"Claro que me chamo Catarina por causa da Catarina Eufémia"
Há quanto tempo tem gatos?
O primeiro foi a Margarida Pinto Correia que me deu quando eu trabalhava no Correio da Manhã Rádio. Ela tinha uma gata chamada Sue Ellen que teve um gatinho e ela levou-o assim sem mais nem menos para a rádio e disse: "Toma." E vivi com essa gata muito tempo. Chamava-se Stay Free.
E agora são três. Como se chamam?
A Bambolina, a Espreguiça, que é filha da Bambolina, e o António, mais conhecido por Totó, porque é um bocadinho totó às vezes, coitado.
Anda há anos a dizer que vai fazer um livro sobre o Frágil. Que livro é e por que demora tanto?
[Ri] Se calhar o melhor é perguntar ao Manel [Reis, criador do Frágil e atual coproprietário do Lux-Frágil]. Há dez anos ajudei-o a organizar todo o material que tinha do Frágil - existe uma coleção de vários milhares de slides que são muito interessantes para perceber aquele tempo e aquele momento. Estávamos a pensar fazer o livro, mas depois não era a altura certa para o Manel, não era a altura certa para mim...
O que é que guarda dessa Lisboa?
É a minha adolescência. Fui ao Frágil na noite da inauguração [em 1982]. Tinha 13 anos e fui porque a minha mãe e o meu padrasto, o Afonso Howell, foram convidados para a inauguração. Bebi um sumo de laranja e vim-me embora, não foi uma grande saída à noite. Mas quando comecei a sair à noite, passados três anos, foi ao Frágil que comecei a ir. Porque o Alfredo [o lendário segurança/porteiro do Frágil] me conhecia e achava melhor estar ali dentro. E na altura aquilo era tudo uma grande aventura... Corresponde ao momento em que saí de casa para viver com o meu irmão Miguel na casa onde nasci - onde também funcionava uma revista, a Contraste, e portanto tudo aquilo era uma simpática república, cheia de gente a entrar e sair a todas as horas -, ao momento em que comecei a namorar... E portanto era um período de descoberta, em que não sabia bem o que queria e não queria, andava à procura. Sabia que havia umas coisas que não queria...
O quê?
Não queria... Por exemplo, tinha muita facilidade de escrita e achava que por exemplo não queria escrever em termos profissionais, porque achava que isso me era demasiado fácil. Claro que no dia em que comecei a escrever profissionalmente percebi que não era. Aí foi todo um drama, sofria imenso, não dormia. Outra coisa: não quis ir para a universidade, coisa que na altura chocou imenso a minha mãe. E ela reagiu muito a isso durante muito tempo. E nos últimos dois anos do liceu resolvi que queria fazer chapéus. Pode ser olhado como um ato de rebeldia numa família de intelectuais.
Porquê chapéus?
Na casa dos meus avós paternos, em Vila Viçosa, havia imensas caixas de chapéus a que achava muita graça. E percebi que a chapelaria de alta costura ia morrer em Portugal. E também que se aprendesse esse ofício ia ter sempre trabalho. E nas tardes em que ia para o ateliê da minha mestra e ficava com ela numa marquise da Calçada do Combro com ela a contar-me histórias aprendi também que a atividade manual, que era uma coisa que sempre adorei fazer - no liceu passava as aulas de Filosofia a bordar, e às vezes havia um verão em que aprendia a fazer flores de papel, porque ia a Campo Maior -, me deixava a cabeça muito livre...
Continua a fazer essas coisas?
Muito pouco. Às vezes ainda me dá para bordar e tal. Mas fiz isso muito no início da Vida Portuguesa, em que fazia tudo à mão: as caixas, aparava o papel, encaixava as coisas, colava autocolantes, fazia a parte gráfica... De tudo um pouco.
Ainda sabe fazer chapéus?
Não, já não sei nada. Aliás, nunca fiz chapéus profissionalmente, só para teatro, e foi porque a Vera Castro [cenógrafa e figurinista, 1947-2010] passou uma hora dentro de um carro a tentar convencer-me. E houve uma altura em que a Ana Salazar me convidou para fazer chapéus e eu disse "nem pensar, sou uma aprendiz, está louca?" Mas coincidiram várias coisas nessa minha decisão de não ir para a universidade. Fui fazer exame do 12.º ano e zanguei-me muito porque aconteceu uma coisa que achei muito injusta. Estava no exame de Francês, que para mim era muito fácil, e usei na prova uma coisa que usávamos no Liceu Francês, que era tinta corretora branca, para escrever por cima. E uma professora veio dizer-me que o exame nem sequer ia ser corrigido por causa disso. Passei 45 minutos a passá-lo a limpo, o que fez que não tivesse tempo de fazer composição final. E achei que não queria aquele sistema de ensino que tinha regras que considerei muito estúpidas. Deu-me uma grande fúria, e achei que podia fazer as coisas à minha maneira. Sempre achei que podia fazer as coisas à minha maneira. Às vezes correu bem, noutras não.
Conseguir fazer isso também tinha a ver com as condições materiais. Tinha um sítio para viver...
Sim, era uma casa que estava alugada com uma renda relativamente baixa que dividíamos por todos... E foi aceite pela minha mãe e pelo meu pai que fosse viver com o meu irmão Miguel, porque estava numa fase bastante rebelde. A mesada que o meu pai dava à minha mãe passou a dar-me a mim. Ela pagava-me o passe e tinha de me virar. Tinha um sistema de almoços e jantares planeado com as minhas tias e depois comecei a ganhar dinheiro aos 18. Deixei os chapéus por isso, porque o ateliê não me podia pagar.
Foi para O Independente.
Sim. Mas por acaso. O meu irmão trabalhava lá, o meu namorado também e passava lá o dia, numa altura em que andava a perceber o que ia fazer à vida. E se era preciso fazer não sei o quê pediam-me. Um dia lembrei-me de que se devia fazer uma secção sobre os lugares fora de horas e o meu irmão disse: faz tu. Depois concorri ao Correio da Manhã Rádio, fui convidada para a Marie Claire... Sobretudo achei que tinha de sair do Independente. Para saber se valia alguma coisa tinha de sair daquele meio protegido.
Mas transportava o nome do seu pai, o parentesco com o seu irmão. É um salvo-conduto, há um certo privilégio. Tem noção disso.
Dá para tudo. Mas claro que sim. É um privilégio ter nascido naquela altura, naquela família, neste sítio. Mas por outro lado não acho que a educação que tivemos tenha sido privilegiada. No sentido de termos sido sempre muito responsabilizados, qualquer um de nós. E acho que qualquer um de nós sempre procurou muito a sua independência. Em termos económicos, ideológicos, etc. Mas, também, estamos a olhar hoje para o passado. As condições no passado não eram exatamente essas. Sim, o Paulo tinha 25 anos e tinha feito um jornal, mas podia acabar no dia seguinte. Sim, o Miguel estava no PC, e a sair do PC, mas não estava à cabeça de um partido. Sim, o meu pai tinha estado no governo durante um ano, em 1975, e tinha ido à vida dele, para Madrid, trabalhar, tinha ido para o Porto...
Há a ideia de que pertence a uma casta. Resulta em coisas como no outro dia um taxista ter-me dito que é dona de todos os tuk-tuk.
[Ri]. Sim, e outro disse-me: "Ainda no outro dia vinham aqui uns clientes a falar de si. A dizer que o António Costa lhe tinha oferecido os quiosques da avenida, a si e ao neto do Humberto Delgado." Lá expliquei ao senhor que de facto não só não explorava os quiosques da avenida como não tinha quiosques oferecidos, tinha concorrido a um concurso público, e que nem fazia a mais pequena ideia de quem fosse o filho do Humberto Delgado. As pessoas dizem o que lhes apetece.
Tem a mania? Há uma entrevista em que diz que as pessoas lhe dizem que é hiperarrogante...
Isso sucedeu muito nos primeiros tempos da TV, quando era sobretudo tímida. Mas não acho que seja arrogante. Nem que tenha a mania. Tenho algum desprezo pelo facilitismo, tenho algum desprezo pelas coisas mal feitas. Mais do que desprezo, tenho pena. Das oportunidades perdidas. De não se fazerem as coisas bem. A TV para mim foi uma grande aprendizagem e foi um bocado violento também. Porque o jornalismo que eu gostava de fazer era um jornalismo em que a jornalista se apagava o mais possível para dar espaço à pessoa.
O jornalismo de O Independente não era bem isso.
Na verdade, nunca fiz bem jornalismo no Independente. Escrevi alguns textos... E a Maria Elisa [primeira diretora da Marie Claire portuguesa] leu um desses textos, e como andava à procura de pessoas... Mas fiquei um bocado viciada em projetos novos. Fui para o Independente, que estava a começar, onde todos os dias se discutia o que devia ser um jornal, depois fui para uma revista feminina que estava a começar - a Marie Claire - e depois...
Não esteve também na Kapa [revista lançada em 1990, dirigida por Miguel Esteves Cardoso]?
Era para ir mas a Kapa publicou um texto que achei horrível e disse que não ia por causa disso. Era um texto de homens anónimos a falarem sobre mulheres. Absolutamente nojento, hediondo.
Machista, portanto. Já era feminista à época? Com consciência ou sem?
Com alguma consciência, certamente.
Mas essa é a época em que muitas mulheres jovens acham que o feminismo já não faz sentido. Que a igualdade estava na lei e que a partir daí era cada uma por si.
Não, não. Nessa altura ainda não tínhamos mudado todas as leis. Por exemplo, a da interrupção da gravidez. E o primeiro referendo, em 1998, foi um momento absolutamente central na minha vida. Quando o não ganhou zanguei-me horrivelmente com o meu país.
Pensei que ia dizer "com o meu irmão [Paulo, então líder do CDS, que fez campanha pelo não]".
Também. Ficámos sem nos falar durante algum tempo. Zanguei-me muito com ele. Por várias coisas que ele disse, porque aquilo era uma coisa que me tocava.
Foi uma das pessoas que nessa altura admitiram já ter abortado. É uma coisa muito íntima - não costuma falar da vida privada.
Não falo. Foi uma coisa que a TV me ensinou. No dia em que abres um bocadinho a porta nunca mais a podes fechar. Mesmo esta entrevista é uma coisa que eu não faço muito. Dou entrevistas sobre o meu trabalho, sobre coisas que faço, não sobre mim. Não é uma coisa que me deixe muito à vontade.
Ainda escreve?
Quase nada.
Antes de começar a escrever profissionalmente escrevia para si?
Escrevia. Quer dizer, não escrevia muito para mim no sentido em que nunca pensei em escrever ficção, por exemplo. Sempre achei que era uma fasquia altíssima e jamais lá poderia chegar. E sobretudo houve uma altura em que percebi que a realidade era tão ou mais fascinante do que a ficção, coisa que não foi muito clara para mim durante muitos anos. Vivia num mundo muito literário, porque às tantas a minha mãe foi estudar para fora e levou-me e eu estava sozinha e foi a altura em que comecei a ler.
"Dos 6 aos 16 li sem parar."
Sim. Os meus amigos eram os livros. Lia tudo o que me aparecia à frente com palavras, numa língua que entendesse mais ou menos.
Primeiro Londres, depois Paris.
Estive menos tempo em Londres que em Paris. Havia livros infantis em França extraordinários, que ainda não havia muito cá, mas além disso lia tudo - tanto as Enids Blytons no início como as Bovarys aos 12. Ou Eça, que eu amava. E comecei a estranhar muito o mundo quando comecei a vivê-lo mais do que a lê-lo. Porque achava as pessoas muito pouco coerentes. Nos livros as personagens têm lá o seu caminho. E olhava para as pessoas no mundo e o caminho delas não me era de todo claro, como nos livros.
