Acusações de assédio e violação no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
A publicação, pela prestigiada editora académica Routledge, de um livro sobre condutas sexuais inapropriadas na academia está a causar ondas de choque no meio académico português.
Intitulado Sexual Misconduct in Academia - Informing an Ethics of Care in the University (Má conduta sexual na Academia - Para uma Ética de Cuidado na Universidade), o livro, disponibilizado online a 31 de março, tem 12 capítulos, o último dos quais, The walls spoke when no one else would/As paredes falaram quando ninguém se atrevia/ Notas autoetnográficas sobre uso do poder sexual como controlo de acesso na academia avant-garde, descreve acontecimentos ocorridos numa instituição que, não sendo nomeada - as organizadoras do volume assumem na introdução a opção pelo anonimato das instituições e pessoas referidas - é facilmente identificada, até por ser a única em comum no percurso das três autoras, como sendo o Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
Também não é difícil perceber quem são os dois homens referidos nesse capítulo como protagonizando condutas sexuais inapropriadas, crismados na narrativa como "The Star Professor" (o professor estrela) e "The Apprentice" (o aprendiz). Quase seis anos depois da explosão internacional do movimento metoo, este é um dos primeiros relatos de condutas sexuais inapropriadas numa instituição portuguesa a permitir identificar os acusados.
Confrontados pelo DN, os próprios assumiram reconhecer-se como retratados sob essas denominações, refutando no entanto todas as acusações que lhes são feitas. Pode ler essas respostas na investigação que será publicada na edição de quarta-feira do jornal.
Já o CES, após os contactos efetuados pelo DN com membros da instituição para os ouvir sobre o conteúdo do capítulo em causa, emitiu no sábado um primeiro comunicado interno sobre o assunto no qual reconhecia ser a instituição retratada, comunicado esse que colocou esta terça-feira em público na sua página digital.
Certificando que "sendo contrárias a todos os princípios que nos regem e ao nosso código de conduta, tais alegadas situações não foram nunca objeto de denúncia formal junto das instâncias competentes", os responsáveis pela instituição, o diretor António Sousa Ribeiro e a presidente do Conselho Científico, Ana Cordeiro Santos, admitiam no entanto que "embora tradicionalmente apresentadas como ambientes neutros e seguros, as instituições académicas e de investigação não são alheias ao sistema social e cultural que produz e reproduz relações de poder desiguais."
Prosseguiam reconhecendo que "as diversas formas de desigualdade, violência e abuso (moral e sexual)" são problemas transversais às organizações e que "o Centro de Estudos Sociais (CES) não se coloca fora desta discussão importante nem se demite da responsabilidade que tem na promoção efetiva de um ambiente de trabalho científico mais igualitário e livre de todas as formas de assédio."
Considerando que, "apesar de não se tratar de fenómenos novos, só muito recentemente estes problemas passaram a assumir relevo nas agendas de política e ação institucionais em Portugal", lamentam que as "respostas institucionais" criadas pelo CES "para enfrentar estes problemas", como o Código de Conduta, que tem uma secção sobre assédio moral e sexual, a Provedoria e um canal de denúncias, "só tenham sido implantadas em tempos relativamente recentes".
A inexistência de instrumentos específicos para lidar com a questão do assédio - os mencionados existem apenas desde 2020 - é uma das acusações que o capítulo em causa se faz ao CES.
Este, cujos órgãos diretivos asseguram estar "conscientes de que não basta a existência destes documentos e instrumentos e, por isso, mantêm em curso diferentes processos de reflexão interna com vista a aprofundá-los e a torná-los efetivos, nomeadamente, através da melhoria da comunicação interna e do reforço das práticas tendentes ao cabal esclarecimento de todas/os os membros da comunidade CES quanto aos seus direitos e deveres", não anunciava porém na primeira versão do comunicado qualquer ação concreta - abertura de inquérito ou outra - em relação às acusações que constam do artigo referido.
Esta terça-feira, no entanto, surgiu um novo parágrafo no texto, o qual se anuncia que, "estando o CES comprometido com o tratamento diligente deste tipo de ocorrências, decidiu averiguar a fundamentação das alegações produzidas no capítulo supra-mencionado. Nesta medida, o CES irá constituir num curto prazo uma comissão independente à qual caberá a identificação de eventuais falhas institucionais e a averiguação da ocorrência das eventuais condutas anti-éticas referidas naquele capítulo. A comissão será composta por dois elementos externos, um dos quais lhe presidirá, e pela Provedora do CES. Os membros externos a convidar terão competências reconhecidas no tratamento de processo análogos.
Não sendo temporalmente definidas, as acusações efetuadas no artigo em causa foram identificadas pelo DN como dizendo respeito a situações ocorridas entre 2011 e 2018/2019.
As autoras do artigo, a belga Lieselotte Viaene, a portuguesa Catarina Laranjeiro e a norte-americana Myie Nadya Tom, que estiveram no CES como, respetivamente, investigadora de pós-doutoramento (com uma bolsa Marie Curie) e estudantes de doutoramento, e que estão agora noutras instituições universitárias - Viaene é professora na Universidade Carlos III, em Madrid, Laranjeiro está como investigadora no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova e Tom é professora na Universidade de Nebraska, em Omaha, EUA - foram contactadas pelo DN mas declinaram, até ao momento, qualquer comentário.