Cheguei meia hora mais cedo. Não tinha marcado mesa, queria ter a certeza de que havia lugar, mas fui logo recebido com um sorriso e uma mão estendida que me cumprimentou com um discreto "vem almoçar com o Dr. Marques Mendes? Já tenho duas mesas preparadas. Quer almoçar aqui em cima ou na sala lá de baixo? Lá em baixo ficam melhor, podem conversar à vontade".
Estava desfeito o segredo do Comilão, em Campo de Ourique. A simpatia do Sr. Cardoso é a marca do espaço. A "sala lá de baixo" é uma espécie de covil laranja. "Esta sala, se falasse, tinha grandes segredos a revelar...", há de dizer Marques Mendes mais adiante já a trincar apressado umas lulas grelhadas. Nas paredes, fotos de Pedro enquanto jovem dirigente da JSD (com autógrafo e tudo), outra foto do então primeiro-ministro Passos Coelho, e em boa companhia. Estão lá, pendurados na parede, a completar a galeria, Cavaco Silva, Marcelo Rebelo de Sousa, Durão Barroso e, claro, Luís Marques Mendes. Afinal, foi ele quem "descobriu" a casa.
Marques Mendes chegou com pontualidade britânica. "Sim, a sala lá de baixo é o melhor." O conselheiro de Estado de Marcelo Rebelo de Sousa e comentador dos domingos na SIC - das notícias em primeira mão - é tratado como se estivesse em casa. Já lhe conhecem os hábitos desde 8 de novembro de 1985, uma sexta-feira. Foi o dia do primeiro almoço no Comilão, horas antes da cerimónia de posse dos secretários de Estado do X Governo, o primeiro chefiado por Aníbal Cavaco Silva, ainda sem maioria absoluta. Nesse executivo, Marques Mendes foi secretário de Estado de Fernando Nogueira, ministro adjunto e dos Assuntos Parlamentares.
É por esses dias que começa uma longa relação do PSD, ou de figuras do PSD, com este discreto restaurante em Campo de Ourique. Marques Mendes conta que fez do sítio "quase uma cantina", e que muitas vezes saía da presidência do Conselho de Ministros ou do Parlamento e "trazia outros ministros ou deputados", e muitos acabaram por ficar como "clientes habituais", casos de Fernando Nogueira ou Pedro Passos Coelho, que é "grande amigo aqui do Cardoso". Aliás, o líder social--democrata é mesmo o único "laranjinha" com direito a várias fotos penduradas nas paredes do restaurante, quer na sala mais reservada quer na sala principal.
Com a ajuda do Sr. Cardoso, conta-se um episódio já do final do cavaquismo. Um convidado para jantar que esperou por Marques Mendes desde as oito da noite até às duas da madrugada. Marques Mendes explica que esse foi o dia de uma célebre comissão política nacional PSD, em 1993 ou 194, em que "o Cavaco quis aprovar o projeto de revisão constitucional, retirando da Constituição a regionalização, o que deu um barulho imenso, uma enorme polémica lá dentro. Então, houve uma reunião da comissão política que começou às três da tarde e acabou às duas e tal da manhã, com Cavaco Silva a fazer uma conferência de imprensa. Estivemos lá todos até essa hora, e depois acabámos todos aqui a jantar". O Sr. Cardoso, que passou boa parte da noite a fazer sala com o convidado de Marques Mendes, um administrador hospitalar, dá uma gargalhada e diz que "nessa noite fiquei a saber como se gere um hospital".
Umas quantas azeitonas, um pedaço de broa de milho, tudo mastigado à pressa, e chegam as lulas grelhadas. Marques Mendes pousa os talhares, mas ainda vou na segunda ou terceira lula. Come a um ritmo inesperado, e com o dom de nunca deixar cair a conversa. Confessa que "não per[de] tempo, e que gost[a] muito mais do jantar do que do almoço. Almoçar é cumprir obrigação, jantar é prazer".
