18 em 20 das declarações ocultas já apanham o atual governo 

Maioria das declarações alvo de "apagão" na máquina fiscal chegaram à Autoridade Tributária entre junho e novembro de 2015 e deveriam ter sido processadas no final desse ano

Um documento ontem enviado pelo governo ao Parlamento com as datas das vinte declarações com transferências para offshores que ficaram fora do radar da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) revela que a maioria delas deveria ter sido escrutinada já com o atual governo em funções (tomou posse em 26 de novembro de 2015).

No essencial, a cronologia funciona assim: as transferências feitas num determinado ano têm de ser reportadas à AT até junho do ano seguinte. E depois, no fim do ano, a AT trata-as, para apuramento de eventual receita fiscal.

Ora a lista revela que 14 das 20 declarações foram submetidas à AT entre junho e novembro de 2015 - e, portanto, só tratadas no final desse ano, já sendo António Costa primeiro-ministro e Mário Centeno ministro das Finanças. Essas 14 declarações reportam transferências feitas em 2014 (doze declarações), em 2011 (uma) e outra em 2013. Transferências que somam cerca de 3,4 mil milhões de euros.

Mas há mais. Já em 2016 também houve declarações reportando transferências que depois passaram à margem de escrutínio fiscal. Uma delas - uma declaração de substituição relativa a transferências feitas em 2012 - aponta para um valor de 2,8 mil milhões de euros. As outras três declarações de 2016 referem-se a transferências feitas em 2013 (12,9 milhões de euros) e em 2014 (duas declarações que somam quase 70 milhões de euros).

Ao todo, as declarações de 2016 somam cerca de 2,86 mil milhões de euros; as de 2015, 3,4 mil milhões; a única de 2014, 2,9 mil milhões; e a de 2013, cerca de 600 milhões. O quadro é claro: grande parte das transferências que ficaram por escrutinar pela AT ocorreram em 2014 - reportadas em 14 das 20 declarações que ficaram presas algures no sistema informático da AT. Indicam transferências para offshores na ordem dos 3,4 mil milhões de euros. 2014 foi o ano em que o Banco Espírito Santo colapsou (agosto) e para os deputados - sobretudo para Miguel Tiago, do PCP - este é um aspeto que não pode ser descurado na investigação do caso: perceber se o erro foi simplesmente aleatório ou se obedeceu a uma qualquer espécie de padrão.

O facto de, afinal, o essencial do problema se ter desenvolvido já no "turno" do atual governo levou ontem o PSD a começar a falar na hipótese de chamar o atual ministro das Finanças, Mário Centeno, à comissão parlamentar de Orçamento e Finanças. É uma decisão ainda por tomar. Certo é que, para já, serão convocados os dois ministros das Finanças do governo PSD-CDS: Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque (atualmente deputada do PSD). Os deputados também querem ouvir o inspetor-geral das Finanças. A IGF está a tentar perceber o que se passou dentro da AT para 20 declarações somando quase dez mil milhões em transferências terem passado sem escrutínio para apuramento de receita fiscal. O relatório deverá estar concluído ainda neste mês, segundo informou há dias o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Depois do relatório pronto, o inspetor-geral deverá ser chamado à comissão - é pelo menos esse o calendário para que aponta a maioria de esquerda.

Sem "evidência nenhuma"

Ontem, os deputados da comissão de Orçamento e Finanças ouviram a atual diretora-geral da Autoridade Tributária.

Helena Borges disse que ainda não tem "evidência nenhuma" do que pode ter levado a que quase dez mil milhões de euros tenham sido transferidos para paraísos fiscais sem controlo do fisco. "Até ao momento não temos evidência nenhuma do que pode ter provocado esta anomalia", a diretora-geral.

Helena Borges explicou que, em abril de 2016, quando as estatísticas entre 2011 e 2014 foram publicadas - uma publicação retomada por ordem do atual governo, depois de o anterior, com Paulo Núncio à frente dos Assuntos Fiscais, a ter impedido - "os números disponíveis [nessa altura] não deixavam a evidência" de que uma parte da informação não passava do sistema central para o local. A AT "fazia a fiscalização das transferências que conhecia, a partir da informação que estivesse disponível", acrescentando que foi só após a alteração do sistema informático, em junho de 2016, que foi possível detetar anomalias (o que aconteceu em outubro desse ano).

A responsável do fisco disse que a atualização do software "não foi uma decisão estratégica", mas que decorreu de se ter "aproveitado o momento para introduzir atualizações tecnológicas", depois da publicação de uma portaria que alterou o modelo 38 (referente às declarações transfronteiriças).

Segundo a diretora-geral, o apagão nas transferências para paraísos fiscais implica sobretudo empresas não residentes em Portugal. "Este é um aspeto que me parece relevante", disse Helena Borges.

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG