Espião português causou danos graves às secretas e à NATO
Graves danos para as secretas e para a NATO, identidade de espiões e fontes revelada, quebra de confiança perante congéneres e organizações internacionais, operações falhadas, tudo assumido pelo Serviço de Informações de Segurança (SIS) e pela Aliança Atlântica, no processo do alegado agente duplo do SIS, recrutado pela Rússia. O julgamento - inédito no nosso país - de Frederico Carvalhão Gil, acusado de espionagem, violação do segredo de Estado e corrupção, será à porta fechada e a primeira sessão está marcada já para o próximo dia 23 de novembro, soube o DN. A defesa alega que tudo não passa de "ficção" e ridiculariza as provas.
A alegada "toupeira" das secretas de Vladimir Putin foi detida em Roma, em maio de 2016, durante um encontro com Sergey Nicolaevich Pozdnyakov, cujo nome estava referenciado em várias agências internacionais como sendo quadro da SVR (Sluzhba Vneshney Razvedki - Serviço Externo da Federação Russa), herdeiro da KGB, depois de uma investigação exaustiva da Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT) da PJ, coordenada pelos procuradores João Melo e Vítor Magalhães, do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP).
Pozdnyakov será julgado à revelia, depois de as autoridades italianas o terem libertado, dois meses depois da detenção em Roma, recusando o pedido de extradição de Portugal.
A investigação identificou mais de três dezenas de encontros suspeitos que começaram, pelo menos, em 2011, altura em que terá sido recrutado pelo SVR. Até 2015, Carvalhão Gil, com acesso a diversa informação privilegiada da NATO, como representante do SIS em vários exercícios, andou em roda livre, sem ter sido detetado. Só nesse ano, após uma denúncia às secretas portuguesas, com participação da CIA, sobre um encontro entre Carvalhão e Pozdnyakov, na Eslovénia, o espião ficou sob vigilância. Durante este período, recorde-se, um outro caso relacionado com as secretas, marcava a atualidade: o do ex-diretor do SIED, Jorge Silva Carvalho.
A operação, designada "Top Secret" apanhou os dois espiões em flagrante, envolvendo troca de informações secretas a troco de dinheiro. Foram apreendidos documentos estratégicos classificados da NATO, informações reservadas sobre dirigentes (entre os quais o atual número dois do SIS) e ex-dirigentes das secretas e de um ex-ministro da Administração Interna.
"Os factos descritos na acusação envergonham qualquer funcionário dos serviços pela desonra que os mesmos representam, não só para os serviços, mas para o Estado português", concluiu o procurador do DCIAP, João Melo, durante o debate instrutório, realizado em setembro passado, para avaliar as nulidades invocadas pela defesa de Carvalhão Gil. O juiz de instrução, Carlos Alexandre, subscreveu a acusação do MP, fazendo o processo seguir para julgamento. A pedido do DCIAP foi declarado o segredo de justiça para todos os procedimentos, com exceção para o debate instrutório, princípio aceite pelo coletivo de juízes do tribunal, presidido por Alexandra Veiga, que vai julgar o espião à porta fechada, apenas com a leitura da sentença a ser pública.
A dimensão dos estragos causados pela ação do alegado agente-duplo está descrita, principalmente, nos testemunhos dos responsáveis do SIS e de um oficial do departamento de segurança da NATO. O acervo de relatórios, em papel e formato digital, documentos, vídeos e fotografias que foram apreendidos na residência de Carvalhão Gil demonstraram, para a acusação, um autêntico terramoto para as secretas portuguesas.
O SIS confirmou ao DCIAP que, depois de terem sido encontradas na posse do espião listagens com as identidades dos funcionários daqueles serviços, bem como das suas fontes, foi necessária uma alteração completa das estruturas operacionais, mudando nomes, matrículas de carros e telefones. A revelação das fontes comprometeu seriamente, alegou o SIS, toda a organização, pondo mesmo em risco a vida de algumas delas.
A relevação à Rússia da informação contida nos documentos secretos da NATO colocou ainda em causa a segurança interna dos países ali referidos, resultando em danos para a política de segurança da NATO e comprometendo a confiança em Portugal dos países aliados. Desde 2011 que Carvalhão Gil assumiu diversos cargos que lhe davam acesso a informação sensível: foi o representante do SIS na Célula Nacional de Acompanhamento do Exercício CMX-OTAN, tendo participado em três exercícios que servem para testar e validar "as medidas e os mecanismos relacionados com o processo de consulta e de decisão coletiva na resposta a crises" e foi membro da Unidade de Coordenação Antiterrorista.
Para a NATO, cuja avaliação está registada na acusação e foi citada pela revista Sábado, "a participação de Carvalhão Gil nos Exercícios de Gestão de Crises pode ter sido mais prejudicial do que o material classificado que possa ter passado aos Serviços de Informações Russos. Dado que pode comprometer os planos de resposta da NATO é especialmente perigoso para a Aliança". O espião português tinha uma "panorâmica geral e privilegiada de como a NATO responderia a várias situações de crise". Concretamente: "terá estado em condições de compreender e explicar a posição do Conselho do Atlântico Norte em caso dessas emergências e, através do relatório pós exercício, poderia ter exposto as posições e vulnerabilidade de determinadas nações aliadas que nestes participaram. Estaria em condições de relatar as Regras de Compromisso da NATO numa situação de crise e poderia ter descrito pormenorizadamente a maioria dos elementos de um plano de contingência da NATO". Mais importante: "em relação ao CMX NATO de 2011, Carvalhão Gil estaria em condições de explorar procedimentos e táticas de Defesa Coletivas, nomeadamente no caso de um País Membro ser atacado por um agressor".
A defesa de Carvalhão Gil tentou invocar várias nulidades no processo, entre as quais a de por em causa a sujeição ao segredo de Estado dos documentos e da identidade dos espiões, tentando descredibilizar toda a narrativa do MP. O álibi para o encontro de Roma continua a ser que se tratou de um mero encontro de amigos para falar de uma possível exportação de azeite para a Rússia, embora, conforme salientou o procurador do DCIAP, nunca tivessem sido apresentadas provas dessa intenção.
O advogado José Preto tentou convencer, sem sucesso, Carlos Alexandre que todo o processo era mera "ficção". "Toda a prática investigatória é marcada pelo preconceito. O arguido está a falar com um amigo e dizem que era agente SVR. Mas não se sabe se é. Não há documentos", alegou. O inquérito "transformou o inverosímil em acusação. Não é crível!", afirmou José Preto, para quem as fotografias tiradas pelo espião a agentes no interior dos serviços "podem compreender-se como meros atos conviviais dos funcionários" e práticas "sociais e afetivas das organizações".