Cooptação de novo juiz marcada para 31. Feministas saem à rua contra Almeida Costa
A reunião para a eleição/cooptação do jurista que irá substituir o atual vice-presidente do Tribunal Constitucional (TC), Pedro Machete, está marcada para 31 de maio. De acordo com a informação recolhida pelo DN, até agora o único nome a ser considerado para cooptação pelos 10 juízes eleitos pela Assembleia da República é o indicado pela "ala direita" do tribunal, a que pertence Machete. Trata-se, como noticiado no sábado, de António Manuel de Almeida Costa, que este jornal revelou ter escrito, nos anos 1980 e 1990, textos em que recusa a legalidade da interrupção da gravidez em qualquer circunstância, alegando, com base em alegadas "investigações médicas"(na verdade, supostas experiências nazis) que "as mulheres violadas raramemte engravidam".
Desde que o Tribunal Constitucional existe (foi criado há 40 anos) que a cooptação de juízes está rodeada de secretismo; ao contrário do que sucede com os candidatos a juízes eleitos pelo parlamento, cujos nomes são publicados em Diário da República antes da votação, na cooptação só se conhecem os candidatos depois de eleitos, ou seja, quando são já juízes inamovíveis, com mandato de nove anos e o poder de, como escreveu este domingo Vital Moreira no seu blogue, "dizer a Constituição".
O nome de Almeida Costa é o primeiro, nestas quatro décadas, a ser conhecido publicamente como cooptável. Mas apesar de a revelação da existência dos textos em causa e o facto de o seu autor ter recusado esclarecer se mantém a mesma posição estarem a suscitar indignação e protestos - esta sexta-feira há manifestações contra a sua cooptação marcadas para Porto e Lisboa, esta última junto ao TC -, a marcação da reunião parece indiciar que há a expectativa de que o candidato reune os sete votos necessários para ser eleito.
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Tal significa que, sendo 10 os juízes cooptantes (dos 13 juízes do tribunal, só podem participar na cooptação os que foram eleitos pela Assembleia da República), metade indicados pelo PS e outra metade pelo PSD, e tendo Almeida Costa em princípio garantidos os cinco votos da "ala direita" (Afonso Patrão, Gonçalo Almeida Ribeiro, José Figueiredo Dias, José Teles Pereira e Maria Benedita Urbano), pelo menos dois da "ala esquerda" (António Ascensão Ramos, Assunção Raimundo, Joana Costa, José João Abrantes e Mariana Canotilho) terão dado sinais de que estão dispostos a votar nele.
Uma possibilidade que escandaliza o constitucionalista e ex-juiz conselheiro Vital Moreira, que, no seu blogue (Causa Nossa), se insurgiu, sob o título "reacionarismo constitucional", contra o que considera "uma nomeação radical", caracterizando Almeida Costa como alguém "que deixa entender que não abandonou posições próprias da extrema-direita religiosa", concluindo: "Não vejo como é que uma nomeação tão radical pode ser coonestada, não somente pela esquerda constitucional, mas também pela direita constitucional que defende posições de humanismo penal, nomeadamente contra o excesso da repressão penal, sobretudo quando estão em causa questões de dignidade humana, como a autodeterminação da mulher. Reabrir entre nós, tal como nos Estados Unidos, uma questão constitucional sobre a despenalização geral do aborto seria um retrocesso civilizacional."
A perplexidade de Vital Moreira é acompanhada pela Associação Portuguesa da Mulheres Juristas (APMJ), que em carta aberta ao presidente do TC exprimiu a sua "grande estupefação", com a possibilidade de cooptação de um candidato que "sustenta posições jurídicas atentatórias da dignidade da pessoa humana, valor em que se funda a República", considerando que o respetivo perfil "não se afigura como sendo adequado às exigentes funções de fiscalização da constitucionalidade das leis e das decisões judiciais próprias da competência" do TC.
No seguimento desta posição da APMJ, a plataforma feministas.pt convocou as manifestações desta sexta-feira, em Lisboa e no Porto, invocando a possível reversão do direito constitucional a abortar que se anuncia do outro lado do Atlântico por via de um Supremo Tribunal americano conformado por Trump para esse efeito, dizendo "não à escolha de António Almeida Costa para juiz do Tribunal Constitucional", com os slogans "Justiça machista não é justiça/Tirem as mãos dos nossos direitos".