E a qualidade dos partidos, dos políticos e das lideranças? O tema é querido a Marques Mendes, diz que "há muitos anos" é muito crítico do funcionamento dos partidos políticos e afirma que "a solução de fundo para tudo isto é uma mudança radical no sistema eleitoral". O conselheiro de Estado considera que Portugal tem um sistema que "não favorece nem a qualidade, nem o mérito, nem a competência, mas pelo contrário favorece o clientelismo e o compadrio", e dá um exemplo, pegando nas eleições autárquicas que aí vêm: "Os partidos têm muito cuidado em escolher os candidatos a presidente da câmara, porque querem ganhar, e normalmente quando não têm candidatos de qualidade até recorrem a independentes, que é uma coisa de que os partidos não gostam. Agora, passando isto para eleições nacionais, como as pessoas só votam em partidos e quando muito em candidatos a primeiro-ministro, ninguém conhece os deputados e aquilo entra tudo no caldeirão, tudo, entram bons e entram péssimos. E os líderes adoram isto, sobretudo os líderes locais. Porquê? Porque têm ali os seus yes-men. Agora, a qualidade do decisor político, a qualidade dos parlamentares, é que fica altamente afetada". Marques Mendes fala apaixonadamente nesta fase do almoço, repete que está a recordar um tema em que tem insistido nos últimos anos - a criação de círculos uninominais com um círculo nacional para corrigir questões de proporcionalidade -, e sublinha que acha "a coisa mais escandalosa da vida política portuguesa que se tenha feito, há 20 anos, uma revisão constitucional justamente para permitir isto, com base num acordo entre PS e PSD, e depois as mesmas duas forças políticas necessárias para fazer esta reforma não se entendem, embora, em teoria, os dois partidos sempre defenderam isto".
Marques Mendes, ainda assim, propõe algumas mudanças menos profundas, menos estruturais, mais simples. Os debates parlamentares, por exemplo, "é qualquer coisa para a qual o país não tem qualquer paciência". O antigo líder parlamentar do PSD diz que os partidos, na Assembleia da República, "falam todos em circuito fechado. É uma linguagem, uma atitude, um comportamento que não diz nada às pessoas cá fora", um problema que "os partidos têm muita dificuldade em perceber", e mais uma vez dá um exemplo, tirado da bancada do PSD: "Alguém que está a criticar uma má ação do governo, por exemplo, na área da banca, eles não entendem que, com os problemas que o PSD teve nessa área, não é muito credível uma crítica dessa natureza. E se, ainda por cima, essa crítica for protagonizada pela pessoa que antes tratou do assunto, isso é explosivo." Uma crítica aberta à antiga ministra das finanças, Maria Luís Albuquerque, alguém que Marques Mendes não entende como permanece na primeira linha do combate político, ou como foi escolhida por Passos Coelho para vice-presidente do PSD. "Devia estar mais resguardada", defende o antigo líder, a falar de outros assuntos, ou na retaguarda do partido, no Instituto Sá Carneiro, por exemplo.
Benfiquista assumido, Marques Mendes nota no debate político um maniqueísmo ao estilo das discussões antes de um Benfica-Sporting e afirma que "o debate parlamentar é onde está tudo mais viciado, e acaba por contaminar tudo o resto". Em relação às lideranças, diz que está criada a ideia de que "um bom líder é aquele que grita muito, aquele que diz não; ou seja, coragem é dizer não. Já houve tempos em que isso era verdade, como antes e imediatamente depois do 25 de Abril. Hoje em dia, a coragem é sobretudo para poder dizer sim, e para conseguir fazer alguns acordos, alguns pactos. Do lado do poder, criou-se a ideia de que fazer um pacto é valorizar a oposição, credibilizar a oposição. Há uns anos isto era impossível, o que quer dizer que nem de um lado nem de outro têm capacidade para se entender em temas nacionais. É muito a lógica futebolística, de facto".
Como exemplo conta um episódio dos tempos em que era líder do PSD, um dia de setembro, de arranque de ano letivo, já com o governo Sócrates em funções, em que o então líder do PSD visitou uma escola. Ora, tendo constatado que as aulas estavam a correr bem em todo o país, fez uma declaração "inócua", diz, congratulando-se por um começo de aulas sem dramas. "Nem queira saber as críticas que tive na minha comissão política, um órgão que era composto por pessoas escolhidas por mim, quase me comiam vivo", diz, "acusaram-me de elogiar o governo por uma declaração óbvia, é mesmo a lógica do Sporting-Benfica".
Outro dos temas foi a qualidade das lideranças, a crise das lideranças partidárias. Como exemplo, falámos da hipótese futura de entendimentos entre PS e PSD. Um bloco central, nem que seja simbólico, de curta duração e em áreas-chave da governação. Marques Mendes acredita que esse é um cenário para lá de improvável, inviável, sobretudo com os líderes atuais, sem o carisma e a força de outros tempos. Essa é uma coligação, explica, que "tem grandes resistências dentro do PS e dentro do PSD, logo, se um líder faz grandes auscultações dentro do partido, nunca fará uma coligação dessa natureza". Mais uma vez, Marques Mendes recorre à memória, relativamente recente, a 2005 e ao seu papel enquanto líder da oposição a José Sócrates, alguém com quem "nunca tive boas relações, não havia química". Ora, o acordo entre PS e PSD para a lei da limitação dos mandatos autárquicos, uma matéria que se arrastava desde 1995, foi resolvida "de rompante, num dia, entre dois políticos que defendiam o mesmo mas não se entendiam pessoalmente". O segredo? Nenhum deles ouviu os respetivos partidos. "Se eu fosse consultar os autarcas do PSD, não tinha feito aquilo, ainda hoje não haveria lei", diz Marques Mendes com um sorriso. "Se for fazer uma auscultação dentro do PSD ou do PS para a ideia de um bloco central, não vai a lado nenhum", diz, acrescentando que "hoje, tal como os partidos existem, com a massa de que são feitos os líderes, acho que é muito difícil".
Marques Mendes insiste na questão da qualidade do debate político em Portugal: "De eleição para eleição baixa a qualidade. Quando eu fui líder parlamentar já me queixava. Estamos a falar de 1995, 1999. Já recordava outras legislaturas. A sensação que tenho é que baixou muito a qualidade dos deputados, e onde vejo isso é sobretudo nos debates em comissão e nos deputados mais novos. Há exceções, mas são muito poucas." Concluindo este capítulo do almoço, Marques Mendes afirma que "uma reforma dos partidos é o mais urgente, mas, como os partidos não se reformam, só vamos conseguir mudar tudo isto quando um dia mudarmos o sistema eleitoral, quando houver um choque de fora para dentro".
Já com um café à frente, sem sobremesas, Marques Mendes confessa que já teve de ouvir e ler algumas reações mais azedas aos seus comentários dominicais na SIC, sendo certo que "as coisas mais difíceis vêm do lado do PSD, evidentemente", mas avisa que quando está a fazer comentário "não pode ter uma agenda, nem pode estar a fazer um tempo de antena, e tenho de fazer um esforço de isenção", logo, "não posso deixar de criticar o PSD quando vejo uma decisão errada ou uma conduta errada".
Quanto ao futuro, Marques Mendes cita uma entrevista de Fernando Nogueira há semanas à Notícias Magazine: "Não me arrependo de ter estado na vida política, nem me arrependo de ter saído." É uma frase muito feliz, diz. Confessa que gosta da política, gosta de intervir, de opinar, mas "não me passa pela cabeça nenhum cargo". Com 28 anos estava no governo, e desabafa que "foram muitos anos, e isto também satura, foram 22 anos consecutivos". E não pensa qualquer coisa como "eu faria melhor do que aquele tipo"? "Claro que sim, todos nós, estando de fora, pensamos isso, mas não tenho a tentação de querer estar no lugar para tentar provar que faria melhor, seja de carácter partidário seja de outra natureza, isso nem pensar." Revela que foi convidado para três cargos nos últimos anos, não revela quais, mas diz que são exemplo de que não quer regressar à política ativa. E uma candidatura à Presidência, daqui por uns anos, quando o amigo Marcelo sair de Belém? Marques Mendes não afasta essa possibilidade, diz que "nunca se sabe", mas não vai mais longe, duvidando que quando a oportunidade chegar ainda esteja na ribalta das TV, no comentário semanal. Por agora, dar "alguns palpites", confessa, está-lhe na "massa do sangue, no ADN", e a atividade profissional não chega para se sentir realizado, daí a insistência no comentário televisivo.
O Comilão
› 2 águas
› 2 lulas grelhadas
› 2 cafés
Total: 29 euros