"Houve uma captura do Estado por outros interesses quando Sócrates foi primeiro-ministro"
Vê no que se tem passado no Sporting algo de político?
É um sintoma, algo que ultrapassa o Sporting. Tem a ver com a sociedade e que é expressão daquilo a que tenho chamado de populismo inorgânico ou alarvar. Aquilo que vi foi um grupo em marcha paramilitar para agredir pessoas, com armas e instrumentos que inclusivamente podem matar. Não me lembro de ter visto aquilo em nenhum outro país, e aqui também não. É um sintoma. A democracia é incompatível com atos daqueles e com grupos paramilitares, eventualmente infiltrados por forças políticas de extrema-direita. Temos aqui uma fase de caudilhismo que pode prefigurar um tipo de caudilhismo clubismo. Aquilo é um sinal perigoso, o populismo é sempre perigoso e que tem de ser visto por todo o poder político. Há uma grande autonomia da organização desportiva e do associativismo desportivo e falta na Europa, e aqui também, uma autoridade política que possa tomar decisões. O presidente [do Sporting] já devia estar demitido.
Diz isso como adepto do Benfica?
Não, não. Se fosse com o Benfica diria a mesma coisa. Aliás, o meu clube do coração é a Académica, embora goste do Benfica. Isso não tem a ver com clubismo mas sim com democracia. E com a incompatibilidade entre a democracia e a existência de grupos que praticam atos de banditismo e que têm uma maneira de atuar que supõe haver ali organização paramilitar.
Agora estritamente política. Em 2004 foi candidato à liderança do PS contra José Sócrates. Na altura fez parte do seu discurso, ou não, uma denúncia de que aquilo [a candidatura de Sócrates] representava um perigo na ligação promiscua entre política e negócios?
O meu confronto com o José Sócrates foi um confronto político, independentemente das relações pessoais. Começou com a coincineração, e muitas pessoas que hoje atacam o Sócrates foram pessoas que o qualificaram. Eu não queria ser candidato a secretário-geral. Tínhamos um grupo que se chamava Liberdade e Cidadania. Percebemos que se iria criar uma situação complicada para o partido e que era necessário manter um espaço de debate, de diálogo e de abertura.
Mas fez parte, ou não, da sua intervenção, nesse congresso, a preocupação sobre o que aquilo representava de ligações entre política e negócios?
Em meu entender, aquilo foi uma radicalização da Terceira Via. E criou um caldo de cultura que depois propiciou o resto: promiscuidade entre negócio e política, captura do Estado por interesses que não são os interesses gerais.
Estou a tentar perceber se tudo isto que tem acontecido nos últimos tempos relativamente a Sócrates foi ou não uma surpresa para si.
Essa promiscuidade denuncio há muito tempo, assim como as viagens que fazem os ministros do partido ou dos partidos do bloco central para as grandes empresas. Nunca gostei disso. Eu distingo aqui duas coisas: o criminal e o serviço público. A decência e a honestidade na vida política.
Sente que o PS, a determinada altura, ficou capturado por interesses económicos?
Sempre. Começou com uma pessoa que está acima de toda a suspeita, o António Guterres. Que é um socialismo cristão que foi o pai político. Foi ele que abriu as portas a muitas coisas. Sinto que a partir de certa altura, e sobretudo quando Sócrates foi primeiro-ministro, houve uma captura do Estado por outros interesses. Um grande encosto à banca, por orientação política. Mas foi uma orientação que nós combatemos. E distingo a questão pessoal, política e a outra.
Qual é a outra?
A outra é a questão da justiça, que também tem que se lhe diga. Há acusações que foram feitas que têm de ser provadas e demonstradas. Um julgamento tem de ser feito, de que a justiça não pode ser demorada eternamente. Arriscamo-nos, como disse o Presidente da República e muito bem, a morrer antes de certos julgamentos sejam feitos. Isso não é bom para a justiça nem é bom para a saúde da democracia e da República.
Houve uma sucessão de declarações de altos cargos do PS que levaram Sócrates a desfiliar-se do partido. Lamenta que essa decisão dele tenha acontecido?
Abriu-se a caixa da Pandora e isso não foi bom, porque a direita também aproveitou isso.
Acha que António Costa vai ter margem para não tratar deste assunto no congresso?
Repete a declaração que fez na entrevista ao DN e fecha o assunto. Mas não sei o que as outras pessoas vão fazer. Os jornalistas irão interrogar quem estará presente. Acho que foi um grande erro político aquele início de declarações avulsas sobre uma pessoa também avulsa.
Na moção de António Costa, corrupção é uma palavra que não está lá. E, portanto, o PS continua a não achar, aparentemente e oficialmente, que o problema da relação entre os interesses políticos e os económicos não é um problema.
Tenho de acreditar que acha, senão não seria membro do PS.
Mas não existem manifestações públicas disso...
A questão fundamental é uma certa noção de serviço público, do interesse geral acima de interesses espúrios, da decência e da honestidade na política. Aí pode reconciliar as pessoas e os cidadãos com a política.
Considera que a maioria absoluta deve ser um objetivo prioritário do PS para as próximas eleições legislativas? Ou tem medo disso?
Não tenho medo. Há aqui um equívoco. Não se tem maioria absoluta por se querer ou pedir maioria absoluta. Tem-se se o eleitorado assim o decidir, se merece ou não. E às vezes até pode merecer sem a ter. Ou ao contrário, tê-la sem ter merecido.
O acordo à esquerda que sustenta a governação é uma exceção na Europa...
É uma exceção na Europa e funcionou bem. Embora deva ter mais ambição, mais consistência.
Sente que a geringonça tem uma agenda bloqueada?
Está muito bloqueada, mas se calhar é isso que a salva. O Costa é pragmático e os outros também são. Há ali grandes divergências, sobretudo ao nível da política externa e nas consequências internas da política externa. E isso bloqueia muitas coisas, constrange. Mas conseguimos o milagre de fazer isso sem afrontar a Europa. Só que deveria haver mais ambição.
O PS não permite revisões profundas do Código do Trabalho. Por onde é que o Manuel Alegre aprofundaria a agenda comum das esquerdas?
Aí até percebo o PCP. Essa é uma questão que separa a esquerda da direita. A Europa não permite, mas tem de mudar. Ou muda ou vai rebentar por todos os lados. A Itália vai ser o catalisador disto tudo. Há coisas em que a esquerda se poderia entender: o Estado social, o Serviço Nacional de Saúde [SNS], que é o que mais me inquieta neste momento.
Surgem múltiplas queixas sobre o SNS. Como avalia o a atuação do governo neste setor?
O problema número um é o do acesso. Há pessoas que esperam muito tempo. Enquanto as pessoas lá estão são bem tratadas, o problema é o acesso. Há muitas pessoas que esperam muito tempo e não têm dinheiro para ir aos privados. E dessa maneira o SNS fica um serviço para pobres. É o contrário do que quisemos.
Sente-se preocupado porque acha que este governo tem um ministro que funciona muito na lógica das PPP e é pouco aderente à lógica inicial do SNS?
Não o conheço suficientemente. Acho que o governo e os partidos que o apoiam - não ponho só a tónica no ministro, porque eles estiveram lá -, todos têm responsabilidade, quer o PS quer os partidos que apoiam o governo. A defesa do SNS e dos propósitos do SNS deve ser, neste momento, um imperativo prioritário, um imperativo patriótico, nacional, absoluto.
Todas estas suspeitas sobre José Sócrates puseram em causa a bondade de ideia de investimento público. É uma ideia que precisa de reabilitação?
Precisa de transparência e de ser retomada. A economia precisa de investimento público. Li a moção dos meus camaradas Pedro Nuno Santos e Duarte Cordeiro, que é muito interessante, e que diz que não basta o Estado ter apenas a função reguladora e estar ali a fazer o papel de Estado social a fazer a distribuição. O Estado também tem de ter uma noção estratega. É o retomar da noção que tínhamos em 2004. O Estado estratega...
Revê-se nessa moção?
Sim, mas eu não gosto que se fale em social-democracia. Sou da outra geração. E devo dizer que também tenho apreciado muito o Fernando Medina.
Qual a sua avaliação global do mandato do Presidente da República?
É positiva mas com alguns senãos. Por oposição ao anterior, criou uma administração de proximidade, de afetividade, embora ache que agora começa a haver proximidade e selfies a mais.
O PR referiu que se as tragédias do verão passado se repetirem ele não se recandidata a um segundo mandato.
Disse, mas não deveria dizer.
Não seria uma pressão sobre o primeiro-ministro?
Já houve aí vários desentendimentos desnecessários. O fogo não pode ser instrumentalizado. Aquilo foi uma tragédia terrível.
O PS deve apoiar Marcelo Rebelo de Sousa se este se recandidatar a um segundo mandato presidencial?
É muito cedo para falar nisso.
Não sei se já falou com José Sócrates, mas acha que ele, agora que está livre do PS, pode querer provocar danos no partido? Pode sentir-se tentado a fazer isso?
Pode, pode. Gostaria que ele não fizesse isso, mas pode. Embora ache que ele tinha ligações profundas ao PS. Teve uma maioria absoluta, foi glorificado como poucos em congressos e agora é natural que esteja magoado. E uma pessoa como o Sócrates, magoada e ressentida, em princípio não se fica...
Manuel Alegre vai ao congresso?
Para isso teria de ser convidado. Neste momento não sou delegado, não tenho funções. Assim terei de ser convidado.
E se for?
Depois logo se vê.
Se fosse ao congresso iria fazer uma defesa vigorosa do SNS?
Com certeza. Mas não sei se serei convidado. Será um caso estapafúrdio não ser convidado, mas em política tudo é possível. Já resolvi muitos congressos, também já virei alguns congressos do avesso. Não sei o que as pessoas querem deste congresso. Agora, se lá fosse e se falasse, evidentemente defenderia o SNS, defenderia a decência da política, defenderia a transparência da política, e não falaria de pessoas.