Olga Roriz: "O palco é um lugar onde eu podia viver. É mágico"

Quem faz as danças? Os bailarinos. Quem faz mesmo as danças? O coreógrafo. Tinha conseguido a resposta para toda a vida. Quando festejou 20 anos de companhia, 40 de carreira e 60 de vida, adoeceu. Talvez não volte a dançar mas, com a disciplina férrea que a carateriza, está recuperada
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É pela Travessa do Recolhimento de Lázaro Leitão que se entra para o Palácio Pancas Palha, onde está instalada a Companhia Olga Roriz. A própria toponímia evoca longas e misteriosas histórias, reforçadas pelo interior do edifício (a precisar de obras mas magnífico) e pelo ambiente do jardim desordenado. Olga aparece com o ar de quem está ali tranquila a trabalhar num ambiente de rigor e criação, sem sinais da doença que a paralisou de dores há dois anos. Bela, elegante, com a segurança de quem se sabe sempre observada. Virada para o exterior, decidida a não fazer nenhum novo espetáculo até que termine a guerra da Síria. Vai continuar a contar a destruição de Aleppo.

Qual é o seu próximo trabalho? O que está a preparar?

Tem que ver com o anterior, quero continuar a trabalhar o tema do Antes Que Matem os Elefantes, que ainda vai manter-se pelas salas do país - o próximo espetáculo é no dia 23 em Viana do Castelo. Em Lisboa fazemos duas, três vezes e depois vamos pelo país fora, porque aqui não temos um espaço de apresentação. É uma falha grande das companhias de dança, à exceção da Companhia Nacional. Foi uma das razões por que o Paulo Ribeiro foi para Viseu. As companhias de teatro têm espaços de representação mas nós não temos.

Não se pode fazer um bailado numas condições quaisquer?

Nós podemos fazer em espaços alternativos, mas geralmente nesse caso faço a peça para aquele espaço, um sight specific. E depois há todo o lado do equipamento, da luz. O Palácio Pancas Palha é muito bonito mas tem de haver toda uma parte técnica muito exigente. Não podemos estar sempre a fazer espetáculos em cima do joelho, não faz sentido. Fora de Lisboa há mais facilidade, há mais apoio das câmaras, há mais sítios para poderes instalar-te. Tentei em Sintra e no Algarve mas foi complicado. São coisas que demoram anos e nós temos de avançar. Antes Que Matem os Elefantes é sobre a guerra na Síria mas estava para ser sobre os refugiados. Depois da pesquisa, percebi que eram as origens que me mexiam, que me punham zangada e me davam vontade, desejo, necessidade de fazer um espetáculo sobre.

As origens, em que sentido?

A guerra. Porque é que aquelas pessoas têm de sair da terra? Fui, de uma maneira imaginária, buscar um "apartamento" na cidade de Aleppo. Sete pessoas convivem naquele espaço e o conflito é exterior, não há um conflito interno. O que é engraçado, porque normalmente as minhas peças são feitas a partir do conflito entre as pessoas. Aqui há uma entreajuda, um forte estado emocional individual e em conjunto, uma série de pessoas contra uma força exterior, sem conflito entre elas. Por trás de cada espetáculo, há o que descobrimos, pesquisamos, lemos, vemos, observamos, pensamos.

Vai acumulando? Não vai ler especificamente?

Por causa deste ou daquele projeto tenho de ler ou ver. Às vezes, isso muda a minha visão das coisas. Por causa de um projeto, li o Gilles Deleuze há muitos anos. De repente, aquele autor ganhou tal importância que nem me lembro qual foi o projeto. Penso que na maior parte dos criadores há um sítio da pesquisa que é fortíssimo. Pelo menos comigo é assim. Mas além disso para este espetáculo estive em Atenas, fui a um campo de refugiados e estive no porto de Pireu a vê-los a sair.

Isso muda a maneira de ver a realidade?

Não é o mesmo que vermos na televisão, fica marcado cá dentro. Estar ali, ver aquelas pessoas, respirar, ver o olhar, como se mexem e quais as preocupações. Ver as crianças, que já estão contentes mas... Depois é a tua imaginação a trabalhar. Foi muito forte. Quando voltei e comecei a pesquisar em documentários sobre a Síria, sobre Aleppo - era em Aleppo que se passavam mais estes desastres todos, e sobretudo os documentários das crianças, aquilo começou a mexer-me muito. O espetáculo começa com oito minutos de depoimentos de crianças, só com som. Não pus a imagem porque era forte de mais. Mesmo assim, é muito forte como arranque. Fui criticada por pessoas próximas: "Começas por aquela realidade tão forte, e depois que espetáculo vais fazer?" Foi um risco.

[citacao:Um criador faz o que faz e depois é para os outros imaginarem]

Sentiu essa dificuldade?

Aquilo foi a base, a minha inspiração. Precisei daquilo e os bailarinos precisaram de ouvir várias vezes para começarem, comigo, a inspirar-se e a trabalhar. Trabalho por via da improvisação, eles trazem-me coisas. E foi simples partilhar com o público. Um criador faz o que faz e depois é para os outros imaginarem. Nós imaginamos menos do que o próprio espectador. O espectador é que imagina, nós baralhamos...

É como na literatura, cada um lê o seu livro?

Nós baralhamos e pegamos nas coisas. Não é tanto imaginação, é pegar nas coisas e dá-las para as pessoas poderem imaginar, para fluir, sonhar, sentir coisas que têm que ver com as vivências de cada um. Tive intérpretes que me perguntaram: "Politicamente, até onde queres ir?" "Até onde for! Não me ponho entraves nem vou ser panfletária". Já fui noutros casos, mas neste não queria. É tão direto, tão atual, que tem o risco de que toda a gente sabe... Por outro lado, é mesmo isso que interessa. Está a passar-se agora, as pessoas levam muitas notícias pela frente, é um tema sensível. Pelo menos para mim. Quando parto para fazer, tenho de retirar de mim esse estado de sensibilidade e partir para outra zona. Com a consciência de que aquilo faz sentido ali, porque houve todo um manancial de conhecimento. E depois transformou-se em algo... Posso dizer que é o primeiro espetáculo de que gosto completamente.

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A sério!?

A sério. Do princípio ao fim. Tem qualquer coisa que me calha muito bem neste momento, que calha muito bem no meu percurso, que faz todo o sentido, onde estou completamente desamarrada de qualquer preconceito: "Ah, não posso fazer isto" ou "Ah, não devo fazer aquilo" ou "É dança? É teatro?" Não me interessa. Fui muito genuína. Os bailarinos deram imenso, também; perderam-se muito, porque é difícil - todos os dias eles tinham três ou quatro sessões de improvisação, onde lhes dava textos, às vezes uma palavra. Uma hora a improvisar sobre "condenação", "entreajuda", "solidão", "memória". Palavras muito fortes.

Costuma trabalhar assim?

Trabalho sempre assim. Os bailarinos sentiram-se logo ao início dentro do apartamento, tinham o que eu quis trazer: um sofá, um frigorífico, uns cobertores. E tinha ytong, como se houvesse uma bomba e caísse um monte de estuque, depois outro estuque ali. Havia imensas pedras em bacias, como se tivessem sido arrumadas.

O cenário estava feito à partida?

Sim, mas em cada improvisação estava distribuído de maneira diferente. Trabalhei com o Paulo Reis, e um dia ele perguntou: "Porque não lhes tiras o cenário?" "Tenho de prepará-los." Escolhi o momento e antes de entrarem no estúdio: "Hoje vão trabalhar sobre a memória da passagem dos objetos, tudo o que fizeram com os objetos." Entraram e não estava lá nada. Foi uma improvisação muito interessante, de onde tirei uma série de cenas e intenções. Tens de surpreender os bailarinos, não podem entrar na rotina porque, às tantas, não te dão nada. Foi muito bonito perguntar-lhes o que eram uns para os outros - nada estava estipulado -, o que era aquele sítio. Para um, não era um interior, era um exterior, uma esquina de uma rua. Aí percebi porque ele tinha feito certas coisas. Mais tarde, depois de termos estreado, eles acabam por se personificar e esse disse: "Eu sou a guerra." É o único que pega em baldes cheios de pedras e deita sobre ele, como se lhe tivessem caído em cima naquele momento. Há uma pessoa que não conhece ninguém, que passou por ali mas que já não existe, é...

... uma memória?

Ele próprio é uma memória.

Cada bailarino foi definindo a sua relação com o grupo?

Foi definindo, sim. Há um miúdo muito novo que foi ajudado pelos outros e acabou por dizer: "Esta é a minha mãe e esta é a minha irmã." São três mulheres e quatro homens. Era como se fossem mesmo a mãe e a irmã. E elas tinham com ele uma relação de proteção.

Ao longo das improvisações, o espetáculo vai sendo construído?

Há uma altura em que paro as improvisações e tenho uma série de cenas escolhidas. No final de cada improvisação, escolho e digo porquê. E ponho questões, até para poder ajudá-los. Havia muitas conversas. Fico com dezenas de cenas de cada um e depois volto a trabalhar algumas. Fizeram a improvisação há dois meses, por vezes não se lembram. Está tudo filmado, obviamente. E depois tem de se trabalhar. Eles trabalham tudo e eu, daí, ainda retiro e defino a ordem das cenas. É horrível para eles, porque, às tantas, nada está certo.

Mas para si faz todo o sentido?

Tenho de ver a coisa do ponto de vista global. Para um ou outro, o alinhamento calha bem para um percurso; para outros é contranatura. É preciso ver que ruturas são interessantes, tipo blackouts na cabeça. Porque o intérprete quer entrar num espetáculo e ter um percurso linear fantástico, onde consegue pensar e ir de uma coisa para a outra, ou então não lhe faz sentido. Vou fazendo propostas que têm de entrar na cabeça e no corpo daquelas pessoas. Na segunda ou na terceira representação, disse a mim mesma: "Quero continuar este espetáculo." Não porque este não esteja fechado ou porque ainda tenha muita coisa para dizer. Foi tão fundamentalista quanto: "Enquanto não acabar a guerra na Síria, não faço outro espetáculo. Vou continuar este até só haver pedras e não haver ninguém."

E esse é o novo projeto?

É a continuação, no mesmo apartamento, com as mesmas pessoas ou menos uma ou duas ou três, porque vão morrendo. Não sei. Na minha cabeça, é isto que tenho e com muita força. O sítio está caótico, pedra, pó e troncos por todo o lado, e os outros estão todos fora. Queria recomeçar dali.

Já começou o processo de criação?

Começo em fevereiro, ainda tenho tempo, a estreia será a 30 de junho do próximo ano no Teatro São Luiz. Queria trazer a palavra, começar por uma conversa entre mulheres sobre o feminismo, ir buscar textos, livros...

Daqui até fevereiro, vai estar tudo a maturar na sua cabeça mas mantém em cena o Até Que Matem os Elefantes?

Tenho em vários sítios: 23 de setembro em Viana do Castelo; 29 de outubro em Bragança; 26, 27 e 28 de janeiro de 2017 no Teatro São João do Porto; 1 de abril em Almada.

E vai sempre com a companhia?

Sim, porque faço direção de cena. Dou as deixas de som e de luz.

Como chegou a esse processo de trabalho? Trabalhou assim com outras pessoas?

Não. Isto aconteceu ainda eu estava no Ballet Gulbenkian, com o Jorge Salavisa. Saí em 1992. Ali não podia trabalhar por improvisação, tens um mês, fazes a peça e acabou. Levava uns textos, mas os próprios bailarinos precisam de ter uma maturidade e uma capacidade, uma técnica mesmo. Há muitas pessoas que pensam: "Ah, improvisar! Pronto, fazem o que querem." Não tem nada a ver.

Não é isso?

Não é isso. Na improvisação física até podes dar três ou quatro frases de movimento e eles continuam; ou dás imagens simples - um tigre com a presa do outro lado - e dizes "vais daqui para ali, não podes fazer o mínimo ruído". Vais conseguindo materializar as ideias no corpo. Mas a mim interessa-me como eles estão, como respiram, como se sentem, como olham. E depois vem o mexer: como aquele corpo mexe, como reage a um encontrão de outro, como reage a um olhar. É quase a construção das personagens.