E a si própria, via-se coerente? E agora?
Sei lá. Por acaso acho hoje em dia a minha vida mais coerente, se calhar. Mas não sei. Sempre adorei recomeçar. Recomeçar uma profissão, recomeçar várias coisas na vida. Montar as coisas de novo, começar de novo. Até houve uma altura em que pensei que estava viciada nisso. Ao fim de um tempo, quando achava que já sabia fazer aquilo, entediava-me mortalmente. Gosto de fazer reset: "Estou farta disto, já não estou a aprender nada. Vou fazer outra coisa qualquer."
Acha que lhe vai suceder também com o ser empresária?
Quando comecei o projeto fiz um plano para sete anos. Findo isso ia fazer outra coisa. Já lá vão dez. Porque isto permite-me ir para diferentes lados. Não só me permite usar o que aprendi nos sítios todos por onde andei como de repente este projeto me pode levar aonde muito bem quiser. Ou seja, posso ir fazer filmes ou livros, coisas que já fiz muito na vida, como posso voltar a fazer TV a partir daqui, como em princípio vou voltar a fazer...
Vai?
Vou, no próximo mês vou começar a gravar uma série sobre fábricas antigas. São 16 visitas. Não pretende ser um programa cultural, nem apenas um programa de economia, nem propriamente um magazine de história, mas tudo isso ao mesmo tempo. Pretendo falar com as pessoas que decidem a estratégia da empresa e com as que lá trabalham. É isso que é muito interessante e para mim foi um mundo novo que descobri, o da produção portuguesa. O projeto da Vida Portuguesa serviu-me para me reconciliar com o meu país, para o descobrir.
Precisava de se reconciliar?
Precisava. Tinha imensos problemas com Portugal, imensos. Desde logo o de 98 [a derrota no referendo]. E uma coisa que me fez muita impressão: achava que os portugueses estavam muito divorciados da sua história, ou pelo menos bastante amnésicos. Não sei se é pela dimensão do país, porque puxa-se por uma coisa e vai-se dar logo ao primo de não sei quem. Mas fazia-me muita impressão que se falasse tão pouco do período salazarista e da altura do PREC e da revolução. Vi documentários dessa época e pensei: porque é que isto está guardado numa gaveta? Por que é que um filme como O Bom Povo Português [documentário de Rui Simões, filmado entre 25 de abril de 1974 e 25 de novembro de 1975] só passou na Cinemateca ao fim de quê, 25 anos? De repente percebi que havia um passado um pouco mais distante e outro mais próximo que de alguma forma estavam sequestrados pela geração anterior.
Foram as gerações anteriores que o sequestraram, ou as posteriores que não se interessaram?
As duas coisas. Também era preciso distanciamento histórico. E se calhar é mais rápido e fácil num país grande. No fundo, eu passei pela revolução com 5 anos. É uma coisa que me marcou imenso, de muitas maneiras. Todo o meu mundo se revolucionou também nessa altura. Vivia com um pai e uma mãe que não eram casados, que tinham rompido com a sua religião, com muita coisa, para estarem juntos e que tinham vidas políticas antes e depois do 25 de Abril. E houve essa grande mudança e eles acabaram por se separar nessa altura.
Tem memória do 25 de Abril?
