Sociedade
16 outubro 2021 às 22h04

Squid Game. A série que está a deixar a comunidade escolar em alerta

Série da Netflix é um fenómeno de popularidade entre os mais novos, mas não é adequada a menores de 16 anos. GNR diz estar "muito atenta a este fenómeno, até pela presença ativa na comunidade escolar, junto de crianças e jovens".

Squid Game é nome de um novo "fenómeno" de audiências, sendo já classificada como a série mais vista de sempre da plataforma de streaming Netflix, destronando sucessos como A Casa de Papel. A série está classificada para maiores de 16 anos, mas a história que retrata jogos infantis tem chamado a atenção de crianças e adolescentes (ver caixa) e está a preocupar a comunidade escolar pela violência envolvida, que já encontrou exemplos de replicação na vida real em vários pontos do mundo.

"A meu ver, a classificação até devia ser para maiores de 18 anos. O grau de violência é muito elevado. Preocupa-me sobretudo que as crianças possam ter acesso a estes conteúdos", alerta Nuno Pinto Martins, fundador da Academia Educar pela Positiva.

Para o especialista, "é muito importante que, sobretudo até à entrada na adolescência, estes conteúdos não estejam disponíveis. Os meus filhos têm acesso à Netflix apenas na sala e com um perfil criado para a idade deles, o que permite que só surjam conteúdos até aos 12 anos", explica. Contudo, a mesma estratégia pode já não ser adequada a adolescentes. "Quando se trata de adolescentes, a proibição tem um efeito contrário. Quanto mais proibirmos, mais eles querem ver e encontram quase sempre forma de o fazer. Aqui, o mais importante é a supervisão e a orientação. Podemos aproveitar este tipo de produtos para nos sentarmos com eles e conversarmos sobre o assunto. E se a idade já o permitir, os pais podem ver os episódios com os filhos, para irem conversando e orientando", aconselha.

Nuno Pinto Martins alerta ainda para os efeitos nefastos nos pré-adolescentes e adolescentes, cujo cérebro "está em fase de maturação. Nestas faixas etárias ainda não há uma perceção completa de algumas coisas. Pode existir confusão entre a realidade e a ficção, como já tem acontecido em alguns países, onde crianças imitam os jogos da série e agridem quem perde. Nesta fase, ainda há uma falta de noção de limites", sublinha.

Para Sofia Chamusca, coordenadora pedagógica (creche, pré-escolar e 1.º ciclo) do Colégio Júlio Dinis, no Porto, "a escola tem um papel importantíssimo" na literacia digital e no acompanhamento de "fenómenos" potencialmente perigosos entre os mais jovens. "Não cabe à escola a responsabilidade total, mas deve trabalhar em conjunto com as famílias. A escola previne, orienta e está atenta, mas as famílias têm de seguir a mesma linha", salienta.

A responsável diz que os professores estão "atentos às novas tendências de consumo", sendo "promotores de comportamentos preventivos". Sofia Chamusca, que é também mãe de três meninas, recorda uma situação em sala de aula, no decorrer da qual os alunos falaram na série Squid Game. "O assunto foi referido por alunos doe 7.º ano da turma da minha filha mais velha, e o professor de História aproveitou o momento para explicar do que se tratava e alertar para os perigos subjacentes da visualização da série na faixa etária deles. Os professores assumem, nestas situações, uma função muito importante", conta.

Contudo, mesmo com todos os projetos de prevenção e o acompanhamento de fenómenos como o do Squid Game, "a família tem de estar do lado da escola. O sucesso do papel da escola depende das estratégias de educação implementadas pelos pais. Não temos autoridade, por exemplo, para verificar telemóveis se houver algum problema em grupos de WhatsApp ou se o aluno estiver a visualizar, nos intervalos, conteúdos que possam não ser próprios para a idade. Podemos delinear estratégias e acompanhar, mas é à família que cabe o papel mais importante", sustenta. E o mais importante, diz, são os fatores "confiança, comunicação e conforto entre a escola e a família".

Apesar de ainda não ter registado nenhuma situação ligada à série Squid Game no Colégio Júlio Dinis, "os alunos dos 2.º e 3.º ciclos falam no programa. Mesmo aqueles que não viram a série sabem do que se trata, e é preciso não esquecer que as crianças e adolescentes podem aceder a qualquer conteúdo através do YouTube ou até de telemóveis de outros colegas. Os pais devem estar atentos, as crianças não vivem numa bolha. Inserem-se em grupo e é aqui que se perde o controlo. Mais importante do que ter aplicações para restringir acessos ou não permitir que os filhos tenham determinadas aplicações, devemos conversar e prepará-los para os perigos. Não é proibir, é explicar, porque o que é proibido é muitas vezes mais apelativo", refere.

José Morgado, psicólogo e especialista em educação infantil e docente na Escola de Educação do ISPA, partilha da mesma opinião. "Não defendo estratégias proibicionistas, mas sim um acesso mediado, no qual os pais sabem o que os filhos estão a consumir. Devemos aplicar estratégias autorreguladas para que crianças e jovens percebam o grau de inadequação para a idade deles, no caso da série Squid Game ou de outros conteúdos violentos", explica.

Para o especialista, é "necessário desconstruir o que os mais jovens veem. "Não quero fazer um discurso catastrofista, mas é necessário estar atento para garantir o bem-estar dos mais novos. O Squid Game é feito para maiores de 16, mas quem olha para a série até pode pensar que não é algo perigoso. Antes do Squid Game tivemos o fenómeno Baleia Azul, com miúdos levados ao suicídio. A própria aplicação Tik-Tok, aparentemente inofensiva, permite desafios que são uma alavanca para potenciar determinados tipos de comportamento perigosos. Temos um caldo de cultura, um cenário que não é amigável para que os miúdos se protejam e que dá espaço a comportamentos de risco e a cyberbullying", afirma.

