"É mais importante contratar mais funcionários públicos do que aumentar os salários"

Segunda parte de uma grande entrevista do DN ao primeiro-ministro, António Costa

Estamos em meados de maio o que quer dizer que o mal da época está muito próximo. Ainda há dias um embaixador em Lisboa perguntava-me que problemas temos nós com os incêndios. Vou alinhar algumas más notícias recentes: a demissão do comandante operacional nacional da Proteção Civil; a falta de material da GNR; atraso dos meios aéreos. Apesar disto tudo, é possível dar alguma garantia de que estejamos neste momento mais bem preparados para combater os incêndios do que há um ano?

Eu acho que houve um consenso nacional que a comissão técnica independente designada pela Assembleia da República sublinhou que de uma vez por todas tínhamos de assumir que a prioridade das prioridades não está no combate, mas tem que estar na prevenção. A prevenção é um desafio de longo alcance que implica a reforma da nossa floresta, implica uma atuação muito forte na fase da prevenção e ao longo de todo este inverno, pela primeira vez, houve um esforço enorme do país. Um esforço dos proprietários, dos autarcas, do próprio Estado em fazer uma limpeza como há muitos anos não se fazia. Se me pergunta se essa limpeza foi suficiente, manifestamente não foi porque o combustível acumulado é tanto que nestes meses não era possível limpar tudo e é um esforço que ainda está a decorrer e tem de continuar a decorrer porque aí está a chave do sucesso.

Vamos optar também, não obstante, por robustecer o nosso sistema de combate e isso está a seguir o seu calendário e acho que não devemos confundir aquilo que é maior ou menor diligência burocrática ou processual com a criação de condições. A diretiva operacional nacional previa que neste momento tivéssemos em condições de operar cerca de 20 aeronaves. Elas estão cá e podem ser operadas a qualquer momento. Aguardam um visto do Tribunal de Contas, mas em caso de urgência é legalmente possível que elas sejam operadas mesmo sem o visto do Tribunal de Contas. Felizmente, não tem sido necessário mas em caso de necessidade imediatamente levantam voo e entram em combate.

Como é que vê o papel das associações de bombeiros e pergunto-lhe isto sobretudo tendo em conta a atuação e a atitude de Jaime Marta Soares que insiste na presença de elementos dos bombeiros no topo da hierarquia da autoridade nacional da Proteção Civil. Aparentemente o anterior comandante operacional demitiu-se em rutura com Marta Soares.

Sobre a demissão do anterior comandante nacional cingir-me-ei ao que ele escreveu na carta que entregou ao Governo invocando razões pessoais não especificadas. A proteção civil e o seu comandante nacional têm de ser capazes de agregar o conjunto de agentes de proteção civil. A espinha dorsal do sistema assenta no voluntariado, no sistema de bombeiros. Tem depois outros elementos como a GNR, os bombeiros profissionais, os sapadores florestais, as forças armadas, e é do esforço conjunto de todos que podemos ter uma atuação mais eficaz. Estou certo que o novo comandante nacional fará todo o esforço nesse sentido e em Portugal, com a nossa história e o nosso sistema, os bombeiros voluntários têm obviamente um papel insubstituível. Como sabem, a comissão técnica independente apontou para um caminho de profissionalização que terá sempre de ser um caminho progressivo. Por isso aumentámos muito, já este ano, o número de equipas de intervenção permanente. Ou seja, profissionais que dentro dos corpos de voluntários, vão ser profissionalizados; que, a partir do próximo ano, vão ter uma formação acrescida de forma a estarem crescentemente melhor preparados para responderem a estas calamidades. Não podemos ignorar que estamos hoje numa situação muito diferente da que estávamos por exemplo quando fizemos a reforma de 2006. Hoje as alterações climáticas manifestam-se de uma forma bastante mais visível do que então. Hoje o abandono da floresta é bastante superior àquele que era há dez anos.

Os dois incêndios mais graves o ano passado foram fora da época mais séria.

Sim, fora da época mais séria e como os relatórios identificam, foram fruto de fenómenos meteorológicos extremos e atípicos. Mas independentemente desses dois dias que tiveram uma dramaticidade única pelo número de vítimas mortais, a verdade é que todo o verão foi um verão particularmente difícil, fruto de dois anos de seca extrema que tínhamos vivido, de uma floresta mais desordenada, fruto das alterações climáticas e fruto de termos tido quase uma década onde a área ardida foi significativamente reduzida e portanto, o combustível cresceu e avolumou-se.

Já disse ou insinuou que as empresas de meios aéreos atuam de forma concertada entre elas quando o Estado as tenta contratar, que existe uma cartelização do sector. Agiu em conformidade? Já apresentou queixa a quem de direito?

