1985 o ano que lançou Cavaco, por Ferreira Fernandes
Cavaco Silva já tinha sido ministro das Finanças de Sá Carneiro, mas saiu na morte trágica do líder. Voltou em 1985, quando o PSD, mera carruagem num governo liderado por Soares, se via condenado a ser muleta do candidato presidencial Freitas do Amaral. Visitamos esse ano de viragem como se de memórias próprias se tratasse
[artigo:5065170]
Lembro-me que... Cristiano Ronaldo nasceu em fevereiro de 1985. Os 31 anos que já passaram mostram como tão curto tempo é suficiente para alguém nascido pobre tornar-se estrela mundial. O pai deu-lhe o nome de Ronaldo só porque Ronald Reagan acabara de tomar posse na Casa Branca (2º mandato). Nesse ano, Cavaco Silva também foi empossado, primeiro-ministro, mas só em novembro. Cristiano Ronaldo nasceu no Funchal, na freguesia de Santo António, onde os confins se chamam Boliqueime. Se o miúdo tivesse nascido em dezembro, as camisolas "Aníbal Ronaldo" dariam hoje muito dinheiro.
Lembro-me que... Mikhail Gorbatchev se tornou líder da URSS. Viria a ser o último, mas nessa altura ainda se pensava que ele era só um inventor de palavras. As com mais sucesso, ele lançou-as em março: perestroika (reestruturação), dedicada à economia, e glasnost (transparência), para cultura e política.
Lembro-me que... no começo do ano havia um governo de Bloco Central, PS/PSD, com Mário Soares a primeiro-ministro e Mota Pinto, líder social-democrata, a vice-primeiro-ministro. Na oposição, o CDS, com Lucas Pires como líder, e o PCP, de Álvaro Cunhal. Na verdade, o confronto era outro. Sobre o discurso do Ano Novo do Presidente, o DN titulou: "Ramalho Eanes assume-se como chefe da Oposição e não como chefe de Estado."
Lembro-me que... a RTP 1 abria às 18.15 e fechava com o último ?telejornal às 23. E a RTP 2 abria às 20 e fechava com a telenovela das 22, durante a semana, ou com um filme, ao domingo. Eram as únicas televisões em Portugal.
Lembro-me que... o DN custava 30 escudos (15 cêntimos). No tradicional concurso de quadras do DN, ganhou esta: "Lê o pobre, lê o rico/Lê o velho, lê o moço/ Pois é tão indispensável/ Como o pão para o almoço."
Lembro-me que... o voo dos preços era o que mais preocupava o país. Logo em janeiro, dispararam a gasolina e o açúcar (mais 10%), os comboios e os táxis (20%), telefone (mais 25%. O Diário Popular fez as contas: em 1975, no telefone, o período custava 1,5 escudos e a assinatura, 100 escudos; dez anos depois, custavam 5 e 15 vezes mais, respetivamente.
Lembro-me que.. os banqueiros naquele tempo corriam riscos. A D. Branca, banqueira do povo, estava presa desde outubro de 1984.
Lembro-me que... o DN fazia sondagens semanais. Em janeiro, pediu a opinião dos portugueses sobre os ricos: 87% considerava-os "necessários" - o Verão Quente, dez anos antes, já ia longe... Em 1985, a indignação popular deixara de ser social e era focalizada nos políticos. À pergunta sobre quem os portugueses consideravam ganhar mais dinheiro, respondeu-se: em primeiro, "os membros do Governo", em segundo, os futebolistas. O ordenado mínimo acabara de subir para 19 mil escudos (95 euros). E os dos deputado e dos ministros para 80 mil escudos (400 euros) e 140 mil (700).
Lembro-me que... morreu Charles Francis Richter, o da escala de Richter, o sismólogo. Confesso que não me dei conta dos terramotos que 1985 ia trazer.
