O Boeing 737 Max da Alaska Airlines tinha oito semanas de serviço quando perdeu uma porta. (EPA / NTSB)
O Boeing 737 Max da Alaska Airlines tinha oito semanas de serviço quando perdeu uma porta. (EPA / NTSB)

A verdade sobre a segurança dos aviões

Ano após ano, incidente após incidente, a aviação comercial tornou-se significativamente segura, independentemente da complexidade da operação com inúmeras partes móveis à escala global: humanos, software, clima e objetos metálicos que percorrem os céus.
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Foi apenas quando tentei puxar conversa com a pessoa que estava sentada ao meu lado, visivelmente desconfortável, num voo de Raleigh-Durham com destino a Nova Iorque, que percebi que era eu a causa da sua expressão de terror, e não a ligeira turbulência que se fazia sentir desde a descolagem. Pensei que uma conversa amigável pudesse ajudá-lo a superar a ansiedade de voar. Mas então reparei que tinha os olhos - arregalados de medo - fixos no ecrã do meu computador, que mostrava um relatório de investigação sobre um acidente de aviação que estivera a ler.

Fechei o portátil abruptamente, balbuciei um pedido de desculpas e murmurei sobre o quão detalhados são estes relatórios de acidentes, o que os torna, na verdade, reconfortantes. Por momentos, esquecera-me de onde estava, não sendo minha intenção causar inquietação…

Enfim, não tem importância.

No entanto, é verdade. Um relatório de investigação do Conselho Nacional de Segurança nos Transportes dos Estados Unidos (NTSB, na sigla em inglês) assemelha-se a um manual de instruções sobre como fazer milagres e alcançar níveis de segurança surpreendentemente elevados. Estes relatórios renovam a fé no que a humanidade pode alcançar se aplicarmos a nossa capacidade intelectual e os nossos recursos.

Todavia, também nos lembram que, tal como a liberdade, estes níveis excecionais de segurança das companhias aéreas comerciais requerem a vigilância constante dos suspeitos do costume: ganância, negligência, incapacidade de adaptação, complacência, “portas giratórias” nos organismos reguladores, etc.
Em breve terei mais dois relatórios para ler (um do Conselho de Segurança dos Transportes do Japão) relativos a dois incidentes ocorridos em apenas uma semana, mas que já se revelam uma fonte de aprendizagem.

A 2 de janeiro, um avião da Guarda Costeira do Japão e um Airbus A350 da Japan Airlines colidiram. O Airbus transformou-se numa bola de fogo à medida que avançava sobre a pista, acabando por parar cerca de 800 metros depois. Surpreendentemente, todas as 379 pessoas a bordo do Airbus saíram em segurança antes de o avião ser engolido pelas chamas e reduzido a cinzas - cinco das seis pessoas a bordo do avião da Guarda Costeira morreram.

Além disso, recentemente uma das portas de emergência não utilizadas num avião Boeing 737 Max 9, da Alaska Airlines, soltou-se minutos após a descolagem, causando a rápida despressurização da aeronave. Os passageiros relataram às agências de notícias que uma criança sentada perto do buraco ficou com a camisola rasgada pela força do vento, enquanto a mãe a agarrava. O avião voltou para trás e aterrou em segurança em Portland, Oregon, não tendo sido registados feridos graves.

Ambos os incidentes poderiam ter tido consequências muito mais graves. É um milagre que todos os passageiros de ambos os voos comerciais tenham sobrevivido, apesar de não ser um milagre do tipo que a maioria das pessoas imagina. São milagres que resultam da regulamentação, da formação, da especialização, da melhoria constante das infraestruturas, bem como do profissionalismo e do heroísmo da tripulação.

No entanto, estes homens e mulheres corajosos e profissionais apoiavam-se em gigantes: burocratas competentes, investigadores forenses destacados para as investigações de acidentes, grandes pastas (atualmente digitais) com centenas e centenas de páginas repletas de pormenores recolhidos minuciosamente de acidentes e quase-acidentes, formação e atualização regulares, não só de pilotos mas também das tripulações de cabina, de terra, de controlo de tráfego e de manutenção, e um espírito resoluto de que, se algo correu mal, será identificada e corrigida a causa.

Atente-se à evacuação da Japan Airlines.

As aeronaves comerciais transportam grandes quantidades de combustível inflamável, pelo que as evacuações rápidas são fundamentais para evitar que os passageiros fiquem encurralados pelas chamas se algo correr mal. Pouco é deixado ao acaso.

Parte disto está à nossa vista, como passageiros, e chega mesmo a ser ligeiramente incómodo. Na realidade, trata-se efetivamente de uma lei federal que exige que todos os tabuleiros sejam recolhidos e os assentos colocados na posição vertical durante a descolagem e a aterragem. Ainda que os acidentes sejam extremamente raros, estatisticamente as descolagens e as aterragens representam os momentos mais perigosos do voo, sendo fundamental que nada impeça os passageiros de se deslocarem rapidamente. É por isso que os objetos de grandes dimensões também devem ser arrumados - para desimpedir o potencial caminho de evacuação.

À semelhança do que mostram as imagens dos passageiros no Japão que foram evacuados e não pegaram nas suas bagagens, seria bom que mais companhias aéreas seguissem o exemplo da Japan Airlines e utilizassem os seus vídeos de segurança para explicar a lógica subjacente às regras, tal como o faz a própria companhia para explicar por que motivo a bagagem deve ser deixada para trás numa emergência.

