A classe finalista de 2024, no palco do Coliseu do Porto
A classe finalista de 2024, no palco do Coliseu do PortoDR/Top Talks

A Oratória na Era Digital: 14 jovens sobem ao palco para defender a arte de bem falar

Torneio Nacional de Oratória reúne os mais eloquentes alunos de uma geração conhecida pelo uso dos ecrãs. Na final, cada um terá 3 minutos para mostrar que é o melhor orador das escolas portuguesas.
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Considerado o maior orador da Grécia Antiga, onde a arte da oratória era uma competência essencial para conquistar influência na vida pública ateniense, Demóstenes teve de ultrapassar obstáculos naturais como a sua gaguez e uma voz fraca. Para isso, rezam as lendas, terá treinado discursos com pedras na boca e a correr contra o vento, para melhorar a dicção e a articulação das palavras, e fortalecer a voz.

Vinte e cinco séculos depois, aos desafios naturais de cada um junta-se um gigante desafio coletivo: uma geração digital mergulhada em ecrãs e entregue a estímulos visuais com cada vez menos palavras envolvidas. Estará a arte de falar em público ameaçada por uma cultura de memes, GIFS e emojis? No Coliseu do Porto, este domingo, 14 adolescentes de todo o país vão tentar demonstrar que não, verbalizando os seus melhores argumentos perante um júri que irá escolher o “melhor orador” das escolas portuguesas.

O Torneio Nacional de Oratória vai na sua terceira edição e é uma iniciativa promovida pela Top Talks – Associação Portuguesa de Oratória desde 2023, junto das escolas portuguesas. A associação descreve como sua “finalidade e objetivo o desenvolvimento de ações de promoção da oratória escolar e civil num sentido mais amplo, assim como o desenvolvimento e acompanhamento de estudos científicos na área da comunicação e oratória, que contribuam para fortalecimento das competências de oratória no seio da sociedade”. O torneio escolar é o evento de maior visibilidade.

Segundo Jorge Freitas, presidente da associação, o mote “é promover a oratória escolar” numa época em que esta arte tende a ser “esquecida ou maltratada”. “Os currículos escolares, por exemplo, não contemplam a oratória, apesar de exigirem aos alunos competências de oralidade em várias disciplinas”, aponta. Uma lacuna curricular que, diz, esta iniciativa pretende “ajudar a preencher”.

Especialista em comunicação com vários livros publicados e um passado já ligado a desafios deste género, tendo estado envolvido durante 13 anos no Speak Out Challenge - um dos principais concursos de oratória, promovido pela Jack Petchey Foundation, no Reino Unido -, Jorge Freitas sublinha o paradoxo que vivemos, numa era onde “a oralidade é limitada por uma sociedade cada vez mais digital”, mas, ao mesmo tempo, continua a ser uma das competências mais valorizadas “tanto a nível profissional”, nos requisitos de candidaturas de emprego, “como interpessoal”, enquanto ferramenta de socialização.

Também por isso, “é mais vital do que nunca cuidar desta arte”, acrescenta, lembrando como, no contacto com as escolas participantes, os professores dão conta de se depararem com “cada vez maiores dificuldades dos alunos na expressão oral”.

Com a adesão das escolas a aumentar de ano para ano, esta edição contou com o alto patrocínio da Presidência da República e o envolvimento de “mais de 600 alunos”, entre os 14 e os 16 anos. Desses, apuraram-se 14 para a grande final deste domingo, provenientes de escolas de 11 municípios diferentes – há três alunos de Lisboa, dois de Braga e um de cada um destes concelhos: Maia, Felgueiras, Amarante, Trofa, Arganil, Tomar, Manteigas, Santiago do Cacém e Vila Nova de Gaia.

Para chegarem à final, estes jovens Demóstenes passaram por duas fases de seleção anteriores, primeiro na própria escola e depois numa semifinal regional. Neste domingo, perante a plateia de até 300 espetadores na Sala Novo Ático, no Coliseu, cada um deles terá de controlar o nervosismo e dar o melhor de si, durante três minutos, para conquistar o júri.

Jorge Freitas, presidente da associação Top Talks, com duas das professoras envolvidas na edição de 2024
Jorge Freitas, presidente da associação Top Talks, com duas das professoras envolvidas na edição de 2024DR/Top Talks

Entre os critérios de avaliação, explica Jorge Freitas, “há uma grelha fixa com três áreas: a forma, o conteúdo e a estrutura”. Em relação à forma, são avaliados fatores como “gestos, postura ou contacto ocular”. No conteúdo, “a pertinência da informação”. Já em relação à estrutura, atenta-se “à organização do discurso”.

A temática, essa, é livre e, do que já foi dado a saber pelos finalistas, os temas escolhidos para as respetivas apresentações serão tão diversos quanto “o tempo”, a “multiculturalidade”, “a democracia” ou “as incertezas na vida de um jovem”, entre outros.

Tomás não quer ir “demasiado preparado”: “É importante uma dose de espontaneidade”

Da Escola Secundária da Maia chega um dos candidatos, Tomás Rodrigues, orientado pela professora Constança Sarmento. “A oratória é algo que está em nós desde que nascemos. Sempre gostei bastante de debater, de falar com os adultos e os mais velhos, de expor o meu pensamento e a minha postura, por isso interessou-me muito esta iniciativa”, explica ao DN, por telefone, sobre a sua participação nesta edição do Torneio Nacional de Oratória.