Não. Os factos já tinham sido todos transmitidos por parte do Ministério da Administração Interna e, felizmente, as coisas têm evoluído no sentido positivo. As empresas que não se tinham apresentado a concurso entretanto consorciaram-se e negociaram com o Estado. O Estado por sua vez foi também capaz de romper a carência da oferta indo contratar a Itália um conjunto de aeronaves que habitualmente não contratava e creio que neste momento, para termos a totalidade do dispositivo, faltam-nos neste momento oito aeronaves. Bom, estamos a diligenciar nesse sentido e iremos trabalhar para termos as melhores condições, para quando for preciso atuar, possam atuar.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, na última entrevista que deu ao jornal Público e a Rádio Renascença, pôs a questão dos incêndios, a questão deste verão como decisiva para ele próprio se recandidatar ou não. De alguma maneira esta dramatização sobre os incêndios, sobre o papel político que estes podem ter, a si diz-lhe alguma coisa?

Vamos lá ver, não precisava desse estímulo suplementar para a motivação do Governo em dar prioridade absoluta a este combate. Depois de toda a tragédia que aconteceu é claro que esta é a primeira das primeiras prioridades do país. Para mim, aliás, não consistiu numa novidade visto que já há vários anos que tive a oportunidade de escrever que o tempo que a reforma de 2006 tinha comprado para a reforma da floresta estava a ser desaproveitado e, não se estando a fazer a reforma da floresta, um dia teríamos uma tragédia muito superior às que tínhamos vivido no início do século. Infelizmente, o tempo não foi aproveitado e a reforma da floresta que lançámos já não foi a tempo e tivemos a tragédia que tivemos. Mas para nós é muito claro que tudo tem que ser feito para evitar esta tragédia e o comentário do senhor Presidente da República é mais um estímulo para o empenho total do Governo para que se possa sentir livre de se recandidatar se for essa a sua vontade.

Mudando de geografia mas continuando nela, qual é o seu principal amigo na Europa?

Os meus principais amigos são os portugueses, isso é claro.

Da outra Europa que está fora das nossas fronteiras.

Temos felizmente muitos amigos. Eu acho que Portugal conseguiu construir uma rede de amizades importante. No seio da Comissão Europeia, com os nossos parceiros do sul da Europa, com parceiros importantes no norte e no centro da Europa, com o conjunto dos países de leste com quem procuramos que não se quebrem as pontes de diálogo e que são nossos parceiros importantes numa Europa muito diversa. Hoje em dia, eu diria que com os outros 27 chefes de estado e do governo, com a Comissão, com o Parlamento Europeu, com o presidente do Conselho mantemos relações de excelência a todos os níveis.

De certa maneira pode ser considerado o líder europeu que está mais afastado da Alemanha, da Angela Merkel. Não se dá conta disso? A Alemanha continua a ser o nosso parceiro preferencial como já foi?

A Alemanha é um dos nossos mais importantes parceiros económicos e em matéria europeia temos muitos pontos de vista em comum. Em Portugal tende-se a diabolizar excessivamente a posição da Alemanha. Há outros países que têm posições muitíssimo mais difíceis que a Alemanha. Tenho encontrado sempre, ao longo destes dois anos e meio, junto da senhora Merkel uma enorme compreensão; primeiro uma admiração pelo esforço brutal que os portugueses fizeram, pelos sacrifícios que foram impostos aos portugueses e pelo esforço de recuperação que temos vindo a fazer, e um esforço efetivo de compreender uma cultura que é diferente, uma forma de estar na vida que é diferente, necessidades que são distintas, mas um esforço sempre muito grande de aproximar posições. Não é só pelo facto de estarmos sentados lado a lado no Conselho, porque é essa a ordem da presidência que nos tem aproximado, mas também um diálogo muito franco que temos sempre mantido, muitas vezes concordante, outras vezes discordante e bastante frontalmente, mas dizer que a Alemanha está no polo oposto a Portugal é hoje uma visão completamente desajustada daquilo que é a realidade europeia. A Alemanha e Portugal estão seguramente mais próximos um do outro do que a Alemanha está de vários dos países do centro, do norte ou do leste da Europa.

Agrada-lhe o papel central que é declarado e assumido pelo presidente Macron em relação à Europa, sobretudo com o Brexit?

