"Andei na Beira Alta a alfabetizar pessoas com as idades dos meus pais e avós"
Quando Luís Máximo dos Santos combinou que nos encontrássemos junto ao Nicola não imaginei que o refeitório do Banco de Portugal ficasse por cima do histórico café lisboeta frequentado há mais de dois séculos pelo poeta Bocage, setubalense como eu. Mas sim, todos os dias, atuais e antigos funcionários do Banco de Portugal podem almoçar no Rossio, num refeitório com vista para o castelo de São Jorge (e para uma antiga livraria do Diário de Notícias no Rossio que até aparece num filme do 007). E a chegada do vice-governador não passa despercebida. Sobretudo os mais velhos aproveitam para cumprimentar Luís, que também já vai com três décadas de casa.
"Ingressei nos quadros como jurista em 1992, e foi para mim uma grande realização, porque acho que as missões de um banco central combinam o Direito, a Economia, e as Finanças. Atualmente, com a regulação que há, é preciso compreender o Direito, saber interpretá-lo, pois há um imbricamento da Ciência Económica com a Ciência Jurídica e os aspetos financeiros muito profundo. Aliás, não é por acaso que Christine Lagarde, que está à frente do Banco Central Europeu, tem também formação em Direito. Claro que depois as pessoas adquirem muitas outras competências, mas não há dúvida de que gostei sempre do trabalho que vim fazer", diz o homem que desde 2016 está na administração do Banco de Portugal, instituição com 175 anos e sede na rua Áurea, não longe de onde estamos a saborear um creme de espargos.
Conheci o Luís por causa do interesse comum nos assuntos da geopolítica e ainda há umas semanas almoçámos no Ibo, um restaurante no Cais do Sodré, para uma troca de ideias e em que me recomendou o livro A Tirania do Mérito, de Michael J. Sandel. Mas quando surgiu a ideia de fazer este Brunch (ou melhor lunch), sugeri um almoço num sítio como este, ligado ao percurso pessoal e profissional, o tema central da conversa.
Comecemos então pelo local de nascimento, Olival de Basto, "em casa dos pais", em 1961. Pergunto que terra era essa, então em Loures, hoje parte do concelho de Odivelas: "era um pequeno subúrbio de Lisboa que estava em construção, em virtude das necessidades da expansão imobiliária. Hoje é quase um local de passagem, visto que é tão perto de Lisboa. Quando morreu o meu pai, que ainda lá vivia, comprei a casa. É bastante modesta, mas achei que modernizando-a e arrendando-a seria um gesto de deixar comigo um local que é sempre importante, que é aquele onde se nasce. Sou o mais novo de três irmãos, mas curiosamente o único que não nasceu na maternidade".
Com o irmão mais velho, José, em Angola, a Guerra do Ultramar era tema de conversa e de preocupação na família. Até porque um dia podia ser chamado o irmão do meio, Mário, e quem sabe até Luís. Por isso a alegria do 25 de Abril para o adolescente que andava na Escola Comercial Patrício Prazeres, em Lisboa, perto da casa onde a certa altura passou a viver com uma tia-avó. Relembra: "Em 1974 tinha 13 anos, mas diria que havia uma politização precoce em virtude de haver uma diferença de idades considerável para os meus dois irmãos, e o mais velho estar na guerra colonial. Era uma preocupação extrema, porque todos os jovens naquele tempo sabiam que crescendo - e nada se alterando - poderiam vir a ter de participar numa guerra. O 25 de Abril foi passado em casa encostado ao rádio, a tentar perceber o que se passava. De manhã ainda tive de ir à escola, mas voltei para casa porque estava tudo a fechar e recebemos ordens para voltar para trás".
