Alexis Goosdeel vive no país desde 1999. O diretor da Agência da União Europeia sobre Drogas conta que provou dobrada em casa de amigos portugueses, na Bélgica, quando estava nos escuteiros. Sem muito tempo livre, não di
Alexis Goosdeel vive no país desde 1999. O diretor da Agência da União Europeia sobre Drogas conta que provou dobrada em casa de amigos portugueses, na Bélgica, quando estava nos escuteiros. Sem muito tempo livre, não diReinaldo Rodrigues / Global Imagens

Alexis Goosdeel. “Há promoções nas redes sociais para venda de droga”

Com a presença da Comissária Europeia dos Assuntos Internos, Ylva Johansson, nasce hoje a Agência da União Europeia sobre Drogas. Diretor fala ao DN sobre os desafios numa área onde os tráficos de estupefacientes, de armas e de seres humanos estão cada vez mais relacionados.
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Antecipar, alertar, responder, aprender. Estas são as quatro palavras que passam, a partir de hoje, a fazer parte do léxico da Agência da União Europeia sobre Drogas (EUDA, na sigla inglesa), o novo nome do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência agora promovido a agência, uma mudança que engloba mais tarefas e responsabilidades na recolha, análise e divulgação de dados relacionados com as drogas ilícitas que chegam, circulam e são produzidas na União Europeia.

Na cerimónia que assinalará esta alteração estarão presentes Ylva Johansson (Comissária Europeia dos Assuntos Internos), Franz Pietsch (presidente do Conselho de Administração da EUDA),  além de Alexis Goosdeel, diretor executivo da EUDA. “Neste mandato vamos ter de preparar a UE para os novos desafios associados às drogas, como as grandes questões da imigração ou tráfico de seres humanos, sobretudo crianças e adolescentes, além do tráfico de armas”, explica ao DN Alexis Goosdeel.

Ou seja, o tráfico de droga não é uma questão isolada, mas sim um problema que envolve muitas áreas de crime. “Já há um problema muito importante de tráfico de armas, que está relacionado com o aumento de violência, também, nas questões da droga”, frisa.

Violência essa que se sente nos portos: “Todos estão a perceber que têm um problema. Pode ser que hoje fique mais visível em Antuérpia e um pouco em Le Havre (França) ou Hamburgo (Alemanha). Mas, por exemplo, o Porto de Gdansk (Polónia) tem a perceção muito precisa de que, se há um aumento do controlo do tráfico em Roterdão ou em Amesterdão, essa estrutura pode ser o próximo alvo para o crime organizado. É um problema que está a generalizar-se.”

A passagem de Observatório para Agência, com o consequente aumento de responsabilidades, acaba por expressar a necessidade de o combate aos problemas relacionados com o consumo de droga mudar de paradigma. “O Observatório nasceu em 1993, depois de uma proposta em 1989 do presidente francês François Mitterrand. Na altura, havia uma epidemia de heroína e muita gente morreu. E em alguns países, como Portugal, Espanha, França e Itália, muitas pessoas tinham contraído o vírus do HIV através da injeção de droga. Mas não havia dados conjuntos na Europa. Agora, foi decidido que era bom mudar a missão da Agência, pois a realidade relacionada com a droga mudou muito nos últimos 30 anos. Por exemplo, nessa altura o desafio era definir indicadores, pois não havia dados”, recorda Alexis Goosdeel.

Produção de cocaína pressiona mercado

Entre esses desafios referidos pelo diretor executivo da EUDA está o “mercado”. “Em 1997, surgiam três ou quatro novas substâncias por ano. Agora surge uma a cada 10/15 dias. Além disso, houve um aumento tremendo da produção de cocaína e isso foi também um dos fatores que desencadeou alterações nas rotas de tráfico e com mais impacto na Europa”, sublinha. E à questão “há mais procura de cocaína?”, responde: “Não, o que há é um aumento da oferta. Há uma grande pressão por parte da oferta. É o capitalismo aplicado ao mercado, é a dinâmica do mercado, mas aplicada ao comércio ilícito. O mercado pressiona para conseguir novos clientes e não faz distinção entre faixas etárias e de género.”

Os dados do Relatório Europeu sobre Drogas 2024: Tendências e desenvolvimentos confirmam esta tese, pois no ano passado, pelo sexto ano consecutivo, foram apreendidas quantidades recorde de cocaína: 323 toneladas em 2022 - em 2021 tinham sido apreendidas 303 toneladas. Números que confirmam que a cocaína é a droga estimulante mais consumida na Europa.