Tenho. Lembro-me perfeitamente do parlatório de Peniche, íamos ao fim de semana visitar o namorado da minha tia Isabel, irmã mais nova da minha mãe. E na própria noite de 26 estava em Peniche quando foi a libertação dos presos políticos. Passámos primeiro em Caxias e depois em Peniche, é uma memória visual que nunca esquecerei. Foi a primeira direta da minha vida, a primeira vez que vi nascer o Sol. Mas sobretudo foram aquelas horas de espera, a gritar, e o momento em que ele saiu. O júbilo, a alegria, a felicidade. Pôs-me às cavalitas dele. E depois a minha vida mudou muito, nos anos que se seguiram, estudei no sistema francês e os dois último anos eram dedicados ao século XX, e acabavam anteontem. E quando fui olhar para o programa de História do ensino português fez-me muita impressão. Porque o 25 de Abril praticamente nem existia. Era um século XX instantâneo. E eu era basicamente ignorante da história do meu país. E foi quando decidi ir a Goa, quando descobri Goa - fui fazer um livro em Goa, onde tinha ido pela primeira vez aos 21, pela Marie Claire, e a Inês Gonçalves [fotógrafa] também tinha ido e encontrámo-nos e dissemos "que raio de terra é aquela, que é que ali se passa"...
Chegou a Portugal por Goa.
Sim, reconhecia que havia ali um Portugal de uma forma muito estranha, uma série de pequenos sinais portugueses, muitas vezes já completamente invadidos, transformados, encarados de outra forma... E comecei a ler sobre a colonização, que foi uma das minhas grandes questões com Portugal. Porque, por um lado, estava muito chocada com o que o meu país tinha sido capaz de fazer, mas, por outro lado, também percebi, porque Goa estava parada no tempo, ao fim daquele choque e reflexão, que o passado não há como mudá--lo. Há como lembrá-lo e como tentar compreendê-lo para não o repetir na fase pior e tentar melhorá-lo nas fases melhores. Portanto, o meu primeiro embate foi a colonização, e depois houve esse embate também do primeiro referendo do aborto, em que uma das coisas que me chocaram foi o alheamento das pessoas em relação às suas próprias vidas, e de como a política era uma coisa que distanciavam da sua vida quotidiana. As pessoas foram para a praia! Quantas amigas minhas que tinham passado por isso mais do que uma vez, e estavam na praia.
Nunca se absteve?
Sempre votei. Sempre. Nunca gostei particularmente de partidos - sempre tive aquela coisa do meu instinto de sobrevivência e independência...
O que é muito interessante na convivência com os seus irmãos.
Eu achava que aquilo os agarrava. Os primeiros anos do Miguel no PC, por exemplo. Passei horas, dias, meses com discussões partidárias em casa. E em geral quem se chateava mais era obviamente a pessoa socialista e a pessoa comunista, que eram o meu pai e o meu irmão Miguel.
Os grandes inimigos que agora de repente se aliaram. Como viu esta aliança tão inesperada? Ou não lhe era inesperada?
Claro que era inesperada para quem passou 30 anos à espera de que a esquerda se organizasse, chegando ao ponto de deixar de esperar totalmente. E acho que só o Costa era capaz disto, de facto. Mas eu já não tinha muita esperança. E acho extraordinário que ele tenha conseguido.
E o seu irmão Miguel não viu.
Tenho pena. Acho que gostaria de ter visto. Não me posso pôr na cabeça dele, mas com António Costa havia toda uma proximidade... E o Miguel trabalhou com Jorge Sampaio na câmara... Havia muitas ligações. E sim, gostaria imenso de ouvir o Miguel comentar esta situação, olhar para ela.
Como começa o interesse pelos produtos portugueses?
Houve um dia em que de repente achei que... Aquela coisa que se diz: pode haver extraordinárias maravilhas tanto no fundo do nosso quintal como do outro lado do mundo. Já conhecia as do outro lado do mundo, onde estavam as do meu quintal? E para mim foi começar a descobrir, a procurar, a saber. A dedicar-me às coisas portuguesas.
Começa com uma reportagem?
Nem foi uma reportagem. Havia um número com um especial 10 de Junho e dei a ideia de fazer um shopping com os produtos antigos portugueses baseado na Causa das Coisas do Miguel Esteves Cardoso. A Maria Elisa aceitou, e passei umas semanas atrás de imensas embalagens que achava anacrónicas. E hoje em dia para mim a loja é um ponto de partida para quem queira descobrir Portugal. Por isso tem uma livraria... E por isso lá estão os livros da escola primária do tempo do salazarismo, como estão os cartazes do 25 de Abril. E recebemos críticas de um lado e de outro, há quem diga que somos uma loja fascista porque temos aqueles livros da escola primária, que eu acho importantíssimos para se perceber imensa coisa. No outro dia uns clientes zangaram-se muito porque na loja do Intendente temos um cartaz na parede, de chocolate ou coisa parecida, dos anos 20, e que tem uma figura negra a servir uma mulher, que está deitada e que é branca. É um cartaz interessante graficamente mas está lá porque também quero que as pessoas se confrontem com isso: este foi o nosso passado. Não é um passado do qual nos devamos orgulhar, mas não acho que se deva escamoteá-lo. É óbvio que não vou pôr um cartaz do regime salazarista ali na loja. Mas há pequenas coisas com as quais as pessoas se devem confrontar.
Tem os livros da escola salazarista. Livros de propaganda.
Completamente. Já não usei aqueles livros, os meus já não eram tão sinistros. E tudo aquilo era completamente estranho para mim. Vinha de uma família em que a minha mãe tinha decidido que não me ia batizar, ou dar qualquer espécie de educação religiosa.
Mas ela era católica.
Sim, tinha estado ligada ao Graal [movimento católico progressista, fundado em Portugal por Maria de Lourdes Pintasilgo e Teresa Santa Clara Gomes]... O meu pai também era. E quando se apaixonaram, a minha mãe era solteira mas o meu pai era casado. E, como não havia divórcio por causa da Concordata, para eles foi uma enorme rutura. Eu tinha uma cédula que dizia "filha ilegítima". E nas escolas onde andei era a única cujos pais não eram casados. E depois era praticamente a única cujos pais eram separados. E também não era religiosa. Portanto, todo o mundo daqueles livros era para mim estranhíssimo. Quer dizer, eu em 1975 ia com a minha mãe para Baleizão, numa camioneta de caixa aberta, visitar a campa da Catarina Eufémia. E tinha livros infantis maoistas em Inglaterra.
Não se chama Catarina por causa da Catarina Eufémia, ou chama?
Claro que me chamo Catarina por causa da Catarina Eufémia. Como a maior parte das Catarinas da minha idade filhas de pais progressistas. E estive mesmo para me chamar Eufémia. Mas a minha mãe à última da hora achou que se calhar era um bocadinho excessivo, e ficou só o Catarina [ri].
Tem ideia de como se formou??????? o seu gosto?
Sei de algumas coisas. Há uma casa importante na formação do meu gosto, que é a casa de Vila Viçosa, dos meus avós. Há obviamente a minha mãe, que sempre gostou de artesanato. E também passou muito pelo meu padrasto, o Afonso, porque gostava de colecionar antiguidades e aprendi imenso porque lia tudo o que tinha letras que estava à minha frente e também lia aqueles livros gigantes que ninguém lê sobre tapetes persas e não sei do quê. Chegava a casa e punha--me a ler aquilo e ia com uma lupa ver o tapete que estava lá em casa, contar os pontos. Essa coisa da curiosidade e de perceber. O Afonso teve muito a ver, mesmo se o gosto dele não tem nada que ver com o que é o meu gosto hoje: gostava muito de dourados, do século XVIII... Eu gosto de coisas mais simples. Mas abriu-me esse mundo. Aprendi a olhar para as peças. E sobretudo acho que me ensinou o potencial das histórias que contém um objeto. E gosto dos produtos e gosto de objetos porque eles contam histórias. É preciso é saber encontrá-las, depois. Acho que se a Vida Portuguesa não desapareceu no meio de tantas coisas semelhantes que foram aparecendo tem a ver com a investigação. De irmos sempre conhecer mais uma fábrica, aquela coleção daquele colecionador, procurar no lixo não sei onde...
Tem falado muito de Lisboa e do boom turístico.
