Sociedade
10 abril 2021 às 08h29

Doentes com cancro evitam ir a consultas e depois é tarde demais

Doentes com cancro estão a chegar ao hospital em fases tão tardias da doença, que "praticamente já não é possível" tratar, alerta o diretor do Serviço de Pneumologia do Hospital Amadora-Sintra, que já está a tratar doentes com sequelas da covid-19.

DN / Lusa

Foi uma das unidades hospitalares mais fustigada com doentes Covid-19 - mais de 3000 internados no último ano - e o balanço feito agora pelo diretor do serviço de Pneumologia, Fernando Rodrigues, e pela administração do Hospital Fernando da Fonseca, conhecido por Amadora-Sintra, revelam os efeitos colaterais: doentes com cancro por tratar atempadamente e atrasos nas cirurgias que estão agora a começar a ser ultrapassados através de um contrato com uma clínica privada.

"Temos constatado que existem doentes que por não poderem vir nesta fase ao hospital, a sua doença neoplásica evoluiu para um estadio que praticamente já não é possível fazermos nada", lamentou o pneumologista.

Fernando Rodrigues diz que "é hora de recuperar os doentes não covid, nomeadamente muitos doentes graves da consulta de insuficientes respiratórios", como é o caso dos que sofrem de doença pulmonar obstrutiva crónica e de outras patologias que "durante este ano praticamente desapareceram" das consultas de pneumologia.

Segundo o especialista, ainda permanece o receio dos doentes irem ao hospital para uma consulta com medo de contrair a covid-19.

Contou que nas consultas que fazem por telefone dizem muitas vezes ao doente que seria preferível deslocarem-se ao hospital a uma consulta presencial, mas muitos dizem que "é melhor esperar mais um pouco".

Relativamente aos doentes covid-19, o pneumologista disse que o Hospital Fernando da Fonseca "foi pioneiro a nível do país, e mesmo a nível internacional, no tratamento destes doentes com ventilação não invasiva, em que não é preciso introduzir um tubo nasotraqueal".

"Nós somos o hospital no país que tive a maior experiência em doentes com a infeção SARS-CoV-2 em que conseguimos evitar que fossem para os cuidados intensivos porque utilizamos a ventilação não invasiva", que é uma máscara adaptada a um aparelho que permite ventilar os doentes que têm insuficiência respiratória.

"Acho que o serviço de pneumologia e todo o hospital estão de parabéns porque fizemos um trabalho notável para seguir estes doentes de uma área populacional muito grande (mais 600 mil habitantes), carenciada, com pessoas que têm baixos recursos económicos e sociais", disse o especialista.

Para dar resposta aos doentes, houve "uma série de transformações" no hospital, foram reinventados espaços para conseguir alocar os 3.120 pacientes covid que necessitaram de internamento, 301 em cuidados intensivos, desde o início da pandemia em março de 2020.

Um ano depois da pandemia começam a aparecer doentes com sequelas, tendo o hospital criado uma consulta para doentes "pós-covid" que recebe pacientes de todas as especialidades.

"Temos visto casos menos graves, mas também casos graves em que existem sequelas que são permanentes e que vão ter repercussões futuras na vida do doente, porque ficou com fibrose pulmonar", contou.

Também já têm alguns casos de doentes que desenvolveram a "pneumonia organizativa" que requer um tratamento para o qual ainda não há 'guidelines' seguras, "mas que em princípio passam por tratamento com terapêuticas corticosteroides".

"Estes doentes têm uma panóplia de sintomas que podem ser sequelas da infeção covid-19 e, portanto, vamos afinar um protocolo para seguirmos estes doentes" e para que sejam acompanhados em consultas de especialidades, disse o diretor do Serviço de Pneumologia.

Mas não foi só por terem receio de ir às consultas presenciais que doentes do Amadora-Sintra tiveram os tratamentos adiados. As listas de espera das cirurgias também foram crescendo.

Há mais de um ano que, pelo menos, 480 doentes a precisar de internamento e de ser submetidos a cirurgia estão à espera de vez e isso levou a administração deste hospital a contratualizar agora com uma unidade de saúde privada para recuperar os atrasos.

Em setembro de 2020, o Amadora-Sintra já tinha contratualizado 625 cirurgias de ambulatório com a "Trofa Saúde", tendo sido realizadas 507 em três meses, disse Alexandra Ferreira, vogal do conselho de administração do HFF, em entrevista à agência Lusa.

"Atualmente, e depois do engrossar da lista de espera, por via de dar resposta à pandemia de covid, fizemos um novo procedimento desta vez para operar doentes que necessitam de internamento e que estão em lista de espera há mais de 12 meses", adiantou.

Segundo a vogal, são 480 cirurgias das especialidades de Cirurgia Geral, Plástica e Maxilo-Facial que o hospital pretende realizar em quatro meses, a uma média de oito por dia, num investimento que ronda os 500 mil euros.

Foram consultadas outras duas entidades, mas à semelhança do que aconteceu no primeiro protocolo, só a Trofa Saúde respondeu.

Os médicos que vão operar são do HFF e os enfermeiros e anestesiologistas são do Hospital Trofa Saúde da Amadora, sendo o pré e o pós-operatório garantido pelo Amadora-Sintra.

Segundo Alexandra Ferreira o Amadora-Sintra foi "o hospital da região de Lisboa que atingiu o maior número de doentes internados", totalizando 3.120 doentes, 301 em cuidados intensivos.

"O dia em que tivemos mais doentes internados foi em janeiro {de 2021], 385 doentes, que ocuparam 11 enfermarias", recordou, sublinhando que ainda assim conseguiram organizar-se e "reinventar todo hospital para garantir a resposta a estes doentes".

Após a terceira vaga da pandemia, em que o hospital em janeiro e fevereiro chegou a ter taxas de esforço covid-19 de mais de 60% da sua capacidade, o hospital começou a "retomar com muito, muito empenho" a atividade e está a fazer cerca de 60 cirurgias por dia.

Antes da pandemia, realizavam-se cerca de 100 cirurgias por dia porque havia mais salas. "Embora a pressão da covid tenha decrescido, ainda só há 15 dias é que conseguimos ver os cuidados intensivos a decrescer um bocadinho e, neste momento, ainda temos sete doentes em cuidados intensivos".

Além disso, é preciso garantir as 10 camas do plano de contingência durante a epidemia e é necessário ter enfermeiros para garantir esta dotação.

Durante este período, foram feitos mais de 82.000 testes à covid-19, com uma positividade de 8,6%, realizados 144 partos de grávidas covid e três recém-nascidos positivos.

No passado dia 26 de janeiro, no pico da terceira vaga, aconteceu uma situação que "não era expetável", a rede de oxigénio do hospital entrou em sobrecarga, mas, afirmou, conseguiu-se "gerir a crise" com a ajuda de outras instituições e "não pôr nunca em causa a saúde do doente".

"A verdade é que também foi o preço que pagámos por estar a tratar muitos doentes com ventilação não invasiva em enfermaria para garantir que não havia mais doentes a irem os cuidados intensivos", salientou.

Entretanto, disse, "já instalamos depósitos, já temos planos de contingência mais cimentados e conseguimos certamente dar uma resposta mais estruturada a todos os doentes que precisem de cuidados intermédios e dependem deste tipo de ventilação".