O espírito da revolução vai fazer-se sentir logo no comício do 1.º de Maio, num estádio perto de casa e ao qual Luís foi com amigos, e depois nesse verão, com a participação nas ações de alfabetização, levado pelo irmão do meio: "Foi uma coisa extraordinária e ainda hoje me questiono como é que aconteceu. Foi o meu irmão Mário que com um grupo de jovens me envolveu nas campanhas de alfabetização. Não tem nada a ver com aquilo que mais tarde se chamou dinamização cultural, era mesmo um movimento de jovens e havia aulas para aprender o método de alfabetização antes de ir para o terreno. Era o método Paulo Freire, um brasileiro, com um método muito interessante. Consistia em fichas com palavras que depois decompúnhamos pelas sílabas, cruzando-as para surgirem palavras. Na Faculdade de Letras, explicaram-me como é que se podia alfabetizar através desse meio. Fomos para Castelo Melhor. Depois de uma receção um bocadinho fria, porque o nosso aspeto contrastava muito com o de uma aldeia da Beira Alta, as pessoas aderiram. Gente com as idades dos meus pais e avôs. As sessões realizavam-se na casa do povo e foi um ato de generosidade".
O prato do dia é lombinho de porco com batatas e há vinho tinto para acompanhar. Luís conta como chegado o momento de pensar no futuro, já num Portugal democraticamente consolidado, se impôs a vontade de estudar Direito, "mesmo tendo sempre também um conhecimento muito forte nas áreas económicas, porque fui das últimas gerações a participar no ensino técnico e a experiência foi muito boa", conta, explicando a divisão que havia no secundário. E acrescenta: "Tive matemática, estatística, cálculo financeiro, economia política, portanto, o ensino era de qualidade e as pessoas saiam de lá capacitadas para ingressar no mercado de trabalho. É evidente que havia, e foi isso que determinou depois o ensino unificado, uma separação entre o liceu frequentado por jovens que, normalmente, ingressavam na faculdade, e os jovens das escolas comerciais, que na sua maioria iam trabalhar de seguida. O meu irmão licenciou-se em Economia e, a certa altura, achei que não queria ir para Económicas, mas sim para Direito. Sempre fui bom aluno, bolseiro da Gulbenkian, e sempre gostei de económicas, mas sobretudo fascinava-me os nossos quatro principais dirigentes políticos da época - Mário Soares, Álvaro Cunhal, Freitas do Amaral, Sá Carneiro -, serem todos licenciados em Direito".
Luís faz uma pequena pausa e diz que também o general Ramalho Eanes, o primeiro presidente eleito da democracia, teve um papel-chave na forma positiva como saímos do processo revolucionário. Pergunto se tem uma visão positiva dos tais quatro líderes partidários. "Claro que cada um a partir da posição ideológica em que se colocou, mas tenho porque acho que Portugal foi feliz. Conseguiu ter nessa época muito turbulenta, personalidades que souberam distinguir de forma muito clara o essencial do acessório. O professor Freitas do Amaral fez a integração de um setor mais à direita na democracia portuguesa, o Dr. Álvaro Cunhal recuou quando teve que o fazer, o que também requereu coragem, Sá Carneiro foi uma figura marcante de coragem extraordinária, e Mário Soares foi o grande líder da nossa democracia", sublinha. "Para mim, Soares foi o homem que fez a pedagogia da nossa democracia, fez-nos perceber como é que ela funcionava, o que era hoje estar no poder e amanhã na oposição. Foi uma figura gigante na história europeia", acrescenta, relembrando-se que já me contara o episódio que o ligou pessoalmente a Soares quando este foi eleito presidente em 1986.