Outra chamada de atenção feita pelo diretor da EUDA é direcionada para o facto de estar a aumentar o policonsumo e o consumo recreativo. “É a iniciação no consumo para muita gente. Muitos consomem uma pastilha antes de um concerto, ou fumar canábis, para os jovens, é aceitável. Dizem que é para dançar todo o fim de semana e dizem que não são junkies [dependentes]. As normas sociais estão a mudar - parece que passa a ser aceitável consumir uma pastilha para ir à discoteca. O problema é que a seguir a essa vem outra e depois, um dia, passamos a ter um problema de saúde”, salienta. “Sei que não é automático, mas pretendemos que não seja normal o uso de droga. Hoje em dia não pode ficar tudo aceitável. Temos de ter mensagens preventivas”, alerta. “Tudo isto está relacionado com a questão da pressão e organização para a venda, cada vez com maior pressão e direcionado ao consumidor”, conclui.

Há promoções nas redes sociais para a venda de droga

As tendências do mercado de tráfico estão em constante atualização, como refere Alexis Goosdeel, que dá um exemplo: “Há pessoas que vendem as suas listas de telefone. Por exemplo, se tiver 200 clientes pode, por uma ou outra razão, vendê-la e, da mesma forma que recebemos no telefone mensagens das empresas, podemos começar a receber ofertas, tipo promoções nas redes sociais para a venda de droga. Todos os dias há ofertas: receba cinco doses pelo preço de três ou quatro. E a entrega também será rápida. Também há a perceção de que é mais fácil e seguro do que ir ao Casal Ventoso. O traficante pode deixar o produto numa caixa de correio ou indicar um lugar onde fica o pacote. E é tudo às claras, no WhatsApp - já nem é muito usada a dark web.”

A finalizar ficam elogios à política portuguesa de descriminalizar o consumo e posse de droga, aprovada em 2001, que passou a ser passível de tratamento e não considerado um crime. “É uma política integrada com base nos Direitos Humanos, com foco na Saúde pública e nos direitos das pessoas. Tal como as salas de consumo assistido não são causa de violência. O desenvolvimento de grupos criminosos organizados de tráfico de armas e droga é que são”, sublinha.

Luz, mar, gastronomia. A viagem a Portugal começou nos escuteiros belgas

Muita luz, a vista para o estuário do Tejo, várias pinturas, uma foto com o Papa Francisco e, muito importante, pelo simbolismo que já explicaremos, uma réplica do foguete que surge no 16.º livro das aventuras de Tintin, Destino: Lua. De resto, o escritório de Alexis Goosdeel é igual a muitos outros, com a mesa de trabalho e a secretária utilizada pelo até agora diretor do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência que passa hoje a ser o diretor da Agência da União Europeia sobre Drogas (EUDA).

Na liderança desta instituição europeia desde 1 de janeiro 2016, Alexis Goosdeel está a cumprir o segundo mandato que terminará no último dia do próximo ano. Mas até ao fecho deste ciclo de uma vida profissional, que começou na Bélgica natal como psicólogo clínico e o levou a muitos países, a experiência diversas e ao desafio de liderar o Observatório/Agência que começou por analisar, em 1993, as tendências ligadas ao consumo e tráfico de droga e que se foi reconvertendo até agora, em que vai passar a ter um papel mais interventivo nas políticas europeias relacionadas com o tema, o principal responsável da instituição tem muito trabalho para conseguir que a EUDA “seja útil para as famílias, câmaras municipais, governos, países”.

“É importante dizer que estamos aqui a fazer algo pelos outros, não é só estatísticas - para isso, existe o Excel e os computadores. É esse o desafio, muito mais que uma missão”, frisa.

“Missão” é, talvez, uma boa palavra para compreender o empenho que coloca na sua vida profissional, o mesmo que faz com que seja convidado para estar presente em reuniões e conferências com muita frequência - na véspera do encontro com o DN tinha chegado de uma conferência em Varsóvia (Polónia).