Bom, o presidente Macron tem representado uma grande força de energia para a Europa, tem ajudado muito a Comissão Europeia no debate sobre o futuro da Europa. Deu grande força a muitas das ideias; por exemplo às que Portugal vinha defendendo sobre a reforma da zona euro. Deu uma importante força para o aprofundamento da Europa nos domínios da segurança e da defesa. Não tem sempre uma posição coincidente connosco em matéria de acordos de comércio visto que é muito resistente à negociação com a Mercosul, o que para nós é uma prioridade muito importante para o desenvolvimento da economia europeia, mas temos tido uma excelente relação construtiva pois foi um dos principais apoiantes da candidatura do nosso ministro das Finanças a presidente do Eurogrupo; e temos tido uma posição sobre a reforma da zona euro bastante articulada embora a posição portuguesa, como é sabido, procure bastante fazer a ponte entre aquilo que têm sido as propostas que o presidente Macron tem apresentado e algumas ideias caras à Alemanha e estamos inclinados a crer que ajudarão a que a zona euro possa funcionar de uma forma mais harmoniosa combinando as boas ideias de um com as boas ideias do outro.

Era precisamente desse hiato que queríamos falar. No último encontro entre Merkel e Macron ficou claro que há ali diferenças substantivas na forma como os dois líderes encaram o futuro da Europa e sobretudo o futuro da zona euro; talvez mais preocupante, também nas últimas semanas, agravou-se uma tendência que se vem verificando desde o final do ano passado, princípio deste ano, que é o arrefecimento de alguns dos principais indicadores económicos na zona euro; estamos a falar de compras de automóveis, produção industrial que estão ainda a crescer mas bastante menos do que estavam no ano passado. Se a isto somarmos a fraca adesão da Alemanha à ideia de um orçamento central robusto para a zona euro para enfrentar choques negativos, não temos aqui tudo o que precisamos para ficar de novo muito preocupados como estávamos em 2008/9?

Não. Hoje estamos indiscutivelmente mais bem preparados do que estávamos em 2008 para enfrentar uma recessão e em 2011 para enfrentar uma crise como a crise das dívidas. Mas não haverá uma estabilidade duradoura da zona euro sem uma reforma da mesma. E há um pilar fundamental dessa reforma, que é termos uma capacidade orçamental própria. Não há nenhuma união monetária no mundo que não tenha uma capacidade orçamental própria.

Depois podemos discutir qual é o gradualismo da sua construção, qual deve ser a sua função e qual a sua dimensão. O presidente Macron tem insistido muito que a principal função deve ser responder aos choques assimétricos. Nós temos defendido que a sua função principal deve ser financiar medidas concretas que reforcem a convergência económica porque só a convergência ajuda à estabilização da zona euro. A Alemanha está mais próxima desta nossa posição do que da francesa. Muitos dos países entendem que cada Estado deve poder utilizar sem qualquer condicionalidade o seu orçamento. Nós entendemos que esse orçamento não deve ser um mecanismo de transferências permanentes e que, pelo contrário, deve ser contratualizado em função de metas concretas com calendários definidos para responder àquilo que são as necessidades concretas de cada país para vencer os seus bloqueios estruturais. Este é um modelo que é caro à Alemanha. Nós oferecemo-nos aliás, para desenvolver com a comissão europeia um projeto-piloto naquilo que é o principal bloqueio estrutural ao nosso desenvolvimento que tem a ver com as qualificações. E portanto, um programa que assentasse na redução do abandono escolar precoce, na valorização da formação profissional, na formação profissional ao longo da vida e em especial para os desempregados de longa duração. É um trio de programas que julgamos essenciais para contribuir para a convergência da nossa economia. E estamos disponíveis para aceitar metas anuais, que haja um calendário, que haja um esforço partilhado do nosso orçamento com o orçamento da união e que o orçamento da união seja libertado à medida que nós cumprimos esses objetivos. Eu acho que esta metodologia é correta porque dá tranquilidade aos chamados países contribuintes de que não estão a financiar a gestão financeira e são responsáveis de quem quer que seja. É responsabilizador para nós que também não gostamos de viver à custa da ajuda de ninguém, mas que sentimos que haver investimento europeu em Portugal não é um gesto de caridade mas é algo fundamental para o conjunto da estabilidade da zona euro.

Nós temos uma abordagem bastante pragmática que tem em conta muitas das preocupações que por exemplo a Alemanha tem manifestado e isso tem-nos ajudado muito a aproximar posições. Eu não quero dizer com isto, que a capacidade orçamental não tenha que apresentar a outra função que o presidente Macron tem defendido que é fazer face a choques. Deve ter. O caminho faz-se caminhando. Se começarmos por fazer esta dimensão focada na convergência, se com isto consolidamos a zona euro, reforçamos a confiança uns nos outros, diminuímos os riscos de desequilíbrios e dos choques assimétricos, nós muito provavelmente iremo-nos aproximando desse segundo objetivo. Eu acho que uma das coisas que tem sido importante na nossa forma de estar na Europa é termos uma grande capacidade de procurar ter uma noção muito clara de quais são os nossos interesses, mas também de compreender os pontos de vista dos outros. Só assim é que podemos viver a 27 ou 28, procurando enquadrar a defesa dos nossos interesses naquilo que é a mundivisão dos outros. Temos que a respeitar como eles têm que a nossa própria forma de ser. Acho que essa é a chave do sucesso.