Peço-lhe que volte então a contar como o jovem jurista formado pela Faculdade de Direito da União de Lisboa, depois de uma curta experiência como assessor no Gabinete do Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares no IX Governo Constitucional, o do Bloco Central, aparece nas notícias, incluindo no DN, com o presidente da república. "Em 1987, tinha 26 anos, e o presidente Mário Soares recebeu o Prémio Robert Schuman. Dos regulamentos fazia parte o premiado indicar um jovem que entendesse ter feito trabalhos dignos de nota sobre a integração europeia. Depois de ter trabalhado com António Vitorino no governo tinha voltado a ser assistente na Faculdade de Direito e não tinha nenhuma conexão política específica com Soares. No entanto, um dia recebi um telefonema de um assessor dele a dizer que tencionavam designar-me para receber esse prémio secundário. Fiquei felicíssimo porque sempre achei que a questão da união monetária é extraordinária. E o meu mestrado, concluído em 1990, foi exatamente sobre o tema. E visto hoje, ainda que se conheçam as suas insuficiências e riscos, o euro é um projeto extraordinário pelo que denota de voluntarismo político. Então, em 1987, lá fui para Estrasburgo, onde era a cerimónia de entrega do prémio", relata, mostrando-me no telemóvel a fotografia de dois recortes do DN, artigos assinados por Carlos Albino, veterano jornalista com quem trabalhei ainda e que nunca esqueço que foi quem na noite de 24 para 25 de abril de 1974, na Rádio Renascença, pôs a tocar Grândola Vila Morena, a senha para os capitães avançarem no derrube da ditadura. "Um ilustre desconhecido que, por obra e graça do prémio Robert Schuman, já subiu ao noticiário circunstancial da Europa. Trata-se de Luís Máximo, de 26 anos e assistente da Faculdade de Direito de Lisboa", escrevia o DN a 26 de junho de 1987.
Desde 1992 no Banco de Portugal, desde 2016 administrador e desde 2017 vice-governador, com a renovação do mandato já confirmada, o meu anfitrião já testemunhou momentos complicados, nomeadamente quando teve de liquidar bancos ou gerir fundos de resolução. Não quer desenvolver muito o assunto, mas não duvida que intervir é o mal menor: "Presidi à liquidação do Banco Privado Português primeiro, em 2010, e depois ao Banco Espírito Santo, objeto da medida de resolução. Foi feita a resolução, criado o Novo Banco como banco de transição, e ficaram ativos residuais no BES que ainda não estava em liquidação. A licença bancária mantinha-se, só se revogou mais tarde, e era preciso que as contas batessem certo, as do banco que tinha saído do próprio e as do BES em si. Foi dificílimo e desafiante, tive de construir tudo do nada, e é um trabalho de que tenho muito orgulho. Depois, deu-se a circunstância de ser convidado para a administração e, mais tarde, caiu-me nas mãos a responsabilidade do Fundo de Resolução, sabendo que era uma tarefa exigente e passível de não ser bem compreendida. Mas era preciso fazê-la com rigor. De facto, ainda agora o reconhecimento de Ben Bernanke, ex-presidente da Reserva Federal dos EUA, com o Nobel da Economia, vem pôr em evidência que quando há intervenções públicas para preservar bancos com uma dimensão sistémica, isso não é para defender os banqueiros. É para defender as poupanças dos cidadãos, a permanência dos sistemas de pagamentos, e a fluidez do financiamento da economia. São medidas que, por vezes, se revelam indispensáveis. As alternativas são sempre muito piores e mais custosas para todos. E precisamente, na Grande Depressão de 1929, essas medidas não foram adotadas o que contribuiu para cavar mais fundo a quebra do produto e o galopar do desemprego", argumenta Luís. Chega a hora das sobremesas .Temos direito ambos a salada de frutas.