O psicólogo defende também a existência de "alçapões na internet". "Dou-lhe um exemplo prático. O YouTube Kids permite aos pais bloquearem determinados conteúdos, mas se fizer uma pesquisa com a palavra Lego ou Mickey, aparecem sugestões de vídeos em cenários violentos ou com simulações de assaltos. Muitos pais acham que dominam as tecnologias e que conseguem bloquear tudo, mas os algoritmos usados nestes sites são complexos. Têm alçapões", explica.

Segundo José Morgado, é por isso tão importante o "comportamento autorregulado. Crianças e adolescentes precisam de perceber o que é o risco e o que devem evitar. Acontece o mesmo com as saídas à noite. Não se trata de uma questão de idade, mas de maturidade e de autonomia. Não defendo uma educação para a santidade, mas uma educação para a ética, na qual se ensina a saber gerir os limites. Não é fácil, e a série Squid Game é prova disso, tal como o jogo Fortnite. Há crianças que acedem a conteúdos aparentemente inofensivos e outras que passam os intervalos a jogar, sem que os pais façam ideia do perigo paralelo que pode haver. Se conseguir educar o meu filho para saber identificar os perigos, o meu filho pode assumir um comportamento autorregulado e prevenir danos psicológicos", conclui.

Há alguns sinais para os quais os pais e professores "devem estar atentos" e que podem indicar que "algo de errado se passa". Se uma criança se isola muito, se tenta resguardar-se mais do que fazia, se subitamente deixa de se identificar com um grupo ou está mais retraída, são sinais de alerta. "Alguns sinais são mais subtis, como crianças e jovens que sempre foram felizes para a escola e deixaram de o fazer, as insónias ou a irritabilidade. As crianças, muitas vezes, não verbalizam o que sentem, mas fisicamente não estão tranquilas. Também aqui a comunicação entre os pais e a escola é fundamental, porque os sinais de alerta podem estar apenas visíveis em um dos contextos (casa ou escola) e todos devem estar informados para ajudar", explica Sofia Chamusca.

Nuno Pinto Martins defende que "os pais devem procurar ajuda de um especialista quando os filhos ficam mais agressivos ou reproduzem comportamentos que viram na série Squid Game, se ficaram viciados e só querem ver conteúdos relacionados com o programa".

Surgiu há uns dias nas redes sociais um comunicado da GNR, no qual era pedido aos pais para que os seus filhos não assistissem à série. A GNR, entretanto, emitiu este domingo um comunicado a informar que se trata de uma página não oficial, mas que, contudo, está atenta ao fenómeno relacionado com a série da Netflix.

"Informa-se que no dia 15 de outubro, uma página não oficial da Guarda Nacional Republicana, através das redes sociais lançou alguns conselhos e advertências aos pais, referentes à nova série televisiva "Squid Game".

A página em causa não é da responsabilidade da Guarda nem pertence a nenhum canal de comunicação oficial da Guarda, pelo que foram encetadas diligências para que a mesma fosse desativada, o que já se verificou.

Não obstante, a Guarda está muito atenta a este fenómeno, até pela presença ativa na comunidade escolar, junto de crianças e jovens. Ao longo das diversas ações de sensibilização que fazemos junto da comunidade escolar iremos continuar a reforçar os conselhos e os perigos que a violência transmite às crianças e aos jovens e a importância da sua monitorização", pode ler-se no comunicado da GNR.

O enredo é simples, mas a história torna-se complexa ao longo dos oito episódios. Na série "Squid Game", 456 concorrentes desesperados com dívidas que não conseguem pagar aceitam competir uns contra os outros para ganhar uma pequena fortuna. Contudo, apenas um dos jogadores terá acesso ao prémio final. Todos os outros morrerão nas competições. Os jogos de sobrevivência têm por base brincadeiras infantis, como o 1,2,3 macaquinho chinês ou uma competição de berlindes. Os jogadores eliminados a cada ronda são mortos de forma violenta, perante o olhar de todos os outros adversários, fazendo um retrato social que mostra de forma crua até onde o ser humano é capaz de ir por dinheiro. A série sul-coreana estreou na plataforma de streaming Netflix a 17 de setembro e já foi vista por mais de 110 milhões de pessoas em todo o mundo.

Numa escola belga, crianças de 11 e 12 anos reproduziram os jogos da série nos intervalos das aulas. Imitando o que acontece nos episódios em que os jogadores são mortos se perderem, as crianças agrediam fisicamente os colegas que perdiam. Situações de violência física também foram registadas numa escola do Rio de Janeiro, no Brasil, levando o estabelecimento a enviar cartas aos pais dos alunos pedindo-lhes que não os deixassem visualizar conteúdos ligados à série. O mesmo pedido já tinha sido feito pelo próprio criador da série, Hwang Dong-hyuk. "Estou perplexo que crianças estejam a ver. Espero que os pais e os professores ao redor do mundo sejam prudentes, para que as crianças e adolescentes não sejam expostos a esse tipo de conteúdo", disse em entrevista a um canal coreano.

Notícia atualizada às 11.50 deste domingo com esclarecimento da GNR. O DN erradamente citou um comunicado de uma página não oficial da Guarda como sendo oficial.

dnot@dn.pt