Espiões violam lei. Fazer escutas e controlar telemóveis é prática comum
Aceder a faturações detalhadas dos telemóveis? Ilegal, mas os serviços de informações fazem-no, é o "modus operandi", segundo o ex-diretor operacional do SIS e do SIED, João Luís. Intercepção de comunicações? Ilegal, mas as "secretas" têm equipamentos capazes de realizar tais operações e até o "Glossário" do seu "Manual de Procedimentos" faz a distinção entre "escuta", "escuta ativa" e "escuta passiva". Este é um breve resumo do que de mais relevante tem sido dito durante quatro meses do julgamento do chamado "caso das secretas" e que levou o Ministério Público a abrir uma investigação sobre suspeitas de práticas ilegais no Serviço de Informações e Segurança e Serviço de Informações Estratégicas e Defesa.
A estas revelações que têm sido feitas em tribunal junte-se o depoimento do próprio presidente do Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa, Paulo Mota Pinto, a declarar que os serviços dispõem de "equipamento dual" que pode ser utilizado com "propósitos com enquadramento ilegal".
Porém, aquando as primeiras suspeitas surgiram - em junho de 2014, quando o DN revelou as orientações do "Manual de Procedimentos" dos espiões para recolherem informações juntos de operadoras de telecomunicações, segurança social e Finanças - Paulo Mota Pinto foi à Comissão Parlamentar de Direito, Liberdades e Garantias, afirmar não ter encontrado vestígios de ilegalidades. "Ninguém ficou preocupado", disse o secretário-geral do SIRP, Júlio Pereira, em julgamento. Isto porque, o próprio documento refere que o trabalho dos espiões deve estar debaixo da lei.
Mas a dúvida fica: "Que informação é que um espião pode querer de uma operadora de telemóvel que seja legal? O preço dos pacotes?", ironizou um advogado ligado ao julgamento do caso das secretas, que envolve Jorge Silva Carvalho, ex-diretor do SIED, João Luís, ex-diretor operacional, Nuno Vasconcellos, presidente da Ongoing, Nuno Dias, agentes do SIS e a sua companheira, Gisela Teixeira.
Ainda por cima, o tal Manual de Procedimentos ensina os espiões a fazer a distinção entre uma "escuta" - "termo genérico que designa a intercepção não autorizada de notícias ou informações que sejam difundidas por qualquer meio sonoro ou eletromagnético" - , uma "escuta ativa - "visa obter notícias e/ou informações classificadas por intermédio de microfones, com ou sem fio, ou de outros dispositivos instalados para o mesmo efeito" - e uma "escuta passiva" - "visa obter notícias e/ou informações classificadas através de meios de telecomunicações não protegidos ou por escuta direta". Mas, oficialmente, as secretas portuguesas agem de acordo com a lei.
Todas estas questões foram colocadas em tribunal por João Luís, acusado de ter acedido ilegalmente à faturação detalhada do telemóvel do jornalista Nuno Simas. Em tribunal, o ex-diretor operacional justificou-se, dizendo que não fez mais do que aquilo para que foi "treinado e ensinado". A frieza das declarações de João Luís até terá surpreendido o coletivo de juízes presidido por Rosa Brandão. Questionado pelos juízes, João Luís declarou que voltaria a fazer o mesmo, porque isso era o "modus operandi" de um serviço de informações. Aliás, João Luís recordou que, no passado, sempre que a atuação dos espiões poderia ultrapassar a fronteira legal, nunca "nenhum superior hierárquico" lhe disse "não vá por aí, que é um caminho marginal". E no rol de superiores hierárquicos contam-se juízes e procuradores.
O arguido chegou a confessar que, antes do advento digital, as escutas telefónicas faziam-se nos telefones fixos. "Cheguei a participar em operações dessas", disse. Menos categórico foi quanto à existência de equipamentos para escutas telefónicas. Porém, admitiu existir instrumentos de escutas ambiente, que acabam por recolher o que uma pessoa estiver, por exemplo, a dizer ao telefone.
Mas a garantia oficial foi dada: Paulo Mota Pinto disse ser sua "convicção" que os serviços atuam dentro da lei. Garantindo nunca ter encontrado nos armazéns das secretas "aparelhagens de intercepção de comunicações telefónicas", não deu a mesma garantia quanto a instrumentos para "escutas ambientais", porque se trata de "uma definição muito ampla", já que "qualquer telemóvel pode servir para fazer escutas ambientais". O deputado acrescentou nunca ter lido um documento que indiciasse que a informação recolhidas teve por base uma escuta. "Eu posso escrever que, segundo a fatura de um telemóvel, fulano fala frequente com beltrano ou dizer apenas que fulano fala frequentemente com beltrano", comentou um advogado.