre as questões de 2017. Nós, LBP avisámos: cuidado que 2017 não é um epifenómeno, 2017 pode repetir-se. Felizmente que através destes programas Aldeia Segura, Pessoas Seguras e da consciencialização que houve, isso não aconteceu. Mas, entretanto, houve críticas porque houve autoestradas em que as pessoas ficaram lá dentro. Portanto, isto não está tão bem como diziam. Gostamos de pintar bem o quadro, mas é preciso ir depois às pinceladas mais pequeninas, porque é nelas que, se calhar, encontramos... Somos muito bons a começar coisas, mas depois deixamos tudo e acreditamos que temos uma proteção divina que às vezes não funciona.
Isso que está a dizer de assunção de responsabilidades é em termos operacionais ou em termos administrativos, da Proteção Civil? Os dois?
Sim.
Mas não abrange a nível político?
Não temos, neste momento, nenhuma razão para pedir responsabilidades políticas. Os políticos acreditaram que a estrutura funcionava. Mas, a seu momento, também iremos lá. Isso sim, é no final. Porque nós avisámos que o modelo não funcionaria. Iremos perguntar a quem informámos que o modelo tinha de ser reajustado e que assim não ia funcionar. Vamos perguntar por que é que se continua a pagar 2,80 euros aos bombeiros à hora; por que é que os bombeiros profissionais nos corpos das associações humanitárias não têm um quadro; por que é que os seguros não foram atualizados e agora temos quatro mortos para indemnizar. Não vamos deixar esquecer o assunto.
Nas últimas três décadas trabalhou com vários ministros em várias áreas, mas especialmente na Administração Interna e na Economia, porque foi um alto dirigente do Estado. Estando agora do lado de fora, sente evolução na forma como quem governa comunica, não só com os parceiros que estão no terreno em situações destas, como com a população? E, concretamente, em relação à atual ministra da Administração Interna?
Sobre o Ministério da Administração Interna não faço comentários, porque muitas das coisas que eu acabei agora aqui a dizer foram todas entregues, logo no início, e vamos pedir satisfações quando chegar a altura. Sabe que o mundo mudou, o mundo comunicacional mudou. Tudo mudou.
Para melhor ou para pior nessa parte?
Na minha perspetiva, houve situações que foi para pior. Sabe que sou de um tempo da Administração Pública, onde passei exatamente 40 anos e percorri todos as categorias, desde o chefe de divisão até ao diretor-geral, numa altura em que ia a despacho de ministros, levava uma proposta e o ministro perguntava: o que é que quer que eu decida? E o diretor-geral dizia: olhe, senhor ministro está assim, assim, assim, a decisão deve ser neste sentido. Ele pegava na caneta e fazia o despacho. Hoje não. Hoje acho que a tendência é o receio permanente da tomada de decisão. As direções-gerais, os institutos públicos perderam a confiança daquilo que era a sua autonomia técnica, não política, mas técnica. Isto hoje reflete-se um pouco na Administração Pública, que é talvez mais lenta na resposta ao cidadão.