E é neste ponto que voltamos ao foguete do livro de Tintin. Este exemplar de cores vermelha e branca, colocado em cima de uma mesa do escritório, tem uma história que o próprio conta com um sorriso: “Quanto fui nomeado [em 2015, mas só tomou posse no primeiro dia de 2016], e como sou belga e o Tintin é belga, os meus filhos ofereceram-me o foguete no Natal antes de começar a exercer o cargo. Foi como uma metáfora para a grande mudança que tinha proposto”, conta. Uma mudança que estava relacionada com a visão que apresentou durante o processo de candidatura ao cargo - durou dois anos até à escolha final. “Apresentei um programa claramente de mudança, do nome, do orçamento, do número de pessoas [do Observatório] e o símbolo que apresentei ao conselho de administração foi um foguete, utilizando de forma muito criativa a viagem à Lua, da exploração espacial. Foi uma viagem que já dura há nove anos.”

Os escuteiros e o prato de dobrada

Alexis tem 65 anos e vive em Portugal desde 1999, mas a sua ligação ao país aconteceu muito antes. “A minha primeira relação com Portugal foi há 47 anos, estava nos escuteiros e estavam lá filhos de portugueses. Um dia convidaram-me para comer lá em casa e eu aceitei sem saber o que ia provar, era dobrada. E gostei”, recorda.

Mais tarde uma nova prova gastronómica, desta vez com uma outra aventura pelo meio: “Em 1977, com 16 anos, tínhamos a obrigação de fazer um acampamento fora da Bélgica e os portugueses ofereceram-se para que o acampamento fosse em Fontoura [Freguesia de Valença do Minho]. Fizemos 48 horas de comboio - fomos até Paris e depois, aí, passámos para o Sud-Express. Tinha levado oito sandes e quando cheguei a Paris já não tinha nenhuma. Os portugueses tinham pastéis de bacalhau e foi aí que os descobri”. E como não há duas estreias gastronómicas sem uma terceira, Alexis tinha à sua espera, em Valença, uma nova prova: “Comi a minha primeira sardinha no Mercado de Valença do Minho.”

Essa primeira viagem a Portugal teve ainda uma outra aventura, mas no regresso: “Levávamos garrafas de vinho verde, mas quando chegámos à Bélgica já não era bem vinho.”

A verdade é que a ligação ficou e, mais tarde, voltou à terra dos amigos portugueses. “Trabalhei no campo, apanhei batatas. Um dia o padre mandou toda a aldeia limpar o reservatório da água que estava cheio de terra, madeira. E depois a empregada do padre matou 15 frangos.”

Foi com todas estas experiências que o agora diretor da EUDA aprendeu português, um dos sete idiomas que fala - os outros são francês, inglês, grego, neerlandês, italiano e castelhano.

O certo é que a vida profissional o afastou dessa amizade com as famílias portuguesas, até um dia em que, conta, no aeroporto viu uma pessoa que parecia um desses seus amigos. “Fui falar com ele e era. Agora os meus amigos portugueses de então vivem em Portugal e eu já os fui visitar com a minha mulher.”

Com tantas solicitações - “passo 10 a 12 horas no escritório” - há tempo para passear pelo país? “Tenho e não tenho. Quando viemos para Portugal fomos morar para o Monte Estoril, pois em Lisboa não havia casas grandes e nós erramos cinco [tem três filhos], mas com as crianças no Liceu Francês, houve uma altura em que decidimos mudar para Lisboa, onde ainda vivíamos no primeiro ano da covid-19 [2020]. Depois mudámos para a Aldeia de Juso [Cascais]. Então, caminhadas na cidade faço menos, mas continuo a correr, fiz os 10 quilómetros de Cascais, no início de fevereiro, e há poucos dias corri oito quilómetros na Serra de Sintra.”

A ligação a Portugal vai manter-se depois de deixar o cargo? “Gosto muito de Portugal. Quando o novo embaixador belga veio visitar-me disse-lhe que quando terminar aqui não vou voltar para a Bélgica, gosto de Bruxelas, mas após quase 27 anos em Portugal e a viver perto do mar vou para a Grécia, a terra da minha mulher. Preciso da luz e do mar, principalmente da luz”, salienta.

E que melhor forma de concluir uma passagem pela vida profissional e pessoal do que uma autodefinição. Aqui fica a visão de Alexis Goosdeel por Alexis Goosdeel: “Uma das particularidades da gente de Bruxelas é que temos um sentido de humor especial. Gostamos de provocar um pouco. Mas provocar com amor, provocar não é incomodar. É um toque… um toquezinho. E é com esse toquezinho que conseguimos mudar tantas coisas.”

cferro@dn.pt

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