Insiste na questão da convergência já há algum tempo como forma de fortalecer a zona euro e a ferramenta de convergência que temos agora são os fundos comunitários e o que é que Portugal está a fazer para minimizar as perdas nos fundos comunitários no próximo quadro comunitário de apoio, sobretudo porque com a saída do Reino Unido prevê-se um corte substancial nesses fundos?

Nós temos uma posição negocial clara, aliás consolidada no acordo que assinámos com o PSD, e compreendendo que temos de ter um orçamento à medida da ambição da Europa. Se a Europa quer ter mais presença na segurança, na integração das migrações, na cooperação com África e na defesa, isso implica ter mais recursos para responder a estas medidas. Se vamos ter perda de recursos com a saída do Reino Unido, isso implica mais recursos e, portanto, nós da nossa parte dissemos que estamos disponíveis para aumentar as contribuições nacionais, que se criem novos recursos próprios da União Europeia com base na taxação das plataformas digitais, com base na taxação dos produtos altamente poluentes e das transações financeiras, provavelmente conseguiremos aumentar os recursos próprios. Depois procuraremos modernizar as políticas antigas. Agora, não aceitamos a ideia de que deve ser o sacrifício da política de coesão ou da política agrícola comum a financiar estas novas políticas.

Agora claro, nós dizemos: se discutirmos simultaneamente o quadro financeiro plurianual com a reforma da zona euro e a criação de uma capacidade própria orçamental da zona euro, porventura esta junção destas duas discussões facilita-as reciprocamente, porque talvez alguns dos investimentos que para nós são essenciais e que atualmente estão a ser financiados no âmbito da coesão, quem sabe se não poderão ser financiados, por exemplo, no âmbito do tal orçamento para a convergência.

Mas é inaceitável a perda de 10 a 15%?

Nós não sabemos ainda a distribuição por país da proposta da Comissão, o que sabemos é que a Comissão propôs um corte médio de 5% na PAC e um corte médio de 10% na política de coesão. Segundo as indicações que temos, o corte previsto para Portugal é superior, sobretudo na coesão, a estes 10%. Isso obviamente não é aceitável e é um mau ponto de partida, por isso já transmitimos à Comissão que vamos para esta negociação com um espírito construtivo, como sempre vamos, mas sem poder aceitar aquilo que é aparentemente o ponto de partida da Comissão.

Há como que uma novidade ideológica que aparece na Europa, que ouvimos aqui, que é a do nacionalismo, o aparecimento, a sustentação, o aumento do nacionalismo à esquerda; o caso Mélenchon é um exemplo, o Bloco de Esquerda também, em Espanha, na Catalunha isso também se verifica. Isso deve-se, de alguma maneira, a uma incapacidade da Europa para se afirmar como também capaz de fazer o controlo da democracia, onde as forças à esquerda estão a ir para aquilo que se pensava que já não era da esquerda. Não se preocupa com isso?

Preocupo-me não só à esquerda como também à direita. A Europa tem frustrado muitas vezes os povos. Portanto, se queremos efetivamente combater o protecionismo, o isolacionismo, o excesso de nacionalismo e o populismo temos de repor a Europa a funcionar e ao serviço dos cidadãos; uma Europa onde os cidadãos sintam que podem confiar nela para os proteger, protegê-los do terrorismo, proteger o nosso modelo social, a criação de emprego, a criação de riqueza, protegê-los no seu modo de vida relativamente aos fenómenos migratórios, protegê-los relativamente às ameaças externas. Para que isso aconteça, a melhor solução não é a retração ou sairmos da Europa. Alguém acredita que fora da Europa teríamos melhores condições para criar emprego? Estaríamos mais protegidos da ameaça externa? Teríamos melhores condições para enfrentar a globalização ou as alterações climáticas ou qualquer dos grandes desafios que se colocam ao nosso mundo de hoje? Não, claramente não.