De Péricles a Martin Luther King, de Lincoln a Marco António, de Jesus de Nazaré a Charlie Chaplin (que embora tenha brilhado no cinema mudo nos deixou um dos mais memoráveis discursos de Hollywood, no final de O Grande Ditador, numa sátira a Hitler e ao nazismo), são muitos e bem diversos os exemplos de alguns dos mais destacados oradores e dos mais impactantes discursos da História. Mas podemos identificar características comuns num bom orador?

Para o Tomás, “desde logo é importante uma boa postura gestual e corporal, porque durante aquele período de tempo os holofotes do local vão estar em nós”. E depois, claro, “a forma como compomos o discurso”. “Para um discurso se tornar memorável, tem de haver também uma componente de repetição, bem como diferenciar palavras e mostrar como elas são importantes para o orador. É mais fácil transmitir uma ideia se o fizermos com sentimento”, destaca.

Alunos das escolas da Maia, de onde se destacou Tomás Rodrigues, um dos finalistas deste ano
Alunos das escolas da Maia, de onde se destacou Tomás Rodrigues, um dos finalistas deste anoDR/CM Maia

Quanto à preparação do discurso e ao controlo o nervosismo à medida que se aproxima o grande momento, cada orador tem também as suas próprias técnicas. Para o Tomás, por exemplo, é importante “não ir demasiado preparado”. “Sinto que se estiver muito preocupado em seguir um plano, bloqueio mais facilmente”, explica. Por isso, leva “tópicos bem estruturados sobre o tema” que vai abordar, mas deixa a porta aberta a “uma dose de espontaneidade” que permita estabelecer uma “maior conexão com a audiência”. Tal como admira no seu comunicador de eleição, o comediante Ricardo Araújo Pereira. “Vejo todos os domingos à noite o programa dele, é um excelente orador”.

O exemplo de Tomás deixa feliz a professora Constança, que descreve a oratória como “uma arte essencial para o desenvolvimento pessoal e interpessoal e hoje muitas vezes relegada para segundo plano com a evolução tecnológica”. Ainda assim, considera que as escolas se esforçam por trabalhar esta competência. “Quase todas as disciplinas têm a obrigatoriedade de uma apresentação oral”, lembra, embora “muitas vezes os alunos não se apercebam da importância da oralidade e de saber apresentar as suas ideias”.

Não é esse o caso do Tomás, seguramente, que no domingo vai tentar ser o primeiro rapaz a vencer este torneio nacional de oratória, depois de as duas edições anteriores terem sido ganhas por raparigas, com um discurso sobre “o tempo, e o que fazemos com ele”.

A Leonor vai “falar desde o coração”. E divertir-se

Entre a concorrência deste ano também é notória a maior presença feminina, com 9 em 14 finalistas. Uma delas é Leonor Semedo, da Escola Secundária Padre António Vieira, em Lisboa, que vai levar muita da sua experiência pessoal com uma família de acolhimento para apresentar um discurso sobre o desenvolvimento infantil e “a importância das relações familiares na formação das crianças e jovens”.

Sónia Ferreira, a professora que a acompanha, destaca que, se por um lado é uma dificuldade acrescida, nos dias que correm, valorizar a oratória entre os alunos destas idades, por outro também é “um desafio muito interessante fazer-lhes perceber a importância da oralidade, onde eles se podem diferenciar de forma mais natural e que, felizmente, ainda não é algo que possa ser substituído por qualquer Inteligência Artificial”.

A Leonor, que gosta de “falar em público” e da arte do “storytelling”, concorda. Para ela, o segredo para um bom discurso “é falar desde o coração”. “Um bom comunicador tem de falar com sentimento e com emoção”. E isso não está, pelo menos para já, ao alcance de nenhuma ferramenta de IA. Além disso, acrescenta, é fundamental “dominar o assunto de que se vai falar”. E, por fim, “divertir-nos” -  afinal de contas, tudo se torna mais fácil quando é divertido.

Antes da final, tem treinado com a mãe como público e em espaços mais amplos, para “projetar a voz e treinar os movimentos em palco”, aproveitando para aprimorar alguns pormenores de postura, como “evitar estalar os dedos ou mexer muito nas mãos”.

No domingo, não se espera propriamente que nenhum dos jovens oradores que vão subir ao palco chegue ao ponto de induzir uma revolta popular, como aconteceu com o poderoso discurso de Marco António no funeral de Júlio César, encenado por Shakespeare, mas durante três minutos cada um deles tentará induzir no júri (composto por quatro elementos) a convicção de que está perante o mais eloquente orador da classe de 2025 das escolas portuguesas.

Mais do que isso, sublinha o presidente da Top Talks, do Coliseu sairão 14 adolescentes “mais preparados” para o futuro. E é também por isso que, revela Jorge Freitas, a associação tenciona apresentar este ano ao Ministério da Educação (o que sair das próximas eleições antecipadas) “uma proposta para incluir a oratória nos currículos escolares”.

Francisca Nogueira, a vencedora do torneio de 2024
Francisca Nogueira, a vencedora do torneio de 2024DR/Top Talks

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