Juízes têm de prestar contas aos cidadãos pelo estado da Justiça
Estará o sentimento de frustração e deceção com o sistema de Justiça a ser substituído pelo de resignação? A crise da Justiça existe porquê? Os cidadãos são desconfiados e céticos com os nossos tribunais porquê? Quando é que esta desconfiança e crise da Justiça começou? E, finalmente, de quem é a responsabilidade: os magistrados têm de prestar contas do seu trabalho e decisões?
Um rol de questões para serem pensadas, respondidas, analisadas com a contribuição de advogados, ex-ministros da Justiça, ex-Procuradores-gerais da República, ex-secretários de Estado, juízes e magistrados do Ministério Público. A obra "40 Anos de Políticas de Justiça em Portugal" - coordenado por Maria de Lurdes Rodrigues, Pedro Magalhães, Nuno Garoupa, Conceição Gomes e Rui Guerra Fonseca - é hoje lançada em Lisboa. Ao longo das mais de mil páginas, os autores tentam compilar informação que permita fazer uma análise (completa e com testemunhos de quem protagonizou ou protagoniza o dia a dia da Justiça e as suas políticas) do que foram estes 40 anos de democracia no que aos tribunais diz respeito. Politicamente, o consenso e estabilidade mantiveram-se nos primeiros anos pós revolução 25 de abril e até 1987, focados na construção do chamado "edifício da Justiça" (ver texto secundário ao lado). Mas foi já no século XXI (a partir de 2003) que os discursos começaram a ser dominados pelo conceito "crise" da Justiça. Estávamos no rescaldo do processo Casa Pia (um dos mais demorados da história da Justiça) e que apenas viria a agravar a avaliação negativa feita pelos portugueses do funcionamento dos tribunais.
"De facto, chegado ao fim do processo de construção de uma justiça democrática, prevalecia no espaço público, tal como agora, uma perceção negativa da Justiça", lê-se na introdução da obra. "Um sistema fechado sobre si próprio, iníquo, inacessível, ineficiente e pouco eficaz, prevalecia a ideia de que com a democracia nada mudara na Justiça".
Conceição Gomes, uma das coordenadoras do trabalho, contra argumenta : "houve um claro aprofundamento dos direitos e do acesso aos tribunais. E um caminho na tutela efetiva na área do direito administrativo e fiscal que são efetivas ruturas com o passado. O que é de salutar porque foi para isso que se fez a revolução". A socióloga do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra - que fala ao DN a título pessoal - admite porém que houve alguma "continuidade com o passado no que toca ao funcionamento da máquina. Tem sido feito um esforço no campo das tecnologias mas ainda não foram alcançados os objetivos", explica ao DN. Concluindo que existe uma distância não desejável entre a sociedade e os tribunais. E aqui entra um dos focos do trabalho: o poder judicial caracteriza-se por um isolamento, "fechamento corporativo". O trabalho não poupa críticas aos juízes: "o poder judicial é também poder político e aos seus agentes não foi conferida qualquer bênção que os coloque moralmente acima dos demais cidadãos". Os autores consideram urgente "instituir mecanismos eficazes de prestação de contas e de responsabilização social dos agentes de todos os poderes, incluindo o judicial".
Consensos caíram por terra
Foi também crescendo a certeza de que consensos partidários nesta área não singravam: em 2006 celebrou-se o "Pacto para a Justiça"- entre PS e PSD - assinado pelos líderes parlamentares Alberto Martins e Marques Mendes: mas tal acordo não sobreviveu às táticas políticas e "ao imediatismo" que tem vindo a marcar as atuações dos dois partidos do eixo governativo no que toca às políticas de Justiça. O estudo critica ainda a falta de "orientação política coerente" entre PS e PSD que tomam posições distintas em áreas específicas da Justiça conforme estão na oposição ou no poder. As políticas públicas da justiça têm funcionado de forma predominante "reativa", explica um dos autores do estudo, Pedro Magalhães. Em declarações ao DN, o docente do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa admite que "perante problemas graves (financeiros, de sobrecarga, morosidade, ineficiência), "procuram-se soluções imediatas que possam mitigar esses problemas. Mas estas soluções raramente fazem parte de planos integrados, coerentes e a aplicar a longo prazo sobre como melhorar a qualidade da justiça em Portugal", referindo-se a decisões políticas. O responsável pelo capítulo "Justiça na Opinião Pública" - explica ainda ao DN que o que os dados mostram é que "a perceção negativa e a desconfiança se alargam a dimensões mais profundas que a morosidade ou ineficiência do funcionamento da justiça, incluindo a sua independência em relação aos poderes político e económico e a forma como trata pessoas com diferentes recursos e estatutos sociais". Perceção que é "completamente generalizada à grande maioria da população, independentemente de ter ou não contacto direto com o sistema". Fernando Pinto Monteiro, um dos testemunhos publicados no livro, ele próprio magistrado, admite que "tem de ser ultrapassada a visão da Justiça como sede de um poder superior e distante, quase sagrado. Têm de ser criados conceitos e linguagem acessíveis ao cidadão médio, que hoje pede que lhe traduzam as decisões judiciais", diz o ex - Procurador-Geral da República.
Em jeito de conclusão, o trabalho admite que estamos atualmente perante um ciclo vicioso: "sendo certo que não é possível fazer mudanças sem os profissionais da Justiça, é certo também que não tem sido possível fazê-las com eles". Considera ainda necessária a abertura do "fechamento" do atual "triângulo de ferro constituído apenas pelo MP , tribunais e meios de comunicação social" para melhor compreensão da Justiça.