Portanto, acho decisiva a força com que o presidente Juncker abriu o debate sobre o futuro da Europa, que ganhou uma nova energia com a eleição do presidente Macron - é preciso reconhecê-lo - e, por outro lado o Brexit teve este efeito paradoxal de em vez de ter dividido os 27 que ficámos ajudou todos a unirem-se em torno deste objetivo comum. Muitas vezes a unidade é muito difícil, porque os pontos de vista são muito diferentes; é muito difícil, muitas vezes, compatibilizarmos os nossos valores com os valores expressos pelo governo da Hungria, mas temos de fazer um esforço conjunto de procurar ter uma visão comum, dificuldade que é muitas vezes justificada pela história diversa que uns e outros tiveram. Provavelmente os húngaros, se estivessem aqui neste extremo ocidental da Europa, virados e abertos para o Atlântico, há cinco séculos a conviver com todos os povos do mundo, quase das sete partidas do mundo, teriam uma visão, uma mundividência muito diversa da que têm; assim como nós, se tivéssemos estado enclausurados no centro da Europa, cercados permanentemente por grandes impérios, com toda uma história de invasões e de ocupações por uns e por outros, por protestantes, por ortodoxos, por islâmicos, porventura teríamos uma mundividência bastante diversa daquela que, felizmente, podemos ter.

A construção da Europa é um exercício muito exigente de descoberta do outro, de compreensão do outro e de procurar encontrar caminhos comuns que uns e outros possamos percorrer. Essa tem sido a chave do grande sucesso da Europa ao longo destes 60 anos; depois das tragédias que foram a Primeira e a Segunda Guerra, 60 anos de paz é algo que não tem preço.

Depois da saída dos Estados Unidos quer do Acordo de Paris em relação ao clima quer agora do acordo com o Irão sobre armamento nuclear, os EUA ainda são, na sua opinião, um aliado incondicional ou são antes um Estado pouco previsível?

Nós não podemos confundir nunca os países com aqueles que, circunstancialmente, os governam. Portanto, os Estados Unidos serão sempre um aliado fundamental no quadro da Aliança Atlântica, serão sempre um país nosso vizinho no Atlântico e serão sempre - espero que cada vez mais - um parceiro económico importante. Esta evolução da posição dos Estados Unidos, como a evolução na Turquia, na Rússia, demonstra bem como a Europa tem de ser capaz de ter uma política externa comum, porque cada um dos países europeus, por muito grande que seja, é hoje um pequeno país à escala global. É por isso que, de facto, a unidade faz a força e se queremos ser fortes temos de nos unir para podermos ter peso neste novo mundo que é hoje bastante mais complexo do que era há uns anos.

Mas não confundindo os EUA com Donald Trump, como vê o Presidente norte-americano?

Como imaginam não sou presidente do clube de fãs do presidente Donald Trump com certeza [risos], mas não reduzo os EUA ao presidente Trump nem à sua presidência.

Que leitura faz do novo ciclo político de Angola, com a eleição do novo presidente?

Acho que têm sido dados sinais importantes e esperançosos para a evolução do país. Portugal e Angola são dois países que estão inevitável e desejavelmente ligados entre si. Temos sempre uma relação excessivamente emocional uns com os outros - o Ferreira Fernandes que nasceu em Angola percebe isso talvez melhor que ninguém -, mas isso significa que essas relações emotivas tanto dão excesso de amizade como, às vezes, excesso de tensão por outros factos. Mas acho que é preciso que Portugal nunca perca de vista que com mais incidente menos incidente, mais irritante menos irritante, Angola será sempre um parceiro insubstituível, por isso temos mantido uma muito boa relação a nível político com Angola, temos criado condições para que as relações económicas tenham restabelecido a normalidade e, neste momento, como disse o presidente João Lourenço no último encontro que teve comigo em Davos, entre Portugal e Angola há um e único problema que transcende aliás o poder político. Esse problema tem a ver com a questão judiciária que está pendente e que a seu tempo será resolvido.

O chamado problema "irritante".

Que foi presumivelmente resolvido na semana passada quando o Tribunal da Relação decidiu remeter para Angola o processo relativo ao ex-vice-presidente Manuel Vicente como tinha sido solicitado por Angola.

A visita próxima do ministro da Defesa a Angola é um sinal dessa resolução?

É a sequência de várias, os ministros têm ido com frequência a Angola, o ministro da Cultura esteve lá, o ministro dos Negócios Estrangeiros esteve lá, eu já me encontrei duas vezes com o presidente João Lourenço desde que ele tomou posse e, portanto, essa relação tem vindo a desenvolver-se com normalidade e tenho esperança que com esta decisão do Tribunal da Relação o "irritante" que existia fique ultrapassado.

Falando um pouco da banca, descarta em absoluto o cenário em que o Estado tenha de intervir para salvar mais um banco, em particular, no caso do Montepio?

