Celso Leal: "É estranho que não se discuta a castração química em Portugal"
"Em Portugal é a prisão a única medida para um agressor sexual compulsivo; nada será feito para resolver o verdadeiro problema daquele cidadão e das vítimas." Celso Leal, procurador do Ministério Público, avalia assim o tratamento dado aos abusadores com parafilias. Por isso, estudou a castração química, já usada em dezenas de países, e propõe esta medida - o uso de medicamentos inibidores para impedir a relação sexual. Sempre de forma voluntária, com consentimento do agressor, e reversível , só funciona durante o tempo em que é aplicado. E sempre com acompanhamento médico, no mínimo durante dois anos. Reuniu tudo no estudo jurídico "Crimes Sexuais e Castração Química no Ordenamento Jurídico Português - Fim de um Tabu?", recentemente publicado.
Quando iniciou a abordagem do tema da castração química partiu com a ideia que o tema é tabu em Portugal?
Parti com a ideia errada, com a ideia que não seria possível e quando comecei a investigar descobri que era um maravilhoso mundo novo. Desde o século passado que internacionalmente isto discute-se e de uma forma séria, com estudos científicos e que demonstram claramente a eficácia deste tipo de tratamento. A reincidência reduz-se radicalmente com este tipo de terapia. Por isso mesmo entusiasmei-me com o estudo do tema. Acho que vale a pena discutir esta questão, porque os próprios agressores sexuais precisam de tratamento e não queremos mais vítimas.
O tabu é na sociedade ou nas classes que mais responsabilidades têm neste tema, como médicos e políticos?
Diria que é um pouco de tudo. O nome em si, castração, assusta a pessoa. Há mecanismos mentais que trazem alguns alertas em relação ao termo castração. E a castração química nada tem a ver com isso. As pessoas não estando informadas sobre o que é, é muito difícil criar uma opinião para isto. Do ponto de vista médico, as pessoas que defendem a castração química não falam muito. A própria Ordem dos Médicos não faz um único comentário relativamente a isto porque não é fácil tomar uma posição. Na classe política, já houve um movimento na década de 1990 que levou o tema à Assembleia da República mas o que é certo é que nunca chegou a ser discutido.
Que agressores poderiam estar sujeitos a este tratamento? Haveria sempre uma avaliação?
Depende da forma como fosse aplicada. Só seria aplicada a um condenado. O que sugiro, para não haver uma rutura em relação ao sistema jurídico português, é que inicialmente se aplicasse no âmbito da liberdade condicional. Isto significa que seria condenado em julgamento, iria para a prisão e depois quando estivesse próximo da liberdade condicional aí seria feita a avaliação, se iria necessitar do tratamento. Se for o caso, dois meses antes, é o que é recomendado internacionalmente, iniciaria a terapia. A terapia iria perdurar durante a sua liberdade condicional.
Mas uma avaliação seria no julgamento ou posteriormente?
A avaliação começaria dentro da cadeia e se for elegível, se tiver um desvio de comportamento ou uma parafilia que justifique a aplicação, aí sim. Nem todos os agressores são elegíveis.
Referiu na apresentação do livro o caso de um condenado que pediu tratamento durante o julgamento. Era a sua primeira condenação?
Sim, mas não interessa se é reincidente ou não. As cifras negras são elevadas, muitas vezes este tipo de agressores é difícil de ser descoberto. Quando se fala de taxas de reincidência, estamos a esquecer que há muita gente que nem sequer entra no sistema penal e que é agressor sexual. O que pretendemos é que as pessoas que sentem que têm algum impulso - o agressor sente que não consegue controlar e por isso é que muitas vezes pede ajuda. Em Portugal não temos forma de ajudar. Sei que há muitos escritórios de psiquiatras, privados, que têm consultas fora do sistema penal e que estão a auxiliar com este tipo de ajuda. Mas isto é fora do sistema penal. Procuram e são tratados assim.
Estudou vários sistemas de castração química, cuja aplicação acontece em diferentes países e sistemas...
Não há um único continente em que não se aplique.
Há algum modelo que seguiu?
Diria que é uma miscelânea de todos e que se insere no nosso sistema constitucional. A questão do acordo do visado é para mim fundamental, há países em que nem sequer é pensado. Na Califórnia, onde foi a primeira lei, é indiferente se dá ou não o consentimento.
Na União Europeia há vários países a aplicar
Claro. Em França, com uma lei de 2005, foi introduzida a castração química como solução e ainda num âmbito de tratamento mental.
Que balanço das reações que teve até agora após o anúncio deste livro?
Diria que as pessoas foram apanhadas desprevenidas. Na verdade, pensam em algo muito mais violento do que aquilo que realmente é. E quando começam a perceber o que aqui está, normalmente aderem porque percebem que isto pode funcionar. Quem se informa sobre a terapêutica envolvida, verifica que vale a pena apostar.
Mas há do lado da classe médica reservas, sobretudo de pessoas ligadas ao estudo dos abusadores sexuais, afirmando que o problema é sobretudo mental?
E é verdade. O professor Rui Abrunhosa Gonçalves foi a primeira pessoa que ouvi a dizer isso, que o problema é do pescoço para cima. E é verdade. A questão é que isto não é uma terapêutica que se aplica só ministrando uma injeção e a pessoa fica tratada. Não é assim. O tratamento tem de ter uma vertente cognitiva-comportamental. Ou seja, a parte do medicamento é reduzida relativamente ao resto do tratamento que é preciso, o tratamento mental, efetuado por profissionais de saúde, psiquiatras. A pessoa tem de adotar comportamentos que sejam aceites pela sociedade e só assim é que pode ser tratado.