Vamos lá a ver: ninguém tem mais interesse em que o turismo de Lisboa continue do que eu. Neste momento dou emprego a 40 pessoas porque mais de metade do que vendo é para turistas. Ganho a vida com o turismo, e por isso me preocupa. Porque temos de antever e organizar as coisas à medida que elas vão acontecendo. É óbvio que tudo isto que aconteceu tem a ver com a crise, com o investimento estrangeiro em Lisboa, com a lei das rendas, com imensos fatores. A razão de ser disto não tem nada a ver com o terrorismo, não é por aí. Lisboa sempre foi uma cidade maravilhosa e isto tinha de acontecer mais dia menos dia. E a cidade foi tornada muito apetecível. Os primeiros anos de Costa na câmara melhoraram muito a cidade, o espaço público da cidade. Lisboa era uma cidade que vivia muito pouco na rua e foi-se tornando atrativa de muitas formas. Houve vários tipos de instrumentos de política municipal que foram usados e muito bem usados nos primeiros anos de Costa. Mas hoje não consigo perceber qual é a estratégia da câmara, sinceramente. Dizer "venham eles e vamos ser muito felizes" parece-me curto. Isto está a acontecer e a câmara não pode ficar apenas deslumbrada, tem de dar respostas. E devia estar muito mais atenta, e sobretudo medir o que se está a passar. Precisamos de números. Houve um estudo anunciado há um ano. Onde é que está? Este é um momento absolutamente excecional e tem de ser usado a bem da cidade, e não é apenas recuperar casas.
Tem denunciado a destruição das lojas antigas.
Abri uma loja há dez anos num sítio comercial histórico, o Chiado. Que não era na altura nada do que é hoje. Não havia vivalma à noite no Chiado. Aliás, a maior parte das lojas nem abria ao sábado à tarde, quanto mais ao domingo. Mas ter chegado ali e encontrar muitos dos comerciantes antigos foi uma experiência muito boa, de conhecer e perceber aquele bairro e aquela dinâmica comercial. E de repente comecei a ver aquelas lojas a fecharem. Aquilo que mais me indignou foi a destruição de interiores de lojas antigas para as transformar em lojas de centro comercial. Porque isso é uma riqueza das cidades. As lojas são particulares mas é uma riqueza que é de todos. E de repente tudo isso estava a desaparecer, coisas que nós tínhamos e muitos outros já não tinham. A minha mãe costuma contar-me que quando comprava artesanato nas feiras dizia: "Vamos comprar isto antes que isto acabe; vamos comprar isto para isto não acabar." E depois assisti à morte da minha chapeleira. À morte da casa, não dela. E isso marcou-me imensíssimo, porque com elas acabava aquela transmissão de saber.
Assistiu ao final de um mundo.
É. Assisti ao final de um mundo, como já tinha assistido em Goa com a invasão turística. Esta coisa de resgatar mundos perdidos foi uma coisa que acabou por ficar comigo. Sobretudo porque não acho que seja preciso inventar o que está inventado. Acho que temos imensas coisas novas para inventar, mas há muitas que também não devemos perder. Aliás, tenho muita desconfiança em relação ao progresso, para citar Paulo Varela Gomes, que se definia como um radical conservador. A razão de fundo disto, do que faço, o meu interesse, não é vender farinhas alimentares ou cadernos ou vender lápis. O fito da coisa é no fundo trazer um pouco mais de justiça ao mundo, e essa justiça é social, é económica, tem a ver com os pequenos e os médios. Tiro um salário da Vida Portuguesa e nunca tirei mais do que isso, estou sempre a reinvestir. Em lojas novas e criando postos de trabalho novos. Partilho bastante também a estratégia com as pessoas da empresa. Estamos todos no mesmo mundo e temos de saber para onde vamos. Para mim um emprego não é só um emprego, é também o que decides fazer com a tua vida, em prol da comunidade ou não. Pode ser um coisa puramente pessoal, mas já agora que seja útil também.