Eu acho que, felizmente, os portugueses não têm consciência do que foi o esforço absolutamente gigantesco que este Governo teve de fazer no seu primeiro ano de vida para a estabilização do sistema financeiro. Hoje virámos definitivamente essa página, todos os gravíssimos problemas que existiam estão ultrapassados; os graves problemas, como o elevado peso dos NPLs, com a retoma da economia, com a criação de uma plataforma, estão a encontrar um caminho de solução, e tenho esperança ainda que em conjunto com o Banco de Portugal possamos encontrar uma forma de acelerar a resolução dos problemas dos NPLs; depois há alguns problemas que subsistem, hoje a questão do Montepio é uma questão socialmente muito importante, porque são centenas de milhares de famílias que têm as suas poupanças confiadas à Associação Mutualista e é fundamental estabilizar essa instituição. Mas tendo em conta todos os que eram os problemas do sistema financeiro convém não dramatizarmos o que hoje é, comparativamente, um pequeno problema perante a dimensão dos problemas que tivemos de enfrentar e resolver.

Como é que vê o recuo da Santa Casa, que optou por não ter uma participação relevante na estrutura acionista do Montepio?

Nós, como Governo temos tido uma prática que me parece correta, que é de garantir autonomia à administração das entidades que dependem direta ou indiretamente do Estado. Como sabe das primeiras decisões que tomámos foi inverter a privatização da TAP para garantir que o Estado tenha uma posição acionista maioritária, mas essa posição é do ponto de vista estratégico, eu nunca reuni com a administração da TAP, não damos instruções à administração da TAP, não intervimos no dia-a-dia da vida da TAP, porque é essencial que assim seja para que a administração possa funcionar numa lógica empresarial e possa depois ser responsabilizada e avaliada pelo acionista. Fizemos o mesmo relativamente à administração da Caixa Geral de Depósitos ou de qualquer outra empresa de que sejamos acionistas.

No caso da Santa Casa da Misericórdia há uma avaliação, foi-nos perguntado se tínhamos algum obstáculo de princípio a que fosse estudada essa operação e dissemos que não. Ela foi estudada e a Mesa da Santa Casa tomou a decisão que entendeu melhor para os interesses da Santa Casa e isso é que é importante, que seja bem gerida e cá estamos nós no final para avaliar.

Voltemos à geringonça. Já disse que quer renovar os entendimentos à esquerda mesmo que o Partido Socialista tenha uma maioria absoluta. O que é que tem ao certo para oferecer ao Bloco e ao PCP, sabendo-se por exemplo que não está disponível para mudar o Código laboral para voltar - e este é um ponto muito específico que exigem os dois partidos - a tornar mais caros os despedimentos?

Mas o que está na base da geringonça não é que o que cada um dos partidos oferece aos outros. É um acordo interpartidário para servir Portugal e para servir os portugueses. O que interessa é o que é que temos a oferecer aos portugueses. Acho que o que temos a oferecer aos portugueses é aquilo que eu estou convencido que a maioria dos portugueses deseja: uma continuidade de uma boa política que tem produzido bons resultados. É isso que temos para oferecer e é aí que nos devemos concentrar.

Há uma acusação recorrente, sobretudo nas últimas semanas, talvez no último mês, por parte do Bloco de Esquerda e do PCP de que o Governo sempre disse que não ia mais longe no investimento em serviços públicos como a saúde, a educação, os transportes porque não tinha folga para tal, e no momento em que passou a ter folga essa folga passou a ser utilizada para outras prioridades, como por exemplo a estabilização da Segurança Social ou o pagamento da dívida. Como é que responde a esta lógica dos seus parceiros?

Respondo de três formas: primeiro, tenho a certeza de que o PCP e o BE não têm menos vontade do que o Governo de reforçar a sustentabilidade da Segurança Social, porque isso é a principal garantia do nosso modelo social e é para eles seguramente uma prioridade tão grande como é para nós. Foi por isso, aliás, que em conjunto votámos favoravelmente o adicional ao IMI para diversificar as fontes de financiamento da Segurança Social; foi por isso que votámos em conjunto que os dois pontos percentuais do IRC fossem consignados ao Fundo de Estabilização Financeira para reforçar a sustentabilidade da Segurança Social; e é por isso que, com certeza, estamos todos satisfeitos por, pela primeira vez em muitos anos, o Orçamento de Estado não ter de fazer transferências adicionais para cobrir défices da Segurança Social, porque graças ao forte crescimento do emprego e ao aumento dos salários, as contribuições têm vindo a recuperar muito significativamente os fundos da Segurança Social.

Em segundo lugar, se bem me recordo, para o PCP e para o BE, a redução da dívida era a prioridade das prioridades. Portanto, estarmos a reduzir a dívida é com certeza algo com que podem estar satisfeitos.

