Adolescente com cancro ganhou em tribunal direito a ser criopreservada
Pai opunha-se à criopreservação, mas a justiça deu razão à adolescente britânica de 14 anos, que escreveu ao tribunal antes de morrer
Uma adolescente britânica, que sofria de uma forma rara de cancro, lutou na justiça para que o seu corpo fosse criopreservado após a morte, perante a oposição do pai, com quem não falava desde 2008.
A história é complexa e chegou esta sexta-feira à imprensa britânica com autorização da justiça, já que o juiz deste caso proibiu que fosse divulgada publicamente antes da morte da jovem doente terminal, para que o stress não fosse maior no tempo de vida que lhe restava.
A adolescente, identificada apenas com JS, ficou doente em 2015 e, soube depois, sem qualquer hipótese de cura. Manifestou junto da família - mãe e avós maternos - a vontade de que o seu corpo fosse preservado após a morte através da técnica da criogenia: o cadáver é preservado em nitrogénio líquido a baixas temperaturas com o objetivo de ser ressuscitado quando a ciência descobrir forma de combater ou eliminar a doença que lhe tirou a vida. Nos últimos meses de vida, JS recorreu à internet para pesquisar e investigar sobre a criopreservação.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
Os avós conseguiram angariar os fundos necessários para o procedimento, que exigia que o corpo fosse transferido para um centro de criogenia nos EUA, onde existem empresas que se encarregam de conservar os cadáveres de forma perpétua - mediante um custo, 37 mil libras neste caso, cerca de 43 mil euros.
Mas o pai da jovem decidiu intervir, apesar de estar divorciado da mãe há vários anos e não falar com a filha desde 2008, conta o The Guardian. Opôs-se à criopreservação e quis tomar parte na decisão sobre o funeral da filha - queria que a menor fosse enterrada. O caso tornou-se assim matéria para os tribunais analisarem, ainda que a própria adolescente não quisesse retomar contactos com o pai em 2015, quando ele descobriu que a filha estava doente e quis reaproximar-se.
JS escreveu então uma carta ao tribunal: "Têm-me pedido para explicar porque quero que me façam esta coisa inabitual. Tenho só 14 anos e não quero morrer, mas sei que vai acontecer. Julgo que ser criopreservada me dá uma oportunidade para ser curada e acordar, mesmo daqui a centenas de anos. Não quero ser enterrada debaixo de terra. Quero viver, e viver mais tempo, e julgo que no futuro poderão encontrar cura para o meu cancro e acordar-me. Quero ter essa oportunidade. É este o meu desejo".
Depois de analisar o caso, o juiz - que visitou a jovem no hospital, pois JS estava demasiado doente para depor em tribunal - acabou por decidir em favor da adolescente, admitindo que ficou comovido com a bravura que a própria manifestou ao enfrentar a morte.
Peter Jackson assinalou ainda que esta foi, provavelmente, a primeira vez que um pedido deste género teve de ser analisado por um tribunal no Reino Unido e em todo o mundo. "É um exemplo das novas questões que a ciência coloca ao direito, sobretudo talvez ao direito de família", escreveu no veredicto, referindo que nunca nenhum familiar tinha sido colocado na posição do pai da adolescente. "A disputa sobre um pai ser capaz de ver o filho após a morte seria importante o suficiente, mais ainda levantando-se a questão da preservação por criogenia".
Realizar a criopreservação do corpo da jovem exigiu ainda a colaboração do hospital onde morreu, já que o corpo tem de ser preparado pouco depois do óbito, idealmente em minutos. Depois, teve de ser transportado por uma funerária com a devida licença e preparação, neste caso para o outro lado do Atlântico.
O juiz admitiu que a técnica da criopreservação é controversa e há implicações éticas importantes, ainda que a preservação de células e tecidos a baixas temperaturas seja procedimento habitual em alguns ramos da medicina, nomeadamente na preservação dos espermatozoides e embriões usados nos tratamentos de fertilidade. Desde a primeira criopreservação, feita na década de 1960 do século passado, o procedimento foi realizado apenas algumas centenas de vezes.
Enquanto o caso de JS correu no tribunal, o pai da jovem acabou por mudar de opinião, tendo feito saber que iria respeitar o desejo da filha por ser a única e a última coisa que ela lhe pedira. Uma vez que os menores não podem fazer testamento, o tribunal foi obrigado a decidir em função daquilo que considerou ser o "melhor interesse da criança" e, de acordo com o juiz, a adolescente morreu de forma pacífica, com a certeza de que o corpo iria ser criopreservado.