"A Índia foi o grande posto de embaixador da minha vida, um posto de descoberta"

Brunch com o diplomata e poeta Luís Filipe Castro Mendes, antigo ministro da Cultura.

Luís Filipe Castro Mendes escolheu o Grémio Literário para esta conversa à hora do lanche. Dias antes, também ali no elegante clube situado no Chiado, apresentou o seu mais recente livro, Um Estranho Animal de Duas Cabeças, editado pela Labirinto. O lançamento da obra, que inclui crónicas que publica às terças-feiras no DN, serve de pretexto para esta conversa sobre a vida de um diplomata que é poeta (daí as tais duas cabeças), e que há meia dúzia de anos chegou mesmo a ser ministro da Cultura, uma tardia experiência na política da parte de alguém que sempre se sentiu "de esquerda", foi do MES, até aplaudiu quando os ex-membros do movimento aderiram ao PS, mas só se tornou militante socialista quando deixou de representar Portugal no estrangeiro.

"Enquanto diplomata pode-se estar inscrito num partido, mas é vedado ter ação política. Portanto, porque é que me ia inscrever num partido se não podia ter ação partidária? Foi por isso que não entrei no PS em 1978 quando entraram o Jorge Sampaio, o João Cravinho e outros ex-MES", conta, relembrando que na época estava em Angola, o primeiro posto, uma escolha, porque acha "que se deve começar por um local difícil". O filho (tem quatro) que seguiu também a carreira diplomática, imitou-lhe o raciocínio e foi para o Irão, sei eu de outras conversas com Luís Filipe. Ainda me recordo de lhe falar um pouco da minha visita a Teerão em 2017 e sobretudo de como me agradeceu a recomendação, via artigo de jornal, para ir ao restaurante Khayyam, que Sépideh Radfar, professora iraniana na Universidade de Lisboa, abriu em plena pandemia no Príncipe Real. Se um poeta persa dá nome a um restaurante lisboeta, também é verdade que Fernando Pessoa tem agora tradução para farsi e o ex-ministro até assistiu ao lançamento em Teerão quando, com Margarida, a mulher, foram visitar no ano passado o filho e testemunharam uma sociedade evoluída, muito mais evoluída do que o regime dos ayatollas.

Por falar de pai e filho, sei que o lisboeta cidadão do mundo sentado no cadeirão num recanto do bar do Grémio, junto à pintura que recria os fundadores, entre eles Alexandre Herculano e Almeida Garrett, não nasceu aqui na capital, e por culpa do progenitor. "Nasci em Idanha-a-Nova porque o meu pai era lá delegado do procurador da república, foi o primeiro posto que teve na sua carreira de magistrado. Nasci em 1950. Depois, acompanhei os meus pais na vida itinerante que o meu pai teve, mais tarde já juiz. Habituei-me a fazer uma vida em que em cada quatro ou cinco anos tínhamos de mudar de terra, de casa, de escola. Esse hábito da mudança permanente ficou-me e, provavelmente, ajudou-me na vida diplomática", diz, divertido, Luís Filipe.

Além de Idanha-a-Nova, viveu em Angra do Heroísmo, em Lisboa, depois em São Jorge, num regresso aos Açores, também Redondo, no Alentejo, Chaves e Leiria, até que, para a faculdade, veio para a capital. "A minha terra é Lisboa, não tenho outra, mas considero-me ligado às terras onde vivi e tenho muito afeto por todas", sublinha, enquanto se serve de um chá que chega à mesa acompanhado por scones e mini-sandes de fiambre.

Foi a estudar Direito que viu chegar a Revolução em 1974. "Estava na faculdade quando se deu o 25 de Abril. Fomos para a rua, embora a guarda dissesse para toda a gente ficar em casa, mas pertencia àquele grupo dos estudantes associativos, rebeldes, que faziam manifestações contra a ditadura. Estávamos eufóricos e andávamos nas ruas com grande felicidade, tal como depois o 1.º de Maio também foi um dia extraordinário. Só entrei na carreira diplomática em finais de 1975", conta.

No chamado PREC, foi colaborador próximo de um dos principais capitães de Abril, também ministro dos Negócios Estrangeiros em alguns dos governos provisórios e isso deu-lhe oportunidade de assistir ao triunfo dos moderados da Revolução: "Trabalhei com o Ernesto Melo Antunes que já conhecia antes do 25 de Abril, quando ele foi para o Conselho da Revolução e convidou-me para ir com ele. Não tinha acesso aos segredos obviamente, mas tive muitas experiências e conheci muitas coisas com o trabalho que fiz. Aliás, sinto uma grande admiração por ele e sinto que os militares salvaram a democracia. É evidente que não se põe em causa o papel do PS e das forças democráticas na contenção de certos desvios extremistas, mas o papel do Grupo dos Nove foi muito importante. Primeiro, na contenção das movimentações da extrema-esquerda militar e do PCP, e em segundo lugar, na contenção também daqueles que queriam aproveitar a situação para instaurar de novo um regime de extrema-direita ou, pelo menos, muito de direita. Isso foi conseguido graças ao Melo Antunes, ao Ramalho Eanes, ao Vasco Lourenço e a todos aqueles militares que fizeram a contenção dos extremismos dos dois lados". Luís Filipe já se sentia próximo dos socialistas, mas, diz, "na altura em que o PS foi fundado, em 1973, era talvez um pouco esquerdista para aderir. Foi um percurso parecido com os do Jorge Sampaio e do Melo Antunes, que eram os meus pais políticos, por assim dizer".

Interessou-se por Angola, o tal primeiro posto, por causa da construção do país pós-independência. "Interessou-me ir ver no que é que aquilo dava e o que vi foi horrível. Vi o golpe de Nito Alves, vi a perseguição tremenda que se seguiu, era uma situação em que não havia apenas a guerra com a UNITA, mas também as perseguições derivadas do golpe. Cheguei lá em 1977 e fiquei até 1979, e depois fui para Madrid, onde assisti ao golpe do coronel Tejero em 1981. Portanto, cada posto, cada golpe [risos]. O golpe do Tejero aconteceu todo num dia, mas foi coisa muito séria. A legalização do Partido Comunista tinha indisposto muito os setores da extrema-direita militar e aparece aquele golpe de Estado". Comentamos como Juan Carlos na época foi visto como um herói, mas hoje há dúvidas sobre o que de facto aconteceu e qual o papel do rei, o sucessor de Franco que ajudou a acabar com o franquismo. Acabamos os dois a elogiar Anatomia de um Instante, de Javier Cercas, que mostra um 23-F pouco claro. Quem Luís Filipe faz questão de destacar é Adolfo Suarez, primeiro-ministro da transição espanhola, "um dos políticos mais injustamente tratados na história".

Para o diplomata português, que assistiu à vitória do PSOE de Felipe González em 1982, aquela época em Espanha "foi um tempo feliz, as pessoas viam a libertação como nós víamos cá o 25 de Abril. Mas profissionalmente poderia ter sido melhor". E explica: "tínhamos uma política relativamente à União Europeia em que a nossa negociação não deveria nunca confundir-se com a negociação espanhola". Portanto, pouca ou nenhuma cooperação luso-espanhola apesar do objetivo partilhado de integrar a então CEE.

Depois de Madrid, o regresso a Lisboa, para a assessoria diplomática do presidente da república. "Trabalhei com o general Ramalho Eanes em Belém, onde tive como companheira de trabalho a minha querida amiga Ana Gomes e o meu amigo, já falecido, António Franco. Postos no estrangeiro a seguir foram Paris e Estrasburgo. Depois vim novamente para Lisboa e trabalhei no ministério com o secretário de estado da Cooperação, durante o governo de António Guterres. Nessa altura, fiz várias viagens a África com José Lamego", relembra o diplomata que nunca deixou de ir escrevendo desde que em 1983 publicou Recados. Em 1999 saiu Poesia Reunida (1985-1999) e Os Amantes Obscuros, publicado pela Quetzal. Poemas Reunidos, editado em 2018 pela Assírio & Alvim, valeu-lhe o Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes APE/Câmara Municipal de Amarante 2018/2019, com o júri a destacar "a revisitação e renovação das formas clássicas, elegia e soneto e, em especial, a relação com a tradição camoniana", como noticiou então o DN. Luís Filipe confirma Camões entre os seus autores, tal como Fernando Pessoa, Jorge de Sena e Eça de Queiroz. Nos estrangeiros destaca Dante, Rilke, Emily Brontë, Tolstoi, Thomas Mann e Clarice Lispector. Ganhou mais alguns prémios literários e tem livros traduzidos em francês e alemão.

Boas memórias são as que tem dos tempos em que foi cônsul-geral no Rio de Janeiro, até pelo contacto com a comunidade portuguesa, aquela que já depois da independência do Brasil ergueu o Real Gabinete Português de Leitura, uma das mais belas bibliotecas do mundo. "Tínhamos muitos jantares e almoços, e abrimos o Palácio de São Clemente às reuniões da comunidade. Penso que criámos uma boa relação. Mas, além disso, eu e a minha mulher fizemos um trabalho de chamar os intelectuais brasileiros e tive sorte porque fui apresentado a José Aparecido de Oliveira por Mário Soares. Através de José Aparecido de Oliveira conheci pessoas extraordinárias e tínhamos convívio permanente com muita gente da cultura brasileira. Claro que havia problemas objetivos de serviço e os recursos informáticos ainda não estavam tão desenvolvidos como agora, portanto, o trabalho burocrático consular ressentia-se um bocado". Interrompemos a conversa por uns instantes pois António Pinto Marques, o cirurgião que preside ao Grémio Literário, vem-nos cumprimentar. Curiosamente conhecemo-nos desde um colóquio seguido de jantar em que Luís Filipe falou de diplomatas que foram escritores, tal como Eça.

O primeiro posto de Luís Filipe como embaixador foi em Budapeste, chegando em 2004, o ano em que o país entrou na União Europeia. Falamos um pouco sobre a má governação dos ex-comunistas húngaros, que abriu portas ao regresso de Viktor Orban, figura-chave no processo de democratização do final dos anos 80 mas hoje um dos líderes mais polémicos da Europa. Confessa manter interesse pelos países por onde foi passando, mas a Índia ocupa um lugar especial, pois "foi o grande posto de embaixador da minha vida, um posto de descoberta. É um mundo de culturas e religiões, altamente preparado cientificamente e tecnologicamente. A Índia foi muito importante porque tirou-me o eurocentrismo que todos nós educados numa mentalidade eurocêntrica temos".

Durante a passagem de Luís Filipe pela Índia, governava o Congresso, o partido da independência, e o primeiro-ministro era Manmohan Singh, um sikh. Entretanto, os nacionalistas hindus voltaram ao poder, graças a um Narendra Modi muito popular pelo sucesso económico que teve no Gujarate, mas o nosso antigo embaixador em Nova Deli acredita na força da democracia: "A Índia é uma democracia, embora socialmente tenha coisas horríveis a nível da pirâmide social, das castas. Os jornais são livres, o governo é criticado, o parlamento funciona, a oposição é ativa, é um país democrático. Neste momento, governa um partido identificado com a religião maioritária, a hindu, e, portanto, que tende a excluir as outras. Mas a Índia é um mosaico e só pode existir com a sua complexidade".

Nas minhas viagens à Índia, anteriores à ida do diplomata, senti que o principal legado da presença portuguesa era a abundância de nomes como Fernandes, Dias ou Souza, mas Luís Filipe desvaloriza um pouco: "Os nomes cristãos não são propriamente uma coisa portuguesa, foi algo que veio da Igreja porque quando se convertiam ao catolicismo escolhiam um nome. Como a maior parte dos padres do Oriente eram portugueses, escolhiam nomes portugueses. No século XVII, há um grupo grande de pessoas da casta mais importante que se convertem ao catolicismo. Ao fazerem isso, o catolicismo é assimilado pela classe dominante e daí vêm os nomes portugueses, os líderes daquelas comunidades. Esses católicos eram muito fiéis ao império, mas vou-lhe contar uma história: uma aristocrata, dessa classe dominante, era uma salazarista militante e um dia vem a Lisboa visitar Salazar. Ele diz-lhe que ela fala muito bem português e ela responde que é portuguesa. Ele pergunta-lhe se tinha sido o pai ou o avô que tinham ido para Goa, mas ela fica gelada e responde-lhe que a família é católica e portuguesa desde o século XVII. Na cabeça do Salazar, para aqueles lados eram todos selvagens debaixo de coqueiros e toda a civilização que tinha ido para lá era da Europa".