Casado e pai de um filho e de uma filha, ambos jovens adultos, Luís é um homem preocupado com a persistência da pobreza em Portugal (depois de tantos anos a receber fundos europeus), com a paralisação da mobilidade social (ele foi depois do irmão Mário o segundo licenciado da família), com a sustentabilidade do planeta e também com a instabilidade global, nomeadamente desde que a Rússia invadiu a Ucrânia e o Ocidente decidiu retaliar com sanções que por vezes fazem ricochete. O vice-governador do Banco de Portugal, que viu as intervenções do FMI e mais recentemente a da Troika, faz um discurso de diferença para a situação atual: "Portugal conseguiu sair bem dos dois acordos com o FMI, nos anos 70 e 80, e para isso muito contribuiu na altura a utilização da política cambial. Mas foram momentos bastante sofridos e com taxas de inflação muito superiores às que temos hoje. No caso da crise que motivou a intervenção da Troika, independentemente dos erros de política económica que foram cometidos, a verdade é que a Europa não estava preparada. As pessoas mais bem informadas sabiam bem que a estrutura do euro era imperfeita e incompleta. E perante uma crise como aquela, isso viu-se de forma clara, tendo sido penoso. Sobretudo, porque se traduziu num desemprego muito elevado, que é algo que, para já, contrasta com a situação atual. Neste momento, temos taxas de inflação altas, comparando com o período anterior, mas ao nível do desemprego não se pode dizer que estejamos numa situação má. Mas há que ter cuidado, porque até mesmo no que diz respeito às taxas de desemprego, a avaliação comparativa diz que podem crescer com rapidez se houver motivos para tal. E, de facto, estamos a atravessar um momentos crítico para a Europa. Por força da sucessão de um conjunto de crises. Ainda não estavam superados os efeitos da pandemia e caiu-nos em cima esta guerra que, além do dramatismo que encerra, do ponto de vista da energia muda as coisas de forma drástica. Há um grau de incerteza elevado e a prudência é a palavra-chave. Veja-se o que acabou de acontecer com a ex-primeira-ministra do Reino Unido, Liz Truss, que foi tudo menos prudente, e os resultados estão à vista".
Europeísta convicto desde aquele momento em que adivinhava o advento da moeda única, Luís não deixa de pensar que pesam muitos riscos sobre a UE: "Apesar de haver um discurso de que se está tudo a consolidar, acho que isso dependerá muito da evolução dos acontecimentos. Em particular, julgo que é preciso ter muita atenção com um país crucial, que é a Alemanha. É o único país que conserva uma margem de autonomia muito elevada em relação às suas políticas, todas elas. E se for pressionada de modo excessivo pelos seus parceiros, com novos complexos de culpa, não é de excluir o risco de as próximas gerações na Alemanha se sentirem desconfortáveis com os parceiros, e isso é um jogo arriscado, pois pode gerar ressentimento, tendo em conta o que a Alemanha já fez por eles. Acho que, sobretudo, é importante compreender os alemães. Tal como, por vezes, não nos compreenderam ou interpretaram mal durante o período da Troika, agora temos nós de tentar compreendê-los". Pausa para um café e voltamos à conversa. "Por exemplo, a relação da Alemanha com a Rússia, terá sido exagerada no sentido em que se colocou numa dependência excessiva no gás, mas era uma relação com raízes históricas profundíssimas, que faz sentido no contexto da geografia. Portanto, às vezes o excesso de pressão pode ter a prazo consequências que não estamos a antever e que, no fundo, não queremos. É preciso ponderação", alerta o vice-governador do Banco de Portugal. leonidio.ferreira@dn.pt
============2021 - DN+ - TIT Grandes (10266100)============
============2021 - DN+ - Postitulo (10266110)============
"Em 1987, tinha 26 anos, e o presidente Mário Soares recebeu o Prémio Robert Schuman. Dos regulamentos fazia parte o premiado indicar um jovem que entendesse ter feito trabalhos dignos de nota sobre a integração europeia. Tinha voltado a ser assistente na Faculdade de Direito e não tinha nenhuma conexão política específica com Soares. No entanto, um dia recebi um telefonema de um assessor dele a dizer que tencionavam designar-me para receber esse prémio secundário. Fiquei felicíssimo porque sempre achei que a questão da união monetária é extraordinária. E o meu mestrado, concluído em 1990, foi exatamente sobre o tema."