Em terceiro lugar, a folga que existe não é faltarem-nos agora menos 800 milhões de euros do que nos faltavam anteriormente, esse dinheiro não há a mais, falta-nos é a menos. A única folga que verdadeiramente existe é aquilo que nós conseguimos, tendo reduzido a dívida e tendo melhorado o rating, conseguimos reduzir nos juros e isso de outubro até agora são 74 milhões e esses 74 milhões são integralmente aplicados no reforço do Serviço Nacional de Saúde, da escola pública e dos transportes públicos. Ao longo destes três anos, a despesa com o orçamento do SNS aumentou 700 milhões de euros por ano; temos hoje mais 800 pessoas a trabalhar no SNS do que tínhamos no início desta legislatura; temos mais 4000 professores no sistema educativo do que tínhamos. Agora, foram anos e anos e anos de desinvestimento, portanto em dois anos não podemos fazer o que não foi feito durante uma década, temos de ir prosseguindo nesta trajetória mas temos de prosseguir, primeiro, para que continuemos a ter défices baixos para ir reduzindo a dívida e libertando dinheiro que conseguimos em juros à banca e podermos reinvestir nos serviços públicos. Porque se voltássemos a aumentar o défice aumentávamos a dívida e voltávamos a pagar mais juros e em vez de termos mais dinheiro para investir nos serviços públicos estávamos a dar mais dinheiro à banca para pagar os juros da dívida.

Há outra garantia que é fundamental dar aos portugueses: é que cada passo que nós damos é um passo sustentado, não estamos a dar dois passos à frente para dar um passo atrás. Nós estamos a dar dois passos à frente para podermos dar mais dois passos à frente e mais dois passos à frente; é assim que temos feito esta caminhada e é assim que temos de continuar a caminhar durante o próximo ano e meio até ao final da legislatura e por mim, estou cá pronto para continuar esta caminhada a seguir às eleições legislativas.

E entre esses passos seguros haverá um aumento para a função pública previsto no Orçamento de Estado?

Desde o início da legislatura, todos os funcionários públicos aumentaram todos os anos o seu rendimento disponível. Porque foram repostos os salários, porque viram eliminada a sobretaxa do IRS, porque lhes foi reposto o horário das 35 horas, porque foram descongeladas as carreiras e, para o ano, vão continuar a ser descongeladas as carreiras. Portanto, para o ano vão continuar a aumentar o seu rendimento disponível independentemente de haver ou não aumentos salariais. É um tema que será discutido seguramente na negociação coletiva no momento próprio.

O Programa de Estabilidade prevê que nos próximos anos aumente em 350 milhões de euros a despesa com o conjunto da administração pública; desses 350 milhões de euros temos de fazer opções, queremos aumentar mais ordenados ou queremos contratar mais pessoal? Aquilo que eu sinto, falando com a generalidade dos funcionários públicos, é que se houvesse as duas coisas seria excelente, mas se tiverem de escolher entre ganhar um pouco mais ou ter mais colegas para repartir o trabalho e prestar um melhor serviço, todos me dizem que preferem ter mais colegas de trabalho e prestarem um melhor serviço. Portanto, com estes 350 milhões de euros vamos ter de conseguir um equilíbrio entre aquilo que é a recuperação de rendimentos, que vai ter de prosseguir para os funcionários como para todos os portugueses, e preencher muitas carências que há na administração.

Como disse há pouco, já contratámos mais 8000 profissionais para o SNS, mas alguém tem dúvidas de que precisamos de continuar a contratar profissionais para o SNS? Já contratámos 5000 novos professores, mas agora com a redução do número de alunos por turma não vamos precisar de mais professores? Vamos continuar a precisar de professores. Não vamos ter de ter mais auxiliares? Vamos. Não vamos ter de ter mais enfermeiros? Vamos. Não vamos precisar de mais elementos nas forças de segurança? Vamos. Há algum serviço do Estado onde não seja preciso reforçar o pessoal? Porventura não há.

Nós temos de utilizar os recursos que temos e sabê-los gerir, satisfazendo simultaneamente aquilo que é a melhoria do rendimento - que tem acontecido sistematicamente nos últimos dois anos e vai acontecer ao longo de toda esta legislatura -, e ir preenchendo as vagas que existem, o que em primeiro lugar é essencial para a melhoria da qualidade dos serviços públicos prestados ao cidadão, mas também é essencial para o conjunto dos funcionários da administração pública. Muitos não podem beneficiar da redução das 35 horas porque têm de fazer horas extraordinárias para suprir a falta de pessoal; ora, as pessoas não querem fazer horas extraordinárias para ganhar mais, muitas desejam efetivamente poder ter menos horas de trabalho para poderem ter mais tempo para estar com os filhos, para darem assistência ao pai ou à mãe que precisam dela, para terem mais tempo livre, para estarem mais tempo com o cônjuge.

É necessário ter aqui a visão de que aquilo que nós temos pela frente não é a perspetiva de nenhum corte nem de nenhum congelamento; repusemos os cortes e eliminámos os congelamentos, estamos a falar em aumentar a despesa com a administração pública. São 350 milhões de euros a mais que iremos gastar nos próximos anos. Agora, se eu gastar tudo no aumento dos funcionários que já tenho, não tenho dinheiro para contratar os novos que me faltam; se eu gastar tudo nos novos que me faltam não tenho ara aumentar aqueles que já tenho. Portanto, há aqui um equilíbrio e um bom senso que têm de ser construídos e num quadro em que - é preciso sublinhá-lo - a inflação é historicamente baixíssima, os níveis de recuperação dos vencimentos do setor público (não tenho tido comparação ainda com os do setor privado, salvo para quem ganhava o salário mínimo nacional) são reais. Se me perguntar o que é mais importante, aumentar o número de funcionários ou o vencimento dos funcionários, respondo que aumento o número dos funcionários; neste momento isso é mais importante para melhorar a qualidade dos serviços e responder melhor àquilo que são as necessidades dos portugueses, e também para melhorar a qualidade de vida de quem já está hoje na administração pública.

Ainda no capítulo dos pequenos passos seguros...

Pequenos, é favor!

Para cada uma das pessoas que está...

Bom, não sei! Para quem ganha o salário mínimo nacional, nos últimos três anos, teve um aumento de 15%. A média dos aumentos salariais nos últimos dois anos, para quem ganha acima do salário mínimo nacional foi de 4%, com inflações que foram francamente abaixo disso. E isto foi acompanhado de uma redução muito significativa da carga fiscal sobre os rendimentos do trabalho, do aumento das prestações sociais complementares e dos abonos de família.

Se me perguntarem se vivemos no melhor dos mundos, claro que não vivemos no melhor dos mundos, duvido mesmo que cheguemos ao fim da nossa existência na Terra vivendo no melhor dos mundos. Agora, que estamos hoje seguramente melhor, isso estamos. Já imaginaram como seria esta entrevista há quatro anos? O que me estariam a perguntar não era se eu iria aumentar, seria quanto é que eu iria cortar. Agora já não estamos a discutir os cortes. Se fosse há dois anos o que me estaria a perguntar seria quanto é que eu iria repor. Já não estamos a discutir a reposição. Agora estamos a discutir se vamos aumentar e quando. Eu digo que vamos aumentar 350 milhões a despesa com o pessoal, agora, a prioridade das prioridades é suprir as enormes carências de recursos humanos que existem em diversos domínios da administração pública para podermos melhorar a qualidade do serviço que estamos a prestar aos cidadãos; essa tem de ser a prioridade.

Não quer comentar o que aconteceu esta semana, em que pode ter perdido a ilusão de que a oposição parlamentar do PSD mudou substancialmente, não lhe parece o renascimento do passismo?

A si pareceu-lhe, já percebi. Eu, por mim, prefiro não comentar.

Estamos a gravar esta conversa na residência temporária do primeiro-ministro, no Terreiro do Paço, basta-lhe chegar à janela para ver um dos sucessos do país nos últimos anos, o crescimento do turismo. Há diversos especialistas que pré-anunciam o colapso da capacidade de resposta do aeroporto da Portela; há quem aponte o verão de 2019 como um momento mesmo muito crítico se as expetativas de crescimento das chegadas a Lisboa se confirmarem, se - e aí tem a ver com o senhor como primeiro-ministro - não forem reforçados meios quer do SEF quer da NAV e também se a ANA não se preparar devidamente. É uma preocupação para este Governo, aquele aeroporto?

É uma preocupação para todos aqueles que há muitos anos sabem que é necessário haver um novo aeroporto internacional. Convém não esquecer que esse debate existiu, houve os que tinham a consciência do que iria acontecer e houve os que, imprudentemente, acharam que se devia adiar as opções que não deviam ter sido adiadas. Agora estamos a correr atrás do prejuízo e estamos a correr contra o tempo, mas vejo com muita satisfação que alguns dos que mais combateram a essência do novo aeroporto são dos que agora mais entusiastas são da rapidez da resolução do novo aeroporto. Temos um novo grande consenso e convém agir depressa antes que este novo consenso se esfume, como se esfumaram os anteriores.

Creio que a ANA estará muito brevemente em condições de apresentar a solução que está contratualmente obrigada a apresentar para encontrar uma alternativa visto que, como sabem, o anterior Governo privatizou a ANA com o ónus de a ANA assegurar a existência de um novo aeroporto quando estivessem atingidos determinados níveis de procura, que neste momento já estão claramente esgotados e, portanto, a ANA agora tem de responder depressa e bem.

Leia a primeira parte desta entrevista:

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