Recolher à noite é obrigatório e incumprimento pode dar prisão
Governo esclarece que impedimento de circulação na via pública é uma obrigação. Violar esta regