Em 1975, o universo eleitoral em Portugal subiu de um milhão de pessoas para seis milhões. Como é que se constrói a opinião política, tendo em conta que, até essa altura, grande parte das pessoas não votava?Um aspeto muito interessante em todo o processo que vai conduzir às eleições para a Assembleia Constituinte é precisamente a literacia democrática. Neste processo temos, por um lado, questões fundamentais como a legislação de base que permite a realização dessas eleições ou para sinalização - toda a parte prática que vai desde o recenseamento, da construção das cabinas de voto, dos boletins de voto, materiais de propaganda, etc. - até à literacia democrática. E, de facto, temos de ter em conta que durante 48 anos, apesar de existirem eleições, essas não eram livres, nem concorrenciais, nem justas. Muitas pessoas estavam inibidas de votar e, sobretudo, existia um regime de partido único. Eram muito poucas as ocasiões em que as oposições se podiam manifestar e sempre com grandes limitações. Por isso, por regra, desistiam à boca das urnas. Em 1974 e 1975, havia a consciência de que aquelas eleições eram fundamentais para a nova ordem que se queria institucionalizar. O 25 de Abril representou a abertura das portas para a ordem democrática, mas essa ordem passava por diferentes processos, um dos quais era o ato eleitoral. Desde o início do pós-25 de Abril, desde abril de 1975, os partidos políticos tiveram a consciência das suas limitações e, portanto, muitos dos seus atores dedicaram-se a doutrinar, como eles próprios dizem.Pode dar um exemplo?Entrevistando alguns dos protagonistas, como o professor António Reis, que era um dos homens do pensamento político do Partido Socialista, e perguntando o que é que fez entre o 25 de Abril e as eleições para a Assembleia Constituinte, ele diz: “Percorri o país em ações de formação e de esclarecimento.” Portanto, uma das técnicas passou por os próprios partidos que precisavam de se afirmar, de se dar a conhecer e de ter uma projeção nacional - porque nenhum deles tinha -, desenvolverem esse contacto com as populações. Realizaram também grandes congressos nacionais. Primeiro, o do PCP, em outubro. Depois, em novembro, o PSD. Em dezembro, o Partido Socialista. Assim, os partidos deram a conhecer o seu programa, aquilo a que vinham já a pensar nas eleições. Depois, sobretudo, realizado o recenseamento, e, quando começa a campanha eleitoral, a 2 de Abril de 1975, temos ações de contacto direto. Temos o empenho da rádio, da televisão e dos jornais em ações de divulgação e da pedagogia democrática e eleitoral, informando às pessoas a importância do voto e de como se votava. Temos programas como o consultório eleitoral, em que o cidadão podia fazer perguntas e lhe eram dadas respostas sobre o que significavam as eleições, o que eram os partidos políticos e os seus programas. Também o MFA [Movimento das forças Armadas] se empenhou nas campanhas de dinamização cultural, na literacia democrática.Ainda assim, não terá sido suficiente. Uma pessoa assumiu, na RTP, em 1975, que não sabia para que estava a votar. Admitiu até que colocou aleatoriamente um ‘x’ num quadrado.É muito normal que as pessoas não tivessem bem claro qual era a diferença entre votar para uma Assembleia Constituinte, que era o que estava em causa, ou votar para um governo ou para a Presidência da República. Isso enfatiza ainda mais o que aconteceu a 25 de Abril de 1975, essa urgência das pessoas se envolverem na causa pública e na construção da democracia, que se sentiu na grande afluência e no entusiasmo que essas eleições envolveram. É normal também que, depois de 48 anos de ditadura, o grau de conhecimento e de prática política fosse muito limitado. É muito interessante verificar nesse período as múltiplas vozes que se foram erguendo referindo a falta de informação política e a facilidade com que os portugueses poderiam ser manipulados nesse contexto. A forma tão cordata e participada como ocorreram as eleições provou precisamente o contrário. Daí os 91,6% de participação.Nunca mais repetiu. É impressionante. Como é que vê a grande abstenção nos dias de hoje, tendo em conta que as pessoas dispõem de muito mais informação?Eu acho que essa é uma grande ironia da democracia em geral e da nossa. Ao contrário do que acontecia em 1974 e 1975, nós temos ao nosso alcance, com grande facilidade, todos os recursos para nos informarmos sobre as propostas, os programas dos partidos e o que está em causa em cada ato eleitoral. Em Portugal e noutras partes do mundo mostra-se um grande desinteresse e até uma descrença na eficácia da participação eleitoral. Tudo isto nos leva a pensar que é preciso recuperar essa crença no caráter pedagógico que as eleições podem ter. A democracia tem muitas formas de ser vivida e de ser participada, mas o ato eleitoral continua a ser formalmente um momento importante das ordens democráticas. Portanto penso que invocações como esta das primeiras eleições livres, e utilizar essas eleições como um exemplo pedagógico do que é participar na construção da democracia, devem ser revisitadas a cada dia.Já referiu, numa entrevista, que o 25 de Abril de 1975 é a segunda data mais importante da democracia. Quais são as outras?O momento fundador - que trouxe uma legitimidade eleitoral - e mais importante é o 25 de Abril de 1974, por tudo o que ele encerra e por todas as oportunidades que abriu. A partir daí há uma multiplicidade de datas que têm de ser consideradas. Porque muitas vezes não falamos de trabalho como o dos movimentos sociais ou mesmo do pessoal, dos militantes de movimentos, de associações e de partidos que se envolveram em iniciativas que são fundamentais para que a democracia nasça. Mas em termos formais, diria que, depois do 25 de Abril, o 25 de abril de 1975 é um ponto de referência. A partir daí, torna-se irreversível o caminho para uma democracia parlamentar baseada em eleições livres, pluralistas, concorrenciais e recorrentes. Para que chegássemos aí foi preciso superar outros dois momentos centrais, como são o 28 de Setembro e o 11 de Março. Depois disso, teremos uma outra data importantíssima, que é o 25 de Novembro. Não suplanta o 25 de Abril, mas abre as portas para a institucionalização dessa ordem democrática. Vamos ter um intenso debate entre os militares e os partidos políticos, entre a permanência da legitimidade revolucionária, a sua coabitação ou não com a legitimidade eleitoral e, depois, a vitória da legitimidade eleitoral. É a partir daí que finalmente se vai transferir o poder dos militares para os partidos políticos. E é graças ao 25 de Novembro que se vai celebrar a 2.ª Plataforma de Acordo Constitucional, que finalmente se vai aprovar a Constituição e que se vai fazer o ciclo eleitoral que vai marcar a formalização do nascimento da democracia portuguesa.Sem o 28 de Setembro, o 11 de Março e as tentativas de Spínola de adiar as eleições, teria acontecido o 25 de Novembro?Eu tenho muita dificuldade em trabalhar com a hipótese histórica, mas a pergunta mostra que há uma cadeia de acontecimentos que não se podem isolar. Daí a vacuidade de muitos dos debates que hoje se travam em torno de algumas dessas datas. Nós não conseguimos entender o 25 de Novembro se não entendermos o 25 de Abril, o 28 de Setembro e o 11 de Março. Tal como não conseguimos entender o 25 de Abril sem entendermos o que foram os 48 anos de ditadura. A história é feita de processos, não podemos isolar factos, atores, acontecimentos. Há até historiadores que relegam para um outro plano os factos. Eu continuo a pensar que, sobretudo neste período, os factos são muito importantes. E é muito interessante ver como nestes 18, 19 meses em que acontece essa revolução temos uma sensação de que a história se está a compactar. Como aqueles momentos simbólicos da história universal que começaram em 1945 com a queda de Mussolini e de Hitler, que depois continuaram no Maio de 68 e nos processos de descolonização. Portugal tenta vivê-los de forma precipitada e urgente. Tudo estava em causa e tudo foi possível. Para entendermos o 25 de Novembro é fundamental entendermos todo o processo e depois centrarmos em particular a nossa atenção a partir das eleições do 25 de Abril de 1975. O que foram essas eleições, como é que passou a ser o confronto entre a legitimidade revolucionária e a legitimidade eleitoral? O que foi a escalada até ao 25 de Novembro? A psicose golpista em que se viveu, sobretudo a partir do que nós chamamos assalto à Embaixada de Espanha. Todos os dias havia anúncios de golpes de Estado em preparação, havia provocações de um lado e do outro, dentro do princípio que os militares defendiam, de que é preciso picar o bicho para que ele saia da toca, e o primeiro a sair vai perder. É assim que se chega a esse momento de confronto de todos os projetos que estão em causa. Com o 25 de Novembro, que permite solucionar muitas das tensões revolucionárias, não se encerra o processo de construção da democracia, que ainda continua. Mas dá-se um passo fundamental para que se consiga institucionalizar a nova ordem democrática.Como é que se explica a forma como alguns partidos atualmente reagem ao 25 de Abril não como data fundadora da democracia, optando por exaltar o 25 de Novembro? Essa discussão, pensando no que são os mecanismos políticos e as práticas de muitos partidos políticos, pode ser encarada com alguma naturalidade. A verdade é que não tem correspondência histórica e, eventualmente, não traz nada de vantajoso para Portugal, para o nosso país e para a nossa memória coletiva, enquanto povo. Porque, como já referi, o 25 de Abril é incontestavelmente a data fundadora, a data que permite que tudo o resto aconteça. Não podemos desvalorizar todas as outras e o 25 de Novembro é uma peça central, também, neste processo. E há uma outra questão que nós temos que ter em conta. É que, para as gerações mais jovens, estas realidades, como o 25 de Abril e o 25 de Novembro, são, necessariamente, realidades muito distantes. E, portanto, descentrar ou descontextualizar e alterar o significado que cada momento teve é um mau serviço à causa pública e à ordem democrática. Em 1975, o PS venceu as eleições. O PPD ficou em segundo lugar e o PCP em terceiro. Como é que as pessoas não se associaram mais aos comunistas, tendo em conta que era o partido mais ativo antes do 25 de Abril?O PCP e outros partidos mais à esquerda tinham uma grande capacidade de mobilização das ruas. Parece que o resultado eleitoral não corresponde ao que existia quotidianamente nas ruas, nos comícios, nas fábricas, nas escolas. Há muitos fatores a ter em conta para obter uma possível explicação para aquele resultado. Desde logo, ter em conta o que são 48 anos de ditadura e essa doutrinação de que consciente ou inconscientemente todos eram vítimas do perigo vermelho. Estamos no mundo da Guerra Fria. Outra questão fundamental, é a forma como alguns atores políticos atuaram e como construíram a sua imagem e passaram a sua mensagem. São os casos - não são os únicos, mas são paradigmáticos - de Mário Soares e de Sá Carneiro. Mário Soares, mal regressou do exílio, foi chamado pelo então Presidente da Junta de Salvação Nacional, António de Spínola, para ir pelo mundo anunciar o novo Portugal. Isto deixou patente logo o capital político que Mário Soares já reunia. Ele foi progressivamente transformando-se interna e internacionalmente numa das figuras mais destacadas do panorama político português. E isso foi fundamental para o resultado que o PS teve. No que diz respeito ao PPD, é surpreendente. O PPD não tinha um ano de existência quando se realizaram as primeiras eleições livres. O PPD, no seu primeiro grande congresso, em novembro de 74, utiliza uma linguagem que tem termos próximos do marxismo. E, portanto, tentou adaptar-se àquele período revolucionário, ao sentir da população, mas transmitindo simultaneamente uma imagem de confiança e de credibilidade que os seus principais dirigentes forneciam à população. E é isso que fica patente neste resultado eleitoral. É óbvio que muitas pessoas não tinham consciência de que aquelas eleições eram única e exclusivamente para eleger uma Assembleia Constituinte. Não representava alterações no elenco governativo. Mas foi fundamental para legitimar os partidos políticos como peças centrais da ordem democrática que se queria construir.Como é que correu tudo tão bem quando poderia ter corrido mal?Não há uma resposta única, mas eu destacaria duas grandes dimensões. A enorme qualidade, preparação e sentido da responsabilidade dos líderes, dos dirigentes das elites políticas, militares e civis e, por outro lado, o entusiasmo, o empenho e a consciência que, na prática, os portugueses tiveram da importância do que estava em jogo. Temos, por um lado, figuras militares. É sempre injusto nomear algumas, mas não resisto a referir Costa Gomes, Melo Antunes, Vítor Alves, Costa Braz, que foi fundamental na preparação do programa do MFA. Temos líderes políticos como Mário Soares, Sá Carneiro, Álvaro Cunhal e tantos outros, Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa, que tinham sentido a sua responsabilidade e o que estava em causa, como poderia ser determinante para o futuro do país. E temos, depois, os anónimos, os movimentos, a população em geral, que se ampliou e que foi, em massa e com entusiasmo, às urnas participar neste ato eleitoral.