Mesmo assim, a evacuação demorou mais do que os 90 segundos que a Airbus teve de demonstrar como possíveis para obter a certificação. Nesse dia os obstáculos eram vários. Apenas três das oito saídas de emergência estavam operacionais e o avião enchia-se de fumo. O avião havia-se inclinado para a frente devido ao colapso do trem de aterragem do nariz, o que dificultava os movimentos dos passageiros. Os intercomunicadores estavam inoperacionais, limitando-se a tripulação a utilizar megafones para orientar os passageiros. Não obstante, a tripulação conseguiu evacuar todos os passageiros.

Além disso, os passageiros contavam com outros aliados: atualmente, os aviões estão concebidos para retardar a propagação de incêndios, sendo que muitas dessas melhorias - incluindo assentos capazes de resistir a impactos e sistemas e materiais ignífugos - resultam de dolorosas lições aprendidas com os acidentes das décadas de 80 e 90. De facto, o avião resistiu aos piores efeitos das chamas durante muito mais de 90 segundos, até que todos saíssem.

A linha Boeing 737 Max oferece outras aprendizagens. Após dois acidentes sucessivos e assustadoramente semelhantes em 2018 e 2019, que causaram a morte de 346 pessoas no total, os aviões foram imobilizados. Primeiramente, houve quem se apressasse a culpar os pilotos inexperientes ou o mau funcionamento do software. Não tardou, porém, que o mundo se apercebesse de que o verdadeiro problema havia sido a ganância das empresas, que enveredaram por demasiados atalhos, ao passo que os reguladores não conseguiram resistir à pressão.

À primeira vista, poucos motivos levam a supor que a falha da porta de saída no voo da Alaska Airlines esteja relacionada com os acidentes anteriores. O avião é muito recente, com cerca de oito semanas de serviço, e o incidente ocorreu a uma altitude relativamente baixa, sugerindo um problema de fabrico e montagem ou de supervisão, e, nesse caso, a cultura da empresa poderá ser novamente objeto de escrutínio. Contudo, para conhecermos os factos concretos teremos de aguardar pelo relatório do Conselho de Segurança.

O que aconteceu após a queda da porta é, no entanto, exemplar: o piloto declarou uma emergência, o controlo de tráfego aéreo rapidamente providenciou uma pista livre, o avião voltou para trás e aterrou em apenas 15 minutos.

Desde então, soube-se que isto pode não ter sido uma surpresa total. O NTSB informou os jornalistas de que a luz de aviso da pressurização desta aeronave havia acendido três vezes anteriormente, pelo menos uma vez em voo, durante o seu curto período de serviço. As equipas de manutenção haviam inspecionado e eliminado a luz, mas a Alaska Airlines, felizmente, restringiu o avião a sobrevoar por terra para que pudesse regressar rapidamente a um aeroporto se a luz se acendesse novamente. Ainda bem. Se a porta se tivesse soltado a uma grande altitude e sobre o oceano, o desfecho poderia não ter sido tão feliz.

Mas nem tudo foram rosas no percurso de regresso ao aeroporto. A porta da cabina de pilotagem soltou-se devido à despressurização, colidindo com a porta de uma casa de banho, e uma piloto perdeu os auscultadores. Apesar disso, a comunicação entre os pilotos e o solo não o denuncia: é percetível apenas um profissionalismo marcado pela competência e serenidade no regresso à porta de embarque.
O regresso imediato do avião ao aeroporto, ainda que menos dramático, tem semelhanças com o “milagre no Hudson!, ocorrido há 15 anos, quando o agora afamado capitão Sully aterrou um avião no rio Hudson depois de ter perdido os motores devido a uma colisão com pássaros, salvando todos os que se encontravam a bordo. Os pilotos treinam para isso, e o resultado é visível.

Ao ouvir a comunicação calma e equilibrada entre o capitão Chesley Sullenberger e a torre de controlo durante o período de quatro minutos que decorreu desde a perda de toda a potência do motor até à amaragem no Hudson, é possível que não nos apercebamos da magnitude do que estava prestes a acontecer: Sullenberger estava prestes a tentar aterrar um objeto cilíndrico com cerca de 68 toneladas numa via navegável estreita junto a uma das maiores cidades do mundo.

No entanto, é para este tipo de emergências que os pilotos são preparados.

“De certo modo, há 42 anos que faço pequenos depósitos recorrentes neste banco de experiência: educação e formação”, declarou a Katie Couric momentos após o incidente. “E, a 15 de janeiro, o saldo era suficiente para efetuar um levantamento considerável.”

Ainda que o piloto possa estar em xeque, as investigações do NTSB são realizadas com base num processo “não culposo”, tendo como objetivo identificar o problema a fim de reduzir a probabilidade de se repetir. Esta atitude incita à franqueza dos intervenientes, em contraste com as culturas orientadas para a responsabilização, que incitam à ocultação dos erros e à procura de bodes expiatórios em vez de soluções por parte das autoridades.

À medida que os factos forem apurados, surgirão mais questões sobre o que correu mal, tanto a United Airlines como a Alaska Airlines encontraram parafusos soltos nas aeronaves comerciais Boeing imobilizadas. O avião da Guarda Costeira do Japão estava no sítio errado. O progresso advém do reconhecimento destas falhas e do esforço envidado para que não se voltem a repetir.

Os relatórios de investigação do NTSB, cuja leitura me fascina, representam precisamente essa soma de experiências. Ano após ano, investigação após investigação, incidente após incidente, a aviação comercial tornou-se significativamente segura, independentemente da complexidade da operação com inúmeras partes móveis à escala global: humanos, software, clima e objetos metálicos que percorrem os céus.

Na grande maioria das vezes, funciona tão bem que nem nos apercebemos da sua existência, sendo esse, talvez, o verdadeiro milagre das infraestruturas eficientes: tornam-se invisíveis. Por vezes é bom tornar visíveis os muitos invisíveis que nos mantêm seguros. 

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