Lembro-me que... apareceu a Fundação Luso-Americana e o ministro dos Negócios Estrangeiros Jaime Gama proclamou: "Criámos uma segunda Gulbenkian." O outro subscritor foi o embaixador americano Allan Holmes. Este foi protagonista involuntário dos prémios do Clube Português de Imprensa. Numa das fotos premiada, Holmes, durante um almoço oficial, tirava o forro dos bolsos das calças para mostrar que Portugal pusera-o de tanga no acordo sobre as Lajes.
Lembro-me que... se começou a manifestar sentimentos com os braços no ar e muito amor na voz: We Are the World (Michael Jackson, Lionel Richie e muito mais inventores da solidariedade cantada).
Lembro-me que... Mota Pinto foi substituído na liderança do partido e no Governo, por Rui Machete. O PSD estava a partir-se por causa do apoio ao Governo de Bloco Central. Entretanto, Eanes impulsionava um novo partido, o PRD. As eleições presidenciais estavam marcadas para o início do ano seguinte, e sabia-se que o ainda Presidente (que não podia recandidatar-se) tinha alguém na manga: Maria de Lurdes Pintasilgo (eanista que já fora primeira-ministra).
Lembro-me que... um advogado adepto de se candidatar a Belém (iria a cinco), Menezes Alves, disse de Lurdes Pintasilgo que "lhe faltava qualquer coisa para ser Presidente." Não disse o quê. Mas o País político riu muito e não foi escândalo.
Lembro-me que... um centro comercial no Porto foi inaugurado por um cangaceiro a cavalo. Era o ator Lima Duarte, bem amado pelos portugueses como Zeca Diabo (da telenovela O Bem Amado). No Brasil, o ator já estava noutra, uma telenovela mais política, Roque Santeiro, onde fazia de Sinhôzinho Malta (só chegaria a Portugal em 1987). No Porto, Lima Duarte fez questão de saudar Tancredo Neves, que fora eleito e punha fim ao regime militar.
Lembro-me que... o Brasil era a coqueluche portuguesa, e não só nas telenovelas. Nesse ano, depois de Elba Ramalho no Coliseu, seguiram-se Chico Buarque, Maria Betânia, Gal Costa...
Lembro-me que... apareceu o Videotex. Empresas ofereciam um armazém eletrónico, como a "cloud", hoje, a que os utilizadores, com uma televisão e um telefone tinham acesso a texto e fotos.
Lembro-me que... nos jornais se escrevia bem e com graça. A presidente do Centro Nacional da Cultura Helena Vaz da Silva publicou uma crónica no DN com título provocador: "Puten". Em alemão só quer dizer perus. Era anzol para uma anedota com moral. Dizia a Helena que dera saudades a um nosso imigrante na Alemanha e ele foi à estação de comboio: "Ein billietten iden und wolten." O homem da bilheteira: "Sprechen Sie Deutsch?" O imigrante: "Puten." Anzol feito, Helena Vaz da Silva remata: "O que fazem os cidadãos para contrariar o afundamento do País? Puten!"
Lembro-me que... a greve dos mineiros britânicos acabou, ao fim de um ano, com uma derrota. O sindicalismo europeu iria ficar a saber o que significou a vitória da Srª Thatcher.
Lembro-me que... a entrada na CEE (a sigla, então, para União Europeia) era o nosso maior desejo. Mas o socialista francês Michel Rocard, que viria a ser primeiro-ministro, avisou: "Os portugueses vão ter dificuldades após a adesão." O cartoonista Sam, pôs o seu boneco, o Guarda Ricardo, espantado: "Dificuldades?! Após?!"
Lembro-me que... se ouviu falar pela primeira vez do buraco do ozono.
Lembro-me que... a Arábia Saudita deixou cair o preço do petróleo de 32 dólares para 10 dólares. E obrigou os Estados Unidos a controlar a venda.
