Sociedade
27 junho 2022 às 22h40

O que será dos professores em mobilidade?

Governo prepara alterações legislativas já para o próximo ano letivo. Há professores que deixam de poder usufruir do regime de mobilidade e a quem não restará outra alternativa a não ser "meter baixa".

Paula Sofia Luz

Cátia Vieira teve aquela sensação do chão a abrir debaixo dos pés que já não lhe é de todo desconhecida. Aos 39 anos, a educadora de infância está habituada a lidar com a incerteza, desde que na adolescência lhe foi diagnosticada uma doença genética [doença de Stargardt] que se manifestou na visão: é amblíope.

Apesar de ter percorrido muitos agrupamentos no país, Cátia considera que até vinculou "bastante cedo", mas muito longe da sua área de residência, que é o concelho de Leiria. Foi parar à área de Lisboa. Quando, no início de junho, se deparou com a intenção de o governo alterar o regime de mobilidade por doença, que introduz alterações à colocação de professores, percebeu que poderia estar em apuros. Há dois anos que Cátia conseguiu pedir "a mobilidade por doença, para me aproximar da minha residência".

É educadora num jardim de infância do Agrupamento Domingues Sequeira, em Leiria, para onde se desloca de táxi ou à boleia com o marido, já que Cátia não consegue conduzir. "Não tenho condições para andar de transportes públicos. E se formos a miniconcurso, sou das últimas. Não estou a querer julgar as doenças dos outros nem as condições dos outros, mas isto é uma grande injustiça para pessoas como eu", afirma ao DN dias depois de conhecido o anúncio do Conselho de Ministros. Em causa está a aprovação de alterações ao regime de mobilidade de docentes por motivo de doença, que introduzem novos critérios para a colocação, que passa a depender da capacidade das escolas.

As novas regras para o regime que permite aos professores com doenças incapacitantes (ou familiares próximos nessa situação) mudar para uma escola mais próxima de casa ou do prestador de cuidados de saúde entram em vigor já no próximo ano letivo. O diploma foi publicado no final da semana passada, com alterações ao que estava inicialmente previsto, mas longe de acalmar a contestação gerada pelos professores.

A história de Cátia Vieira, educadora desde 2005 e a trabalhar no público desde 2010, replica-se aos milhares pelo país. "Fui sempre colocada ao abrigo da quota para pessoas com deficiência. Ao fim dos três anos consegui vincular no QZP 7, que é Lisboa, mas vai até Setúbal. Se esta alteração legislativa avançar, que alternativa tenho? Ficar de baixa? O meu objetivo não é ficar de baixa. O meu objetivo é trabalhar", diz ao DN, ela que tem um filho pequeno, ainda no primeiro ciclo.

Aos olhos do governo, as alterações que estão na calha têm outra interpretação. No dia em que o decreto-lei foi aprovado, o ministro da Educação, João Costa, considerou que "o decreto-lei que hoje foi aprovado visa essencialmente conseguir um equilíbrio entre a garantia de que os docentes podem exercer o seu direito de mobilidade para efeitos de prestação de cuidados de saúde e uma distribuição mais eficaz e racional dos recursos humanos da educação".

Em conferência de imprensa, no final da reunião do Conselho de Ministros, João Costa referiu as principais alterações aprovadas, a começar pela definição de áreas de circunscrição geográfica.

De acordo com a proposta então apresentada pela tutela aos sindicatos, podiam solicitar a mobilidade por doença os professores colocados a mais de 20 km, em linha reta, em relação à morada de residência ou do prestador de cuidados de saúde. Mas uma semana depois, a 17 de junho, o diploma publicado em Diário da República estendeu a distância até 50 km.

Segundo o ministro da Educação, o objetivo é gerir de forma mais eficiente os recursos humanos e assegurar "que não haja mobilidades injustificadas dentro do mesmo concelho para escolas muito próximas".

Mas o que parece simples, a partir de Lisboa, pode não o ser no resto do país. Que o diga Ana Almeida, professora do ensino secundário. "A minha escola de movimento é em Santa Cruz da Trapa, São Pedro do Sul. Para quem conhece a zona, saberá que as deslocações são penosas. É uma estrada nacional difícil de percorrer, e fazê-la duas vezes por dia, todos os dias da semana, é muito penoso para mim. Não aguento muito tempo. Tive que pedir a mobilidade por doença e estou a prestar serviço no centro da cidade de Viseu." Ana é professora de História, tem atualmente horário completo (cinco turmas de História e Geografia e ainda cinco turmas de Cidadania, o que perfaz no conjunto mais de 200 avaliações no ano) e testemunhou, no início de junho, o seu caso durante a conferência de imprensa da Fenprof. "Não me recuso a fazer qualquer tipo de trabalho que seja necessário ou qualquer atividade necessária à escola e aos alunos, mas se esta situação se mantiver não sei se o conseguirei fazer. E acho que com a minha idade - vou fazer 61 anos - e já no 26.º ano de serviço enquanto docente, é extremamente injusto que não possa pôr em prática as qualidades que adquiri ao longo do tempo", afirma a professora, que sofre de uma doença do sistema nervoso central e periférico dos órgãos dos sentidos, que, segundo avaliação médica, deve evitar deslocações.

