As políticas públicas em Portugal são condicionadas por períodos de crise, por momentos de estabilidade e pela sucessão de governos, ora da esquerda, ora de direita, explica um estudo - sob a chancela da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), elaborado pelos investigadores da Universidade de Aveiro Patrícia Silva e Pedro Camões, e da Universidade do Minho, António Tavares - que acrescenta que o papel da Administração Pública é mais estável “do que geralmente se assume”.“Os governos de esquerda tentam manter estável a administração pública em contexto de estabilidade económica”, explicou Patrícia Silva durante a pré-apresentação do estudo intitulado Continuidade e Mudança nas Políticas Públicas em Portugal (1976-2020), que abarca cinco décadas da história de Portugal, entre o início da democracia e a pandemia de covid-19.Para além disto, acrescenta a professora da Universidade de Aveiro, “os governos de esquerda tendem a criar entidades na Administração Pública em contextos de crise e a afetar [verbas], em particular, à área social, ao domínio social, onde encontramos o Ministério da Educação ou o Ministério da Saúde”.Por outro lado, a investigadora explica que não foi notado qualquer efeito semelhante nos governos de direita, “quer estejam em contextos de crise, quer não estejam em contextos de crise. Quando olhamos para as diferentes formas de reorganização, os governos de direita tendem a estar associados à extinção de entidades, a este exercício de maior contenção das estruturas da Administração Pública, e fazem, sobretudo, este movimento de extinção, quer estejamos em contextos de crise, quer não.”No estudo, quando se fala em políticas públicas, é uma referência às instituições que as põem em prática, isto é, direções gerais, institutos públicos, as células de execução da política pública da Administração Pública.Como nota metodológica, o estudo, ao qual o DN teve acesso, esclarece que “o nível de estabilidade das políticas públicas foi medido através de três lentes fundamentais”, que passam por analisar “como o governo reorganiza as suas estruturas, como distribui o orçamento e como escolhe a liderança das entidades”.A premissa do estudo, de acordo com Patrícia Silva, é a de que “em Portugal não existe continuidade de políticas públicas, e aliás, é de tal forma expressiva esta descontinuidade” que a investigadora classfica-a como “intermitência institucionalizada”.Patrícia Silva acrescenta que esta perspetiva não é “meramente um exercício académico”, justificando esta afirmação com a análise de “livros publicados por ex-governantes”, porque acabam por deixar como “grande nota” a ideia de haver este “grau de descontinuidade”.Um dos exemplos referidos pela investigadora da Universidade de Aveiro é o livro do antigo ministro da Economia e do Mar António Costa Silva, intitulado Governar no Século XXI, que, diz Patrícia Silva, revela a ideia de “descontinuidade, e, mais ainda, a ideia de que, embora exista vontade, do ponto de vista político, para se operarem algumas mudanças, há necessidade de uma articulação muito grande com a Administração Pública, e essa articulação, muitas vezes, gera entraves de tal ordem” que causam os problemas analisados no estudo.A investigadora destaca que o que a descontinuidade “significa, perante o cidadão, é que estamos a falar de ineficiência e desperdício de recursos”, o que gera desconfiança “em relação às políticas públicas e em relação às instituições. Em larga medida, porque aquilo que o cidadão espera é que as instituições funcionem de forma transparente, justa e eficiente.”A opacidade neste processo de desconfiança, explica a professora, é sublinhada também porque “os cidadãos delegam esta autoridade, esta responsabilidade para executar políticas públicas no Parlamento e no Executivo, mas não têm qualquer poder na escolha das estruturas da Administração Pública”.No entanto, esclarece Patrícia Silva, “é com a Administração Pública que o cidadão tem contacto, na primeira mão, portanto, a Administração Pública tem este peso fundamental, não só em garantir que as políticas são executadas, como também em garantir essa ligação com os cidadãos”.Instabilidades e alternânciasUma das conclusões do estudo, revelada por Patrícia Silva, é que o início da democracia, a partir de 1976, apresentava uma maior instabilidade nas estruturas da Administração Pública, e a sua evolução ao longo das décadas encerra marcas ideológicas, primeiro com a “estabilização, sobretudo, a partir do primeiro governo de Cavaco Silva”, e depois, “entre 2011 e 2020, quando cerca de 75% das entidades mantém esse grau de estabilidade”.Depois, a investigadora revela também o efeito da “alternância partidária” na manutenção da estabilidade ou instabilidade nas políticas públicas. “Na verdade, quando falamos da descontinuidade de políticas públicas, esta é a variável que parece explicar as variações que vamos identificar. O que notamos é que, quando mudam os partidos que estão no governo, temos este movimento de maior volume de desagregações, de maior volume de fusões e de maior volume de extinção de entidades”, destaca a professora, acrescentando que “o governo tem que trazer uma marca distintiva para a Administração Pública”.“Este movimento de criação de entidades é algo que nós verificamos, sobretudo, quando os governos se mantêm no exercício de funções e não quando há alternância”, analisa.Por outro lado, “governos minoritários ou de coligação tendem a estar associados a menores mexidas na Administração Pública”, sustenta Patrícia Silva, enquanto explica que “o apoio parlamentar também parece gerar uma menor tendência para mexer na Administração Pública”.Porém, ainda que não haja alteraçoes significativas nestas circunstâncias, a investigadora aponta outros efeitos da alternância partidária nos sucessivos governos, a começar pela nomeações de altos dirigentes do Estado, porque “a alternância partidária completa tende a estar associada a volumes de nomeações mais elevados do que os padrões de continuidade”, sendo que este efeito é transversal a todas as áreas setoriais, que revela o recurso mais utilizado para este mudança: o regime de substituição.“O regime de substituição tem sido muito implementado, na medida que é uma estratégia ágil de garantir a substituição de dirigentes. Convém também referir que muitas vezes estas mudanças que notámos nestes três indicadores que nós analisámos [reorganização de estruturas, distribuição de orçamentos e escolhas de liderança] podem sinalizar apenas cosmética.”Marcas ideológicasCom a indicação de que os orçamentos revelam “verdadeiramente a tradução das opções políticas”, Pedro Camões revela que são estes instrumentos que “obrigam a decisões de escolher uma coisa ou outra. No sentido de que aumentar o orçamento de uma qualquer entidade da Administração Pública obriga a diminuir noutra”.“Na maior parte das vezes, agir sobre as políticas públicas implica dotar de recursos, implica satisfazer recursos que são necessários para essa implementação”, argumenta o professor, antes de falar em corte ou crescimentos “cegos”, que acontecem quando as opções políticas afetam recursos ou retiram recursos “da mesma maneira para todas as entidades da administração pública”, tal como aconteceu no período de Troika.“O nosso estudo mostra, que na maior parte dos casos, ao longo destes 40 anos, é isto que acontece. Ao contrário do que se pode pensar, que há sempre variação, e há alterações, mas aquelas em que fazem verdadeiramente acontecer alguma coisa são muito menos frequentes”, conclui.