Também Francisco Louçã se manifestou contra a escolha de Almeida Costa, que, escreveu no Expresso, "seria o mais trumpista dos mandatários do Palácio Ratton [sede do TC]" , lembrando que "a rejeição dos direitos das mulheres passou a ser um manifesto político" da extrema-direita, que a vê "como uma parte importante da afirmação dos seus valores reacionários".
A "identidade em torno da proibição do aborto" constitui, escreve o ex-coordenador do Bloco de Esquerda, "talvez o fator comum mais forte" naquilo a que dá o nome de "mainstreamização republicana da extrema-direita", vaga que, prediz, "chegará sempre a Portugal (...) Se os juízes do TC cooptarem António Almeida Costa e eventualmente o elegerem presidente, daremos um passo de gigante nesse sentido."
Outra voz que se ergueu contra a possibilidade da cooptação em causa foi a da ex-eurodeputada e candidata às presidenciais de 2021 Ana Gomes.
No seu comentário dominical na SICN, a ex-diplomata exprimiu a sua preocupação com a possibilidade de Almeida Costa, que conheceu enquanto estudante de Direito como alguém afeto ao regime ditatorial, entrar no TC. E advertiu: "Em última análise são os juízes indicados pelo PS que vão determinar. E eu penso que o mais velho - José João Abrantes - é quem, como mais velho, pode decidir abrir a cooptação ou não. Espero que ele não queira ser cúmplice e portanto não abra a possibilidade da cooptação; seria impensável que juízes indicados pelo PS pudessem ser coniventes num esquema de retrocesso civilizacional por esta via."
Sucede que a reunião de cooptação está marcada, e como referido por Ana Gomes, quem a pode marcar é, nos termos da lei orgânica do TC e do seu artigo 17º, "o juiz mais idoso" de entre os 10 conselheiros cooptantes - neste caso, José João Abrantes, nascido em 1955 e indicado pelo PS.
O DN tentou ouvir Abrantes sobre a possibilidade de Almeida Costa ser cooptado e a data da marcação da reunião mas este juiz conselheiro escusou-se, invocando o "dever de reserva" inerente ao seu estatuto de magistrado - dever que se aplica a processos judiciais, não a votações para eleição de magistrados.
Também do presidente do TC, João Caupers (juiz cooptado), e da agência de comunicação contratada pelo tribunal não se obteve qualquer esclarecimento sobre quem seriam os candidatos ao lugar de Machete e sobre a data da reunião para a votação. Do mesmo modo, não houve confirmação ou infirmação de que o nome de Almeida Costa está indicado.
As perguntas endereçadas pelo jornal a Caupers, através do seu endereço de email no TC, ficaram sem resposta. Da agência de comunicação chegou apenas a recusa de qualquer esclarecimento: "O processo de cooptação está em curso e quando concluído será comunicado o resultado. Não daremos informação sobre o mesmo até estar concluído."
Igual sucesso teve o pedido de acesso às atas das últimas quatro reuniões de cooptação. Nada foi adiantado quando o DN insistiu, invocando a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA) e solicitando que caso o TC tenha o entendimento de que se trata de documentos reservados ou secretos, indique a disposição legal em que se baseia.
"A escolha dos juízes cooptados é uma questão interna do TC, que não deveria vir para a praça pública", terá dito um leitor a Vital Moreira, em reação ao que o constitucionalista escreveu sobre o assunto. "Discordo de todo em todo", responde este. "Primeiro, num Estado constitucional, entendo que a nomeação dos juízes do TC, que têm o poder de 'dizer a Constituição', interessa a qualquer cidadão, e que os nomes propostos deveriam ser objeto do mesmo escrutínio curricular dos juízes eleitos pela AR. Não é por acaso que, tanto quanto me é dado saber, já mais do que uma vez nomes sugeridos vieram a ser rejeitados. Em segundo lugar, a questão da despenalização do aborto não é uma questão de lana caprina, tendo sido objeto de várias decisões do TC."