Lembro-me que... o PSD não sabia o que fazer para as presidenciais do início de 1986. Soares e Pintasilgo, à esquerda, e Freitas do Amaral, à direita, ocupavam os prognósticos. Órfão de Sá Carneiro - lembrança ainda mais viva por, em 7 de maio, o ainda há pouco líder, Mota Pinto, ter morrido de doença - o PSD ia fazer o seu XII Congresso, em meados de maio.
Lembro-me que... o cônsul do Brasil no Porto era João Cabral de Melo Neto. O poeta, autor de Morte e Vida Severina, tinha permitido que Portugal conhecesse, na digressão da peça, Chico Buarque de Holanda, em 1966, antes dele ser Chico Buarque de Holanda.
Lembro-me que... o Semanário, próximo do PSD e do qual Marcelo Rebelo de Sousa foi fundador e diretor, fez esta capa: "Machete apaga-se e Cavaco pode avançar." Uma sondagem do jornal explicava: "Só PS e PRD [o partido de Eanes] sobem, PSD em 4º." Sem candidato presidencial e sem partido, o PSD chegava em frangalhos às véspera do seu congresso.
Lembro-me que... Cavaco Silva chegou ao congresso - num casino de praia, o Casino Pensinsular, da Figueira da Foz - como um veraneante. Calças claras e blaser pied-de-poule. A sua mulher, de branco, acompanhava-o. Ele dirá depois que veio só para fazer a rodagem do carro. Tinha acabado de trocar o BMW por um Citröen BX (também claro).
Lembro-me que... a Citroën se aproveitou e fez um anúncio: "Um novo Citroën é sempre um acontecimento."
Lembro-me que... Cavaco precisou de dois discursos, mas ficou claro ao que vinha: queria negociar com o próprio a candidatura de Freitas do Amaral. O que ficava implícito dessa aliança, era que as coligação com o PS, o Bloco Central, estilhaçava. O partido entendeu a necessidade de cuidar de si. As presidenciais eram para esquecer; e governar, a prioridade.
Lembro-me que... o IX Governo Constitucional se desentendeu. Eanes marcou eleições legislativas para outubro. Desde julho, ele já tinha o seu partido fundado, o PRD. Mário Soares fez a assinatura da adesão à CEE, em junho. Os claustros dos Jerónimos e tanto líder estrangeiro à volta, a coroa de glória vivida ao mesmo tempo dum governo doméstico penoso. Soares dedicou-se às presidenciais, que seriam já em janeiro, e com um problema suplementar: o seu antigo amigo e camarada Salgado Zenha seria mais um adversário.
Lembro-me que... Cavaco Silva lançou uma palavra para campanha eleitoral: orçamento. "A primeira coisa a fazer é o orçamento." E falou de dossiers, em estudá-los. A conversa era números ou não era. Almeida Santos liderou o PS na campanha e falou de afetos. Conseguiu a maior derrota socialista em legislativas, 20 por cento. Os números calaram mais fundo aos portugueses. Tinham passado dez anos a ouvir conversa, queriam dez anos com números. Deram uma primeira vitória relativa a Cavaco. Iriam dar duas por maioria absoluta.
Lembro-me que... 1985 foi uma barrigada eleitoral. Nem tanto pelo número, só houve duas, mas por se ter passado o ano a pensar nelas. Por tardarem em dar cabo do Bloco Central, por mudarem radicalmente a situação política, por suspirarem pelos duelos das presidenciais e por se fartarem com as autárquicas, que também as houve, em dezembro, com recorde de abstenção. Serviram estas últimas para dizer que o PRD era fogo fátuo.
Lembro-me que... no fim do ano nenhuma análise teve em conta que o Homem do Ano tinha sido Aníbal Cavaco Silva. A História iria mostrar que o erro foi das análises e não do homem. Este carburou por décadas, para o bem ou para o mal dos nossos pecados - as opiniões dividem-se, e com este homem é manifesto. Dez anos a governar, dez anos a esperar, dez anos a presidir.