Sobre Goa, portuguesa entre 1510 e 1961, diz Luís Filipe que "a cultura portuguesa não está morta, há ensino do português nas escolas goesas, é o único lugar onde uma certa aristocracia fala português. A aristocracia que optou por ser portuguesa, fosse coação ou pelo que fosse, fala português. Depois da libertação de Goa, alguns indianos ficaram com a ideia de que as famílias que se converteram ao catolicismo iam voltar ao hinduísmo, mas se há um avô que deixou de ser hindu por coação ou por outra razão qualquer, isso nada tem que ver com as escolhas das gerações seguintes". Em 2020, o centenário jornal goês O Heraldo, que passou nos anos 80 a ser publicado em inglês, voltou a ter uma página dominical em português, mas a experiência durou pouco.

Lendas da Índia, publicado em 2011 pela D. Quixote e com edição francesa também, foi o livro de poemas que resultou dessa experiência. "Quando mudava para um posto tratava de ler tudo o que havia sobre a história e cultura desse país, incluindo também os poetas. Naturalmente, fui-me interessando por todas as culturas e quis perceber como é que aquelas pessoas pensavam. Julgo também que um diplomata serve para isto, para explicar ao seu governo como é que as pessoas pensam, o que é que consideram importante", explica o embaixador-poeta. A quem pergunto sobre o que pensa daqueles que, indignados com a invasão da Ucrânia pela Rússia, até vão ao extremo de defender o corte de relações de Lisboa com Moscovo. "Quando se fecham embaixadas é sinal de guerra declarada. Em Portugal não estamos com nenhuma guerra declarada com a Rússia, há uma guerra na Ucrânia porque foi invadida pela Rússia. E se o embaixador é retirado quando há uma guerra, há sempre canais de comunicação. Não tenho dúvidas de que os americanos estão em contacto com a Rússia. O papel do diplomata é pôr-se na pele do outro, percebê-lo e depois defender os interesses do seu país", afirma.

Embora, como diz, "falte pouco para me jubilar completamente", Luís Filipe está tudo menos parado: "Neste momento estou com os projetos da Casa da Moeda, com a coleção comunidades portuguesas, livros de autores portugueses ou autores que escreveram sobre as comunidades portuguesas. Depois, temos o prémio literário Ferreira de Castro que é dado a autores das comunidades portuguesas. E ainda há um projeto de integração de vários núcleos museológicos e coleções no sentido de poderem ser expostas e partilhadas. Além disso, faço o meu trabalho pessoal de escrita, colaboro em várias iniciativas como a Ronda Poética de Leiria, e às vezes convidam-me para outras coisas. Há um conjunto de atividades a que agora me posso dedicar mais, com mais tempo, com mais perseverança", mas que, sublinho eu, não deverá passar pela política. Aliás, relembra que quando em 2016 foi convidado para ministro (era embaixador junto do Conselho da Europa, em Estrasburgo, depois de ter sido na UNESCO, em Paris), tentou num primeiro momento recusar: "Foi uma surpresa, o António Costa telefonou-me quando estava eu de passagem em Paris. Até lhe dei a sugestão do fulano tal, mas ele dizia-me que não queria recomendações, queria um sim ou não. Depois pensei e aceitei, também fiquei a pensar que se não aceitasse ia sempre estar a pensar no que teria sido. Fiz o que pude e o que sabia e foi um ciclo da minha vida, do qual não me arrependo nada".

Despedimo-nos e nem me atrevo a perguntar qual o tema da próxima crónica no DN. Sei que, respeitando o tal animal de duas cabeças, tanto pode ser sobre poesia, como sobre a guerra na Ucrânia, sobre a francofilia, como sobre leituras de verão ou até a memória de uma certa época em Angola. A última foi de despedida a um amigo, José Manuel Galvão Teles. E começava com estas duas citações: "Livros são papéis pintados com tinta" (Fernando Pessoa) e "Quem não me deu amor, não me deu nada" (Ruy Cinatti).

leonidio.ferreira@dn.pt

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