Num país envelhecido - em que o próprio corpo docente é disso reflexo -, não admira que muitos professores utilizem o regime de mobilidade por doença para poderem prestar apoio a familiares diretos. É o caso de Teresa Carvalho, professora de Educação Especial, colocada em mobilidade neste momento em Lisboa (onde mora), mas que já correu meio país. Uma das últimas escolas onde foi colocada foi a C+S de Ansião, no norte no distrito de Leiria, a 140 km de casa. "Nos últimos três anos recorri à mobilidade por doença, porque tenho a meu cargo a minha mãe, que é uma pessoa com graves problemas de saúde e que atualmente depende a 100% de mim (para a vestir, dar-lhe as refeições, a medicação, tudo). E a 25 km que eu esteja, não consigo dar esta assistência a meio do dia e ao final do dia", sublinha a docente.

O ministro defende a alteração com algum aproveitamento que foi surgindo ao longo dos anos. "Temos algumas escolas que recebem em mobilidade por doença cerca de 100% do seu corpo docente, por vezes vindo de escolas de muita proximidade", esclareceu João Costa, revelando que 18% dos casos são de mobilidade dentro do mesmo concelho.

Segundo a alteração legislativa em curso, a colocação dos professores passa a estar condicionada à capacidade de acolhimento definida pelas escolas, que podem receber até 10% do seu corpo docente, identificando igualmente as áreas em que necessitam de reforço.

Quanto a este critério, o ministro recusou a ideia de estar a fazer daquele regime uma espécie de concurso, justificando que o que se pretende é "fazer o match entre a vontade do professor e a capacidade de acolhimento das escolas".

De acordo com o diploma, os professores que peçam a mobilidade por doença devem manter pelo menos seis horas de componente letiva, ao contrário da regulamentação atualmente em vigor.

Passa também a ser exigido um atestado de incapacidade multiusos, além do atestado de doença incapacitante e de deslocação para efeitos de tratamentos médicos, e a idade dos docentes passa a contar como fator de desempate na colocação.

Antes de ser conhecido, o diploma foi alvo de negociação com os sindicatos do setor, que rejeitaram a proposta do governo, considerando injustos os novos critérios. O Conselho das Escolas divulgou também um parecer negativo, em que alerta para as alterações agora confirmadas, sublinhando que acabariam por limitar o acesso àquele regime, por definirem a capacidade de acolhimento das escolas e um raio para a colocação dos docentes. Também a Federação Nacional da Educação (FNE) anunciou ter avançado com uma contestação junto da Provedoria de Justiça referente às alterações do governo ao diploma que institui o regime especial de mobilidade de docentes por motivo de doença. Em comunicado, a FNE considera que, com este diploma, o que o Ministério da Educação introduziu são alterações significativas, "que colocam em causa este regime, na medida em que não garantem a colocação de todos os docentes que têm a imperiosa necessidade de recorrer a este mecanismo".

Alteração das regras para a mobilidade muito contestada. "Legislação penaliza quem realmente precisa", acusa Fenprof.

Como é que a Fenprof vê esta alteração legislativa?

Naturalmente, vemos isto muito mal, e até o comentário do Sr. Presidente da República, que promulga dizendo ser um regime experimental, porque depois se avalia no final. Nós estamos a falar de um problema em que não se deviam fazer experiências. Estamos a falar da saúde das pessoas e da proteção na doença, de doenças incapacitantes, em que não se deveria entrar em experimentalismos, porque se correr mal pode ser um problema. Porque se a ideia aqui é poder aproveitar alguns destes professores para poder colmatar a falta de professores, isso não é correto. E muitos deles só terão uma alternativa: meter baixa.

Quais serão as grandes alterações que esta medida vai trazer?

Inicialmente, o diploma falava em 20 km (agora são 50 km) em linha reta, e nessas circunstâncias a pessoa nem sequer podia candidatar-se a uma escola (que podem ser 30 ou mais quilómetros, como bem sabemos), e se nós falarmos com pessoas com problemas do aparelho musculoesquelético, que não se podem deslocar, pessoas que têm baixa visão - como ainda há dias um colega me falava e a quem não foi renovada a carta de condução -, por exemplo, essas pessoas não têm alternativa que não seja pedir baixa médica. Portanto, estamos a falar de uma legislação que significa a penalização de quem realmente precisa.

O ministério diz que existem escolas com mais de 100% de professores nessas circunstâncias...

Nós admitimos que em algumas localidades possa haver uma concentração muito grande (o ministério fala de Bragança, Viseu, Braga) e que isso indicia a existência de fraudes. Estamos de acordo que se faça fiscalização e achamos que esse é que deveria ser o caminho: levar por diante processos de averiguações adequados. Se há desconfiança, que se faça isso, com juntas médicas, por exemplo. Mas aquilo que estão a fazer e da forma que estão a fazer é perverso. Porque vai penalizar quem tem necessidade desse mecanismo e, se existir o abuso, vai propiciar que se mantenha. Porque deslocar uma pessoa que está a fazer quimioterapia ou hemodiálise é o mesmo que dizer-lhe "meta baixa". São pessoas que estão doentes mas querem ser úteis à escola.

Como é que o governo deveria resolver o problema?

Para nós, a questão passava, em primeiro lugar, por fazer uma fiscalização cerrada das localidades identificadas onde suspeitam que há fraudes. Depois era avançar para algo de novo e avaliar o que está. Porque assim vão alterar sem avaliar. Sem perceber se é melhor para onde vão partir.

dnot@dn.pt