Jean-Martin Rabot: "Os brasileiros devolveram-nos o Carnaval"
Como se foram mantendo as tradições pagãs do Carnaval que atualmente se celebra?
Nas sociedades primitivas e também na romana existiam rituais que celebravam o renascimento, em particular da natureza. O ritual é uma maneira de introduzir uma ciclicidade na linearidade do tempo e de lutar contra a entropia do tempo que foge e contra a angústia que esta suscita. Os romanos tinham as festas saturninas, em honra do deus Saturno, em dezembro; as festas do solstício de inverno, as do sol invictus, o dia do renascimento do sol invicto, fixado pelos romanos em 25 de dezembro, festas essas que mais tarde foram cristianizadas, dando origem ao Natal (Natalis, nascimento) dos cristãos; as festas lupercais, em fevereiro, etc. Assim, os cristãos recuperaram as festas pagãs, como é o caso do Natal, do Carnaval, da Páscoa. Ou seja, o presente é sempre uma assimilação e uma reinterpretação do passado, num processo sincrético, onde se misturam constantemente tradições provenientes de culturas diferentes. É isso que explica a permanência das festas nos tempos atuais.
Portugal começou a importar as tradições do samba, embora se diga que o próprio Carnaval do Brasil tem também raízes portuguesas...
Sim, diz-se que o Carnaval brasileiro resulta de uma importação de Portugal, onde existiam carnavais, como os de Ovar e da Madeira. E os brasileiros devolveram-nos o Carnaval, sob a forma das tradições do samba. Não há sociedade fixa no tempo, pois toda a sociedade se transforma em virtude das migrações e dos diversos contributos culturais que se devem às migrações, em termos linguísticos, sociais, mentais, de culinária, de festa.
Como é que se justifica a adesão deste tipo de Carnaval num clima e numa sociedade como a portuguesa?
O Carnaval é uma figura festiva universal que não pertence a ninguém e que por conseguinte é de todos. A maior parte dos brasileiros festeja o Natal com calor. O inverso verifica-se em Portugal, festeja-se o Carnaval com frio. As festas sempre se adaptaram aos climas e o tempo nunca foi um impeditivo para a festa.
Os festejos do Carnaval foram encurtados. São as contingências da sociedade moderna?
As sociedades atuais não dispensam tanto tempo para os grandes momentos festivos, até porque o rei clandestino da época, seguindo a expressão de Georg Simmel, é a economia, com os seus imperativos categóricos da produtividade e da competitividade. Basta recordar que o calendário romano tinha 55 dias úteis, o resto do tempo era consagrado à celebração dos deuses, e que, na Idade Média, mais da metade do dias do ano eram dias feriados. É preciso acrescentar que o significado da própria festa do Carnaval se perdeu. As festas romanas tinham como função escorraçar o velho para dar começo ao novo, encenar o caos para restabelecer uma nova ordem, unir o povo à volta do seu mito fundador. Mesmo que o sentido originário da festa se tenha perdido, há um fundo antropológico que não podemos eliminar. Encontramos ainda hoje elementos das festas antigas: mascarar-se, vestir-se com peles de animais, como nos carnavais trasmontanos. A encenação do caos e a inversão da ordem social vigente, o escravo que se torna rei, coisa que se verificava nas festas sáceas da antiga Babilónia, nas festas saturninas romanas, nos carnavais da Idade Média, onde a figura da Virgem era substituída pela da Eva, nos carnavais brasileiros (em virtude das grandes desigualdades sociais e raciais). O papel de contra sociedade e de contrapoder assumido nos carnavais antigos perdeu-se.