Mais poluição, custos e dependência. Ou como a seca de 2017 é um alerta energético
Seca reduziu produção das barragens e aumentou poluição energética em 26%. Ambientalistas dizem que problema veio para ficar
"O que aconteceu em 2017 no setor energético em Portugal por causa da seca significa um alerta muito sério", diz Sara Campos, porta-voz da Quercus, antecipando as conclusões do Relatório do Estado do Ambiente de 2018 (REA). O documento, a que o DN teve acesso, é divulgado esta terça-feira pelo governo, no âmbito das comemorações do Dia Mundial do Ambiente.
A falta de água provocou uma quebra acentuada da produção de eletricidade nas barragens, diminuindo o valor das renováveis no consumo final bruto de energia - e afastando o país das metas da Fontes de Energia Renovável (FER). Este diretório europeu pretende que o país consiga 31% de energia limpa até 2020. Mas o relatório é esclarecedor: "A seca de 2017 levou a uma forte quebra da produção hídrica."
Se em 2016 Portugal tinha superado todas as expectativas e produzido 16 909 GWh (giga watts por hora) de eletricidade nas barragens, no ano passado o número desceu para 7492. É menos de metade da produção. "E isso obrigou a encontrar alternativas de produção de eletricidade. O problema é que as alternativas têm consequências", diz Sara Campos.
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Menos água, mais poluição
Em dezembro do ano passado, a Zero - Associação Sistema Terrestre Sustentável fez um estudo que apontava um efeito inesperado da seca. Só em 2017, a produção de eletricidade aumentou em 26% nas emissões de dióxido de carbono para a atmosfera. "À falta de água para eletricidade, Portugal respondeu com combustão de carvão nas centrais de Sines e Pego, em Abrantes", explica Carla Graça, especialista em política de água e energia da associação. "E isso aumentou e muito o nível de poluição do ar."
À falta de água para eletricidade, Portugal respondeu com combustão de carvão
O REA deste ano não disponibilizou os indicadores de poluição por partículas inaláveis, que permitiriam analisar a verdadeira dimensão do problema. A Agência Portuguesa do Ambiente não conseguiu angariar os dados a tempo, justifica o relatório. Mas há outros números a mostrar uma tendência. Em 2017, diminuíram em 4% os dias em que a qualidade do ar era boa e aumentaram em 1% os dias em que era má.
Mais poluição, menos saúde
É o próprio relatório do governo a apontar os perigos deste aumento de dióxido de carbono na atmosfera. "Há importantes correlações entre a exposição aos poluentes atmosféricos e a morbilidade e a mortalidade associadas a doenças", lê-se no REA de 2018.
Para os humanos a exposição provoca problemas do foro respiratório, nomeadamente asma, bronquite, enfisema pulmonar e cancro do pulmão, e também do foro cardiovascular, sobretudo enfartes do miocárdio e AVC. Mas também há impactos sobre o ambiente. "São igualmente gravosos", lê-se no documento. "A poluição atmosférica influencia diretamente o aquecimento global, está na origem das chuvas ácidas, por sua vez responsáveis pela contaminação da água e dos solos, e é um importante fator de degradação dos ecossistemas." O Estado sabe bem os efeitos que a seca pode provocar. No setor energético. No ambiente. E no corpo humano.

Poluição do ar tem consequências ambientais e na saúde
© Fernando Fontes / Global Imagens
Menos renováveis, mais custos
Mesmo que não se vá pelo caminho da poluição, há um argumento económico para explicar os efeitos da seca sobre a produção de eletricidade. "Portugal não tem nas suas reservas carvão nem gás natural", diz João Joanas de Melo, diretor do Centro de Investigação em Ambiente da Universidade Nova e ativista da GOTA - Grupo de Estudos do Ordenamento do Território e Ambiente. "Tudo o que produzimos é comprado de fora."
Se o cenário do ano passado se repetir nos próximos, acreditam os ambientalistas, Portugal passa a estar dependente de outros países para produzir a sua própria energia. "Apesar da peculiaridade destes dias chuvosos de junho", diz Sara Campos, "todos os estudos indicam que vamos ter períodos de seca mais frequentes e prolongados. Um cenário de seis meses sem chuva vai tornar-se normal em Portugal."
Comprar matéria-prima fora de portas para produzir eletricidade não é, por isso, uma real alternativa. "Além dos efeitos terríveis sobre o ecossistema, esta solução vai a prazo aumentar as nossas faturas da luz. Se gastamos mais para produzir, não podemos ter dúvidas de que vamos gastar mais para consumir", diz a porta-voz da Quercus.
Joanaz de Melo acredita que nunca será possível ter eletricidade barata. "Existe apenas energia cara e energia mais cara. Os custos de exploração são sempre dispendiosos. Agora, estes períodos de seca deviam fazer-nos pensar naquilo que é o verdadeiro problema: a eficiência energética. Por exemplo, 20% da água que circula na rede é completamente desperdiçada."

A energia eólica é um das fontes de energia alternativas usada em Portugal
© Reinaldo Rodrigues/Global Imagens
O homem da GEOTA diz que esse é o verdadeiro problema e que o aumento dos períodos de seca pode revelar-se uma oportunidade. "Portugal sempre se orgulhou de ter uma boa diversidade na produção de eletricidade." Gás, carvão, barragens e eólicas compensam-se umas às outras, para que nunca haja falhas de rede. "Este é o tempo para repensarmos esta fórmula. Porque ela, pura e simplesmente, está a deixar de funcionar."
Menos barragens, mais água
A GEOTA estima que existam 256 barragens de grandes dimensões e oito mil mais pequenas em Portugal. "A ideia de destruir algumas delas não é de todo descabida", diz Joanaz de Melo. "As barragens, aliás, deviam deixar de ser consideradas fontes de energia renovável. Os seus efeitos são tão trágicos que nunca as deveríamos considerar uma fonte de energia limpa."
Por um lado há a compartimentação da paisagem - o que afeta ecossistemas, populações humanas e tradições culturais. Por outro há um efeito de desperdício. "Ao concentrar a água em grandes albufeiras criam-se processos acelerados de evaporação que não acontecem quando os rios correm livres."
Sara Campos, da Quercus, concorda com esta visão. "A seca, como já vimos, está aí e é uma realidade. Precisamos de assegurar o básico e o básico é o abastecimento a humanos e a animais, primeiro, e a produções agrícolas e industriais, depois. Se a conservamos, mantemo-la estanque e permitimos o seu desperdício, estamos a agravar um problema que já é muito sério."
A seca, como já vimos, está aí e é uma realidade. Precisamos de assegurar o básico
Os efeitos de desperdício criados pelas barragens já são, aliás, bem visíveis. "No Alqueva é maior a quantidade de água que se evapora todos os anos do que aquela que corre no caudal do Guadiana. É precisamente por a água se estar a tornar um bem cada vez mais raro que não podemos continuar a pensar em barragens para criar energia."
Mais sol, mais água
Se as barragens não são solução, se o carvão e o gás natural criam poluição, aumentam os custos e a dependência do exterior, como vai Portugal resolver a sua necessidade de produção? "É extraordinário como um país que se orgulha de ser líder nas renováveis ainda não percebeu onde tem de apostar", diz Sara Campos. "Podemos ter cada vez menos água, mas temos energia solar muito abundante e estamos a desperdiçá-la."
Os números, diz Joanaz de Melo, estão trocados. "Mais de 20% da energia produzida em Portugal provém de barragens, menos de 1% vem de centrais fotovoltaicas e dos painéis solares. São investimentos caros, é um facto, mas estão cada vez mais acessíveis e precisamos de pensar neles para o futuro."
Apostar no sol, acredita o investigador, permitiria que se abatessem algumas barragens com pouca produção, impedir a construção de outras e deixar os leitos encharcarem os solos para evitar a seca. Sara Campos alinha pela mesma batuta: "Temos de pensar no sol, na produção de biomassa, nas eólicas e nas marés. Temos todos os recursos disponíveis. A água é para correr livre."