Amadora-Sintra já identificou 5 casos de mutilação genital feminina em 2022
Objetivo do grupo de vigilância do hospital é tentar evitar que as meninas que nascem de mães excisadas sejam alvo da mesma prática. Barreira linguística e questões culturais são dos maiores entraves para chegar a estas mulheres.
Uma menina de três anos foi levada pelos pais à urgência pediátrica do Hospital Amadora-Sintra pois queriam confirmar se a criança teria sido vítima de mutilação genital feminina nas férias que tinha passado com os avós na Guiné-Bissau. Esta é uma das histórias que ficou na memória da enfermeira Débora Almeida, uma das profissionais que faz parte do grupo de vigilância de mutilação genital feminina deste estabelecimento de saúde. Este domingo celebra-se o Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina, prática que em Portugal considerada crime autónomo desde 2015, punido com pena de prisão de dois a dez anos.
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O grupo do Amadora-Sintra foi criado precisamente em 2015. Atualmente é constituído por três enfermeiras especialistas em saúde materna e obstetrícia e uma médica obstetra, oriunda da Guiné-Bissau. Desde a sua criação até 2021, este grupo já identificou naquele hospital 217 mulheres vítimas de mutilação genital feminina, sendo que nenhuma das práticas terá sido efetuada em Portugal. Este ano já foram identificados mais cinco casos. "Temos mulheres da Guiné-Bissau, da Guiné-Conacri, da Nigéria, do Senegal, da Gâmbia e de Cabo Verde. A média de idades é 29 anos e a maioria das mulheres não se lembra quando é que foi feita esta mutilação. Nós supomos que foi numa altura mais de infância", enumera ao DN a enfermeira Débora Almeida.
Depois de identificadas, o que muitas vezes acontece em situações de parto, estas mulheres são referenciadas para a Direção-Geral de Saúde e os dados reencaminhados igualmente para o ACES de referência, o que no caso, será ou o Agrupamento de Centros de Saúde da Amadora ou o Agrupamento de Centros de Saúde de Sintra, para que seja feito um acompanhamento posterior. "Neste momento, também temos uma parceria com o Núcleo de Apoio Hospitalar a Crianças e Jovens em Risco e acabamos por encaminhar as crianças para lá. Acho importante dizer que aquilo que nós queremos é proteger estas meninas que nascem aqui no hospital. As mulheres quando chegam a nós são mulheres que já foram vítimas desta prática há 20, 30 anos, e aquilo que nós pretendemos é proteger as crianças para que não ocorra com elas a mesma prática", prossegue Débora Almeida.
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Um dos problemas para sensibilizar estas mulheres para que não aconteça o mesmo às suas filhas é a barreira linguística. "Algumas delas só falam crioulo, o dialeto do país de origem, e nesse aspeto nós temos a nossa médica do grupo que nos ajuda nesta tradução e temos também algumas auxiliares de ação médica oriundas destes países que nos podem ajudar. Mas elas têm também um comportamento muito defensivo perante os profissionais de saúde e as respostas delas são sempre muito vagas, não gostam muito de falar sobre o assunto", conta ao DN Khatidja Amirali, outra das enfermeiras do grupo.
Nos anos de experiência de Khatidja Amirali nesta área há uma história que lhe ficou na memória e que é um exemplo do peso cultural que esta prática ainda tem. "Foi uma utente que tinha acabado de parir a filha e que, quando confrontada com a situação da mutilação e o enquadramento legal que fazemos e que temos o dever de informar que a mutilação genital feminina é crime, disse que não considerava que isso fosse algo de errado e que fazia parte da cultura e da tradição para que a menina fosse socialmente aceite. Deu a entender que, se fosse possível, submeteria a menina à prática. Estamos a falar de uma mulher com 20 e poucos anos".
Mesmo assim, as duas enfermeiras dizem ter cada vez mais a noção de que "elas não querem fazer perpetuação desta prática, que elas querem proteger as suas famílias e quem proteger as suas filhas, percebem que isto é um crime e que é uma prática errada que não deve ser realizada", explica Débora Almeida. Por outro lado, sublinha Khatidja Amirali, "às vezes a mulher não tem poder de decisão em relação à excisão da filha. Por vezes depende da sogra, da família, dos elementos mais velhos, que podem providenciar que a criança vá de viagem para o país de origem, por exemplo nas férias escolares, e que preparem o ritual às escondidas dos pais".
Apostar na formação dos profissionais de saúde
Para quebrar este ciclo é preciso sair do hospital e tentar entrar nas comunidades e fazer uma sensibilização para este tema. "Uma coisa que já percebemos é que só vamos chegar a estas famílias através da comunidade, através das pessoas que trabalham com a comunidade. Então temos falado com alguns colegas da Associação Filhos e Amigos de Farim, que é uma associação que também trabalha este tema, e temos estado em contacto com as Mulheres Sem Fronteiras, que é outra instituição que tem uma voz ativa nesta situação da mutilação genital feminina", refere a enfermeira Khatidja Amirali.
Mas a grande aposta destas enfermeiras é a formação dos profissionais de saúde para este tema, pois leva-os a estarem mais despertos para as situações de mutilação genital feminina. E dão como bom exemplo, o facto de no Amadora-Sintra entre 2015 e 2018 terem sido detetados apenas 48 casos e os restante 170 entre 2019, ano em que estas duas enfermeiras se juntaram ao grupo e começaram a sensibilizar os colegas para o tema, e 2021. "É importante que os profissionais, quer estejam ou não na área da saúde materna, tenham de fazer formação. Quando fazemos formações costumamos dizer que é preciso treino para isto, o olho precisa de ser treinado para isto, nós precisamos de fazer uma observação a uma mulher e estar sensibilizados para procurar algo. E isto só vai acontecer quando os profissionais fizerem formação, se não houver formação também não vai haver resposta e não podemos acompanhar estas mulheres", defende Débora Almeida, acrescentando que grupos como aquele a que pertence deveriam ser multidisciplinares. "Neste momento, temos três enfermeiras e uma médica obstetra, mas sentimos a necessidade de ter, por exemplo, uma assistente social e um psicólogo para acompanhar estas mulheres".
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