É engenheiro aeroespacial e tem um doutoramento em física. Como é que se desliga um pouco da vida académica para se ligar à política?A minha paixão pela ferrovia foi descoberta tarde, quando eu estava no curso de engenharia aeroespacial e, na verdade, foi numa aula, quando um professor no Técnico explicou o mecanismo de contacto entre a roda e o carril. Consigo identificar esse como o momento que despertou a minha paixão pelos comboios. Quando terminei o secundário, foi uma opção pragmática. Escolhi ir para engenharia aeroespacial. Na altura não tinha as médias de entrada estratosféricas que tem hoje. Acabou por ser uma opção pragmática. Feitos os cinco anos de curso, no final surgiu a oportunidade de fazer o doutoramento em física e eu sabia que essa era a oportunidade que tinha de aprender física como eu queria. Se não fosse nessa altura nunca mais seria. Porquê?Para uma pessoa aprender física tem que ter as bases de matemática bem frescas. Fazer o doutoramento em Física logo após um mestrado em engenharia ainda permite ter essas bases bem consolidadas. De outro modo, perde-se o treino e a curva de aprendizagem depois é muito maior.Entrou para o Governo de António Costa num período conturbado, com a saída de Pedro Nuno Santos. Está preparado para um momento difícil para o PS? Acho que os momentos são ambos difíceis, mas não da mesma forma, e não acho que sejam comparáveis. Enquanto trabalhei no gabinete do ministro Pedro Nuno Santos, a forma como o trabalho estava estruturado sempre me protegeu bastante das polémicas que iam ocorrendo. Naturalmente, uma pessoa apercebe-se do que se está a passar, porque lemos notícias, e o incómodo que causa às pessoas que trabalham no gabinete. Desde logo, uma menor disponibilidade do ministro, quando está a braços com uma polémica. É difícil dedicar atenção a outros assuntos. Isso, de alguma forma, aumentava a responsabilidade dos outros membros do gabinete. Quando Pedro Nuno Santos acabou por se demitir, e foi na sequência disso que eu depois fui chamado a assumir as funções de secretário de Estado, a minha missão era muito clara: continuar o trabalho que tinha sido iniciado por Pedro Nuno Santos e tentar levar a cabo algumas tarefas que tinham ficado por concluir, desde logo a aprovação do Plano Ferroviário Nacional, que tinha sido coordenado por mim, a preparação de todo o processo para o lançamento dos projetos de alta velocidade entre Lisboa e Porto, que, na minha opinião, é o projeto de infraestruturas mais importante que Portugal tem para fazer, pelo menos na primeira metade do século XXI. Digo com algum orgulho que conseguimos, apesar de todas as vicissitudes, depois da demissão do ministro João Galamba, e de ter já terminado nos últimos meses, a trabalhar diretamente com o primeiro-ministro António Costa. Conseguimos lançar o primeiro concurso para a linha de alta velocidade ainda antes das eleições de 2024. Portanto, havia condições difíceis. Depois, atravessámos a Comissão Parlamentar de Inquérito [da TAP]. Eu tinha uma missão bem clara. Acho que posso dizer que tenho orgulho no trabalho que conseguimos fazer ao longo desse ano. Conseguimos limpar a dívida histórica da CP, que era outro dos objetivos de Pedro Nuno Santos enquanto ministro, e, portanto, dentro das condições difíceis, acho que se conseguiu fazer muitas das coisas que podíamos fazer. A aprovação do plano ferroviário nacional não ficou concluída por nós, mas acabou por ser agora este Governo que a aprovou, e que aprovou uma versão que, salvo algumas gralhas, é a versão que tinha ficado na pasta de transição.Referiu o facto da dívida histórica da CP ter sido paga. Preocupa-o que no futuro não possa haver esse tipo de intervenções, tendo em conta a configuração parlamentar?Não podemos ter ilusões quanto a isto. Há uma parte da sociedade que não precisa do Estado para nada, que tem meios suficientes para garantir tudo aquilo que precisa na vida, para pagar saúde, para pagar a educação, para pagar o seu transporte quando precisa, com o conforto que deseja. Mas a parte da sociedade que consegue pagar isso e que nunca depende do Estado - depende sempre, nem que seja para lhe garantir o mínimo de segurança face a todas as agressões de que pode ser alvo - é uma minoria. O grande falhanço dos sociais-democratas nas últimas décadas foi permitir criar a ilusão de que o Estado é mais um obstáculo aos seus projetos de vida do que uma entidade que dá oportunidade a que as pessoas construam esses projetos de vida. A verdade é que a maioria da sociedade depende do Estado para poder construir os seus projetos de vida, para ter uma educação pública, para ter os cuidados de saúde assegurados, para a certeza de ter uma reforma no final das suas carreiras. É óbvio que toda a gente quer pagar menos impostos. Eu também quero pagar tão poucos impostos quanto possível. Mas eu não quero que o preço de pagar menos impostos seja eu ter de trabalhar até morrer. Ou ver-me a braços com uma doença grave que faz com que eu tenha de gastar todas as minhas poupanças ou endividar-me para conseguir vencê-la. Apesar de tudo, já ganho o suficiente para pagar impostos que muitos classificam como elevados, mas eu aceito isso como o preço de ter essa segurança. A CP é um exemplo disso. A dívida que o Estado pagou à CP foi a que a CP acumulou ao longo dos anos para prestar aquilo que é um serviço público. Nós estamos aqui na estação de Sete Rios, passam os comboios que vêm de Sintra. Este serviço suburbano não é lucrativo. E não é lucrativo em Portugal e não é lucrativo em parte nenhuma do mundo. Portanto, em todas as áreas metropolitanas, em todas as cidades do mundo, o serviço de transporte público é subsidiado pelo Estado. Mas o preço de ele não ser subsidiado pelo Estado era ele não existir. Se não existisse esse serviço teríamos as estradas muito mais congestionadas do que temos. Ou então teríamos também de gastar dinheiro público a ocupar muito mais espaço com estradas. Os transportes públicos são um exemplo de como a intervenção do Estado é indispensável para garantir um mínimo de equilíbrio. O Estado gasta milhões de euros por ano a garantir este serviço, sim, é verdade, mas nós ficaríamos todos muito pior, incluindo as pessoas que não usam este serviço de transporte se não existisse. Isto aplica-se aos transportes, aplica-se à saúde, aplica-se à educação, aplica-se à Segurança Social.Está preocupado com o fim do bipartidarismo em Portugal? E há algum paralelismo entre o que aconteceu ao socialismo em Portugal e em França?O fim do bipartidarismo, sim, ocorreu, mas eu hesito em aceitar a teoria dos três blocos políticos, de que há um bloco ao centro, um bloco à esquerda e um bloco à direita, que é o Chega. Até porque eu acho que no momento em que estamos, ver a política só no eixo esquerda-direita é redutor. Nós, através desse eixo esquerda-direita, por exemplo, não conseguimos explicar a transferência direta de votos do PS para o Chega, ou da CDU para o Chega, que é significativa. Isso não se explica nesse eixo político. Há aqui mais coisas a acontecer do que essa. Há aqui fenómenos, claramente, de classe. Nós hoje em dia falamos muito pouco de classes, mas há aqui fenómenos de classe a acontecer. Claramente, um dos falhanços da esquerda é ter perdido uma parte grande da classe operária. Espero que deixe de ser tabu falar de classe operária à esquerda, por exemplo. Portanto, o exemplo francês, por um lado, preocupa-me, porque diz-me que isto ainda pode afundar mais. Por outro lado, dá-me esperança, porque há sinais em França de que já se iniciou uma recuperação. Como outras coisas que estão a ocorrer nos Estados Unidos, onde temos o Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez a encher estádios em comícios contra as escandalosas desigualdades sociais e a concentração de uma enorme quantidade de riqueza numa pequeníssima quantidade de pessoas.Quando saiu do Governo, foi trabalhar numa consultora na área que tutelou. Como é que vê a existência de um regime de incompatibilidades?O meu caso é muito simples, eu saí do governo, deixei de ter um salário e preciso de um salário para viver. Fui à procura de emprego nas áreas onde tenho currículo, porque é onde as empresas podem estar disponíveis para me contratar, e fui contratado por uma empresa do setor privado, que trabalha na área que eu tutelei, sim. Trabalha na área em que eu tenho conhecimento e experiência, sim. É óbvio que pode sempre haver dúvidas sobre se depois, nessa empresa, eu estou a trabalhar no setor privado, vou trabalhar sobre processos sobre os quais tive poder de decisão enquanto estava no Governo. O que eu posso dizer sobre a minha passagem pela TIS é que lá dentro sempre houve o cuidado de não misturar as coisas. Eu próprio sempre tentei ter esse cuidado. Sim, pode gerar zonas cinzentas, mas com bom senso e sem fazer recair sempre sobre as pessoas o princípio da máxima suspeita. Eu acho que é possível uma pessoa trabalhar nas áreas que tutelou, é o que é natural. Seria diferente, e não foi o caso, se eu tivesse sido contratado para um lugar de administração de uma empresa à qual tinha, enquanto governante, atribuído um grande contrato, mas não foi assim. Fui contratado pela TIS como técnico, igual aos outros todos, sem nenhum privilégio dentro da empresa. Enquanto estive no Governo não tive intervenção em nenhum processo que interferisse com aquela empresa. Acho que qualquer pessoa que olhe com honestidade para o meu caso vê que não há ali nenhuma porta giratória. Sobre haver regimes de incompatibilidades, permitem de facto evitar essas situações, mas quando se vai longe demais nos regimes de incompatibilidades, é preciso dar algumas garantias às pessoas. Ou então só há dois tipos de pessoas que podem fazer política. Pessoas que são ricas e não dependem do trabalho para viver, ou pessoas que entram para a política e ficarão o resto da vida na política e que se tornam políticos profissionais. Acho que isso, enquanto sociedade não é aquilo que nós queremos dos nossos políticos, Queremos pessoas ‘normais’ na política, que saibam o que é ter um trabalho relativamente normal, saibam o que é, que é depender do salário para viver, que tenham uma vida que seja razoavelmente parecida com aquilo que é a vida da maioria das pessoas..Francisco Figueira (PSD): “Há condições para que as oposições deixem o Governo trabalhar”.Patrícia Gonçalves: “Não é uma revisão constitucional que vai resolver os problemas do país”