Os bailarinos da sua companhia estão consigo há bastante tempo, conhece-os bem, sabe o que esperar.

Sim, e quero ser surpreendida e que eles se surpreendam a eles próprios. Essa é a dificuldade. Já tivemos momentos desesperantes. No espetáculo A Cidade chegámos ao fim a dizer: "Não queremos ver-nos mais." Eu pedi-lhes que me dessem a cidade sem clichés. Mas quando te queres surpreender de mais, nada vai acontecer. Acabou por ser um espetáculo lindíssimo, superdepurado: um bailarino de cada vez, a fazer a pérola que me deu naquele momento. Mas a sensação era: "Não vou conseguir trabalhar mais com estas pessoas, não têm mais para me dar." E depois tudo continua.

Como chega ao tema?

Às vezes, vou para um tema porque me é completamente desconhecido. Estou ali no zero e sei o que não quero. É horrível! "OK, ela não quer isto, pronto, já sabemos. Mas o que é que ela quer!?"

[citacao:Às vezes vou para um tema que me é desconhecido, estou a zero, sei o que não quero]

Isso deve ser esgotante, porque todos os dias começa do zero.

Era mais ou menos disso que se queixavam os bailarinos da Pina Bausch e alguns saíram porque não aguentavam. Porque é sair tudo lá de dentro. Não é tanto estar a repetir as piruetas seis horas, o que é, fisicamente, muito esgotante, mas tu chegas a casa e vais pensar no marido, no supermercado... Aqui vais ter de ir ao supermercado a correr e estás sempre em observação e criação. Mesmo os bailarinos.

Voltamos ao tempo do Ballet Gulbenkian?

Por volta de 1988, comecei a sentir necessidade de fazer trabalhos para mim e comecei a trabalhar com este sistema. "Que maravilha que era trabalhar assim com outras pessoas." Até 1992, fiz quatro ou cinco solos e fui desenvolvendo isso comigo. Entretanto senti que as coisas não estavam a funcionar bem na Gulbenkian, mas gostava muito de ali estar, foi muito importante para mim. Estava eu nestes pensamentos quando me convidaram para diretora artística da Companhia de Dança de Lisboa, onde estive só dois anos, por problemas com a administração. Mas foi o momento de iniciar este trabalho. Pude fazer a audição para os bailarinos da companhia nova, pude escolher uma dezena. Uma vez, eles passaram quase três meses de olhos vendados, porque eu me apercebia de que eles também não sabiam o que haviam de fazer. Percebi que se castravam muito. Quando tu tapas os olhos, não te importas de te despir.

Mas na dança trabalham sempre rodeados de espelhos.

Sim. A Graça Barroso, uma vez no camarim estava toda despida. De repente entrou um homem e ela tapou os olhos com a mão! Foi lindo."Não quero ver o que me está a acontecer." Mas não é a nudez exterior, é uma nudez interior, é ser como as crianças, voltar a esse lugar. Não é fácil quando se tem anos de profissão e uma vida vivida.

Foi então que criou a Companhia Olga Roriz?

Nessa altura já vinha embalada, não tinha volta a dar, nem que caísse para trás. Nem queria. Nos espetáculos pode haver um ou outro momento marcado por mim, fisicamente, do ponto de vista mimético, e é mesmo assim. Geralmente em conjuntos. Neste espetáculo há um momento de conjunto físico forte, mas nem esse foi criado por mim, foi moldado. Gosto de trabalhar com os bailarinos como se eles fossem de barro. "Mais para a direita! Agora vira. Agora cai." E eles lá vão fazendo à maneira deles. Fazem o que querem, não se apercebendo de que estão a fazer o que eu quero: porque todos queremos a mesma coisa. Conheço a linguagem dos corpos de todos os bailarinos da companhia - são muito diferentes - e eles conhecem a minha linguagem. Eles têm um percurso e um tempo que, às vezes, mudam. Já aconteceu bailarinos quererem ir-se embora porque mudaram e já nem a eles lhes interessa este trabalho, nem a mim me interessa trabalhar com eles. É uma evolução. Assim como há outros que tiveram um impacto enorme com a palavra e foram para o teatro. Porque se abriu todo um outro mundo.

Há sempre na base uma formação, um trabalho técnico. Tem de se começar desde pequenino, como aconteceu com a Olga?

São dois trabalhos diferentes. Um é um trabalho técnico puramente físico (que é sempre mental, obviamente), mas onde controlas e moldas o teu corpo. Seja que técnica for - clássico, contemporâneo - tens de perceber o teu corpo, a tua linguagem. É a grande diferença entre os bailarinos de repertório e os bailarinos de autor ou deste tipo de trabalho. A maior parte dos bailarinos de uma companhia de repertório não têm uma linguagem própria. Eventualmente gostam de fazer mais umas coisas, deste ou daquele coreógrafo. Dentro da criança, do aluno, do aprendiz, há qualquer coisa que quer esse lado criativo, não é só um executante. E há uns que são só apenas executantes. Este "apenas" não é depreciativo - são o que são, não gostam de improvisar e querem que lhes digam os passos e é aí que têm todo o prazer. Há outros que seria impensável trabalharem só mimeticamente - o coreógrafo faz e tu copias. Numa formação mais profissional, é muito bom ter vários professores, com linguagens diferentes, abordagens diferentes ao corpo, à respiração, ao controlo, ao estar no espaço, ao estar com o outro, ao estar em grupo. Esse conhecimento é muito importante para o intérprete. Consigo perceber - às vezes engano-me - qual é a capacidade criativa, o universo criativo que as pessoas têm. Podem ter uma técnica excecional e serem lindos de morrer, mas não têm vivência ou conhecimento. Há muitos bailarinos que leem e veem muito pouco e isso é importantíssimo. Cada vez mais encontras intérpretes ou alunos, miúdos de 16, 17, 19 anos, que conhecem muita coisa. Tem muito que ver com a internet, ajuda muito.

A própria pesquisa vai criando curiosidade?

Claro! Uma coisa vai dar à outra. Tenho na companhia um curso de dois anos, o FOR - Formação Olga Roriz. Num trabalho final, a improvisação foi dar a uma série de artistas mulheres, feministas, fortíssimas. Cada aluno escolheu uma figura e tinha de fazer um trabalho a partir daquela mulher. No fundo, é assim que um criador começa, a pesquisar. Depois, o problema é que tens de fazer algo de teu a partir disso. Escrevem, modificam textos, passam do texto ao movimento... como se faz isso? Pronto, é muita coisa.

A Olga é quase um cliché: desde pequenina queria ser bailarina.

É mais do que o cliché: desde pequenina queria ser coreógrafa! "Ó mãe, quem é que faz a dança? São os bailarinos que fazem as suas danças?" "Não, filha. São os coreógrafos." "Eu quero ser isso!" Nem conseguia dizer a palavra. O interessante foi nunca ter perdido esse lado criativo, porque a formação é muito dura quando é a sério. Tive uma mestra russa, muito forte, a Ana Ivanova, e foram dez anos a cascar no corpo, dos 8 aos 18. Antes tive a Margarida Abreu e tive o privilégio de estar no Teatro de São Carlos, era um ratinho da ópera. Podia entrar, fazer figuração, dançar nas óperas. Não precisava de contos de fadas, vestia-me de princesa, já me maquilhava.

Como teve acesso a isso?

Era aluna da escola e a escola dava os bailarinos para o corpo de baile. Quando eram coisas mais exigentes, ia o Verde Gaio. Era o que existia na altura. Estreei-me a fazer de Joana d"Arc com 10 anos. Foi muito importante a relação que tive com as grandes obras. Um certo barroquismo que tenho vem-me daí, dos cenários, da música, das personagens, das histórias, daquilo tudo. Eu vi do camarote presidencial, pequenina, o Tristão e Isolda do Wagner. Que mulher... uma hora e a mulher não morria... Na cabeça de uma criança, é fabuloso. Eu andava sempre por ali e era tudo aberto, podíamos ver os espetáculos todos. Vi o Rudolf Nureyev, a Margot Fonteyn, a Martha Graham... ainda vi o Dominique Mercy no Ballet-Théâtre Contemporain. Aquilo marcou-me de uma maneira muito forte. Aquele teatro, para mim, é uma coisa... Eu entro e aquele cheiro... Desde pequenina, fico num cantinho, a ver tudo. Às vezes, via os espetáculos nos bastidores.

O que é o palco para si?

É um lugar onde eu podia viver. É mágico. Vi coisas mágicas e vivi ali dentro. E não tem de ser aquele, porque tenho grandes memórias de vários palcos - do Teatro D. Maria II, dos vários palcos por onde passei. É o palco em si, tanto faz.

Tem consciência de que estão a olhar para si?

Tenho sempre consciência de que estão a olhar para mim, mesmo que não esteja lá ninguém. Tenho sempre uma câmara a olhar para mim. Não sei se isso é bom, se é mau. Para a minha profissão foi bom; para a minha vida privada, se existe, não sei se foi muito bom. Eu não percebi. No outro dia pensei nisso a ler Cinco Esquinas, do Mario Vargas Llosa. Ele fala do olhar exterior que está sempre sobre ti. A questão é fazer alguma coisa disso. Qualquer bailarino tem sempre - e é uma castração horrível - a porcaria do espelho. Um bailarino é aluno até ao fim da vida. Tem sempre um professor, porque tem de fazer as aulas, e um coreógrafo ou um ensaiador sempre a corrigi-lo.

Mas queria, desde pequena, ser a coreógrafa...

Talvez para sair dessa prisão, não sei. Quando me perguntam se gosto mais de dançar ou de coreografar, respondo que gosto de dançar aquilo que coreografo. É autofágico mas é uma vivência muito forte. O que é isso da minha intimidade, da minha vida privada? A minha vida privada é a dança, é ali que eu estou mais privada.

É aquilo que a Olga é?

É. E quando eu vou para a minha vida, para a minha casa, há um recolhimento, um descanso. Eu sozinha. Há uns gatos, umas coisas. Enxotei toda a gente da minha vida porque é impossível: eu não vivo para a dança, eu sou aquilo. Sempre. E é ali que eu me sinto bem e é ali que eu quero viver. Nem penso que seja a minha missão. É aqui que respiro, que sou eu, porque me descansa. Não sei explicar. Daí a dificuldade das relações. Sou superapaixonada, se a paixão acaba é uma chatice. Mas tens de estar sempre a regar aquilo.

O descontrolo do corpo deve tê-la preocupado quando ficou doente. A grande capacidade de sofrimento que qualquer bailarino tem de ter levou-a a protelar o tratamento?

Fui ao limite, mas também porque toda a gente se enganava. Tinha dores musculares mas não era por causa dos músculos. Toda a gente pensava que a bailarina estava tensa, tentavam tirar-me as tensões. Sempre tive dores mas aquelas não eram normais. Foi um grande sofrimento.

Esteve muito tempo sem saber o que era?

Começou em agosto ou setembro de há dois anos e fui internada em janeiro. Não conseguia mexer-me. Estava a entrar nas comemorações dos 20 anos da companhia, dos 40 de carreira e dos 60 de vida. Tinha peças para remontar, uma delas era Os Olhos de Gulay Cabbar, um dos meus solos mais queridos e, até à última, pensei que talvez pudesse fazê-lo, mas tive de entregá--lo à Marta Lobato Faria. Percebi que é bonito encontrar a bailarina certa para fazer cada um dos solos. Não há uma para fazer todos, tenho várias facetas. A Paulina Santos faz A Sagração da Primavera. Tivemos de ver os vídeos, porque eu não conseguia fazer os movimentos para ensinar. Não conseguia fazer nada, nem levantar os braços. Ficava em cima daquelas bolas grandes, não conseguia estar sentada nem deitada. Foi um descanso saber que nada tinha que ver com a parte muscular e óssea. "O meu corpo, afinal, está bom, tratei-o sempre bem." O problema era no sistema vascular.

Quando foi internada, pensou - finalmente, alguém está a tratar de mim?

"Por favor, façam-me alguma coisa!" Nas últimas semanas, as dores de cabeça eram tão grandes que pensei que o problema era aí. Tudo doía. No hospital, estava sem dores, foi uma felicidade. Tinha cama ao pé de uma janela que dava quase para a minha casa, com uma varanda fantástica. Estive muito bem, fui sempre bem tratada no Hospital de São José. Não queria sair enquanto não estivesse completamente bem. Foi difícil ir para casa, ao contrário dos outros pacientes. Agora vou ficar sozinha! Foi muito confuso entrar em casa. Estava a tomar muita coisa, esses seis meses foram o grande choque do corpo. O mundo não está bem aqui à tua volta, um bocado blurred, não sabes muito bem se estás, se não estás. E fui-me habituando.

Hoje já não se sente assim?

Sinto-me uma outra pessoa, mas não é bem essa. No dia a seguir a sair do hospital, vim aqui para o ensaio. Mas não estava ainda bem e tive de apresentar os espetáculos no São Luiz, o Pets, A Cidade e remontar a Propriedade Privada.

Tinha energia para isso?

Às vezes estava muito cansada. Depois fiz o Orfeu e Eurídice e ainda tive os Treze Gestos. No primeiro dia de ensaio, todo o dia, na Companhia Nacional, a minha cabeça estava pffuuu-pffuuu-pffuuu!

Sentiu-se na iminência da morte?

Não. A não ser com a médica que só dizia: "Tem de ter muito cuidado, pode ter um AVC. Vai ter um AVC. Não pode mexer-se, não pode dançar, não pode cair, não pode..." Tinha medo de mexer o pescoço. Aos poucos, fui arriscando. "Ó corpinho, isto não pode ser assim!" Essa médica tinha de ser rígida, imagino que ela tem de fazer isso com muitos pacientes que não fazem nada do que ela manda. Mas a mim se me dizem que não posso mexer-me eu não me mexo. Aos poucos fui-me apercebendo de que não me acontecia nada. Como quando tinha 5 ou 6 anos e disse para mim mesma: "Hoje não vou rezar, a ver se me acontece alguma coisa amanhã." E não me aconteceu nada.

E voltou a rezar?

Não.

Foi apalpando terreno, começou a aventurar-se?

Do ponto de vista vascular, os médicos diziam que eu tinha de andar pelo menos meia hora por dia. Outra médica dizia que eu tinha de nadar e fazer bicicleta. Só há dois meses, passados dois anos, senti a potência do meu corpo, que é superpotente, a nadar. "Estou viva!" Passei a vida inteira com um poder físico incrível e, de repente, não podia fazer nada. Está tudo bem, mas não está. Tenho, a noção de que posso ter um AVC de um momento para o outro. Toda a gente pode, mas eu posso mais do que os outros.

Como se chama a sua doença?

Arterite das células gigantes ou arterite temporal e é autoimune. Vou viver o resto da vida com estes problemas. Só ainda não percebi se vou conseguir dançar.

Ainda não experimentou?

Faço os meus movimentos, os meus aquecimentos. Quando começo um projeto que é um solo meu, há toda uma preparação física, diária, e eu não tenho tido isso. Faço exercício, vou à piscina, mas a minha vivacidade e a minha vontade já não são as mesmas. Devia ser mais disciplinada mas vacilo. É um contrassenso: tenho de estar saudável para ter esta doença. Uma parte do meu corpo tem de estar muito saudável e a alimentação tem de ser cuidada, mas isso já era, porque sou macrobiótica.

Vai tentar dançar?

É essa pergunta que tenho. Tenho de, pelo menos, tirar a cortisona do corpo, porque me incha muito, e outros medicamentos. Ainda tenho um ano à frente para me limpar e perceber o que posso fazer. E também ter vontade de o fazer. Sei que não posso fazer mais nenhum dos meus solos, estou proibida. A Sagração e tudo. Uma médica disse-me que tinha lá um movimento que eram 30 acidentes por segundo. Um movimento com a cabeça, para trás. Agora tenho de ter cuidado com a próxima bailarina, para ela não fazer aquilo de maneira tão violenta como eu fazia. Não sabia que se podia amachucar uma artéria. Tenho uma fissura feita por um movimento brusco, como num acidente de carro. Isso está arrumado. É um outro corpo, não é um corpo cego, louco, que se atira para qualquer coisa. É contido.

Era mesmo assim? Um corpo cego, louco, que se atirava para qualquer coisa?

Sim, sem dúvida.

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