Professores de Matemática: escolas já não conseguem cumprir programas

O governo acabou por redimensionar, sob a forma de experiência-piloto, a intenção de aplicar "aprendizagens essenciais" das diferentes disciplinas a partir dos anos de início de ciclo. Mas as escolas já estão a selecionar conteúdos

Depois de um aceso debate, que chegou a envolver o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o primeiro-ministro, António Costa, o Ministério da Educação decidiu adiar a aplicação a partir do próximo ano letivo, nos 1.º, 5.º 7.º e 10.º anos de escolaridade, das "aprendizagens essenciais", uma versão mais compacta dos programas, que tinha como principal objetivo ganhar tempo em sala de aula para os professores consolidarem aprendizagens e desenvolverem outras competências nos alunos. A fórmula será agora aplicada sob a forma de experiência-piloto, e apenas em escolas que adiram voluntariamente. Mas a realidade, defende a Associação de Professores de Matemática (APM), é que já há algum tempo que as escolas se veem obrigadas a selecionar os conteúdos ensinados. Nomeadamente nesta disciplina.

Lurdes Figueiral, da APM, diz ao DN que os programas de Matemática do ensino básico, em vigor desde 2014 e de Matemática A, aplicados desde 2015, têm em comum o facto de serem "demasiado extensos", com a agravante, no caso dos primeiros, de serem "inadequados para a idade dos alunos". E isto tem obrigado as escolas a fazerem uma "gestão" do que é de facto transmitido aos alunos.

"No caso do ensino secundário, porque existem exames nacionais, que podem ter um peso muito grande no futuro dos alunos, essa gestão é mais difícil", admite. "Mas sabemos, por exemplo, que em relação ao programa de Matemática A, as escolas deram sempre tempo extra à Matemática, mas ficaram ainda assim capítulos inteiros nas escolas por dar, por exemplo a Estatística." O risco, avisa, é avolumarem-se os conteúdos que ficam por lecionar. "Os alunos acabam o 10.º ano e, ao chegarem ao 11.º ano, só se vão agravar os atrasos que vê do ano anterior."

Para a APM, a única solução é "mudar os programas", algo que o Ministério da Educação já veio assegurar não ter intenções de fazer. Mas para Lurdes Figueiral não há dúvidas de que só assim serão alcançados os objetivos traçados pela equipa de Tiago Brandão Rodrigues. "Se queremos uma revisão compatível com o "Perfil do aluno [à saída da escolaridade obrigatória", elaborado por um grupo de trabalho liderado por Guilherme d"Oliveira Martins] e as aprendizagens essenciais - que entendemos como fundamentais -, os programas em vigor são incompatíveis quer com uma coisa quer com a outra", avisa.

Mais otimista, Edviges Antunes Ferreira, da Associação de Professores de Português (APP), acredita mesmo que "as aprendizagens essenciais vão avançar, ainda que não seja já no próximo ano letivo", e que esta medida permitirá "resolver muitos dos problemas que atualmente existem com a aplicação dos programas". Para a dirigente desta associação de professores, de resto, muitas das reações críticas que têm surgido prendem-se com o desconhecimento em relação ao que está a ser preparado: "As aprendizagens essenciais estão neste momento a ser finalizadas, ainda não podemos falar muito sobre isso, mas é um trabalho que estamos a definir de forma muito objetiva", garante esta professora, que integra o grupo de trabalho criado pelo Ministério da Educação para tratar deste tema.

Tema gera discórdia

O certo é que, pelo menos para já, a falta de consensos em relação às reformas que o governo pretende aplicar nas escolas tem sido uma evidência. Exemplo disso é o "Perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória", documento elaborado por um grupo de trabalho liderado por Guilherme d"Oliveira Martins, que tem sido apontado como a base ideológica das medidas da tutela. Apesar de não ser vinculativo, e de ter poucas propostas concretas, defendendo sobretudo uma valorização das "competências" - não só ao nível do domínio do conhecimento mas também, por exemplo, da cidadania - por oposição à mera transmissão de conteúdos, a proposta tem gerado muita discussão.

Recentemente, um conjunto de 12 associações de professores, representativas das diferentes disciplinas, tomou posição apoiando o documento. Mas o perfil do aluno também já foi duramente criticado, por exemplo, pela Sociedade Portuguesa da Matemática, composta principalmente por académicos da área, cujas posições são geralmente divergentes da APM.

O Conselho Nacional de Educação (CNE), órgão consultivo da Assembleia da República onde estão representados praticamente todos os atores da comunidade educativa, também tem sentido dificuldades para tomar posição nesta matéria. Recentemente, chegou a ser enviada aos jornalistas a versão preliminar de um parecer, em que era apontada a necessidade de o perfil valorizar mais a aquisição de competências específicas, nomeadamente ao nível da Matemática, mas os conselheiros acabaram por reenviar o documento à origem, para "aprofundamentos", com o presidente do CNE, David Justino, a fazer um desmentido público de que tivesse sido assumida qualquer posição.

Paulo Guinote, professor de História, historiador da educação e conhecido blogger, tem sido uma das vozes mais interventivas na crítica à ideia de "flexibilização" das aprendizagens que tem vindo a ser veiculada pelo Ministério da Educação. "Sou assumidamente contra tudo isso. Sou contra a ideia da aprendizagem por temas", assume. "Para que é que vamos realizar as provas de aferição por conteúdos se depois vamos organizar a educação por temas? Depois as coisas não encaixam", ilustra.

No caso da História, diz, a evolução dos programas até é "muito particular", porque a tendência é para se irem acrescentando conteúdos: "A última revisão dos programas acrescentou 20 anos ao 9.º ano", ilustra. Mas, mesmo assim, hesita em considerar que se possa dizer se determinado programa é ou não extenso, defendendo que o problema passa sobretudo pelos tempos letivos atribuídos a cada disciplina e pela forma como estes são organizados nas escolas: "Se tenho dois tempos de 45 juntos num bloco de 90 minutos, uma vez por semana, quando os alunos chegam à aula da semana seguinte já esqueceram muita coisa."

Para Guinote, a flexibilização é possível, mas a ênfase deveria ser posta na eliminação das "redundâncias" que por vezes ocorrem no que é transmitido. "Há conteúdos repetidos, entre o 2.º e o 3.º ciclo, não só na História mas também, por exemplo, no Português", ilustra. Fala-se muito em unir o 1.º e o 2.º ciclo e para mim isso não faz sentido, porque o 1.º ciclo já tem tempo letivo suficiente para dar os conteúdos. Mas poderia pensar-se nos 2.º e 3.º ciclos como um bloco de cinco anos, fazendo uma gestão diferente do que é dado em cada ano", propõe, assumindo que essa intenção teria dificuldades práticas, nomeadamente o facto de os professores de várias áreas disciplinares não terem habilitações, em termos de grupo de recrutamento, para dar aulas a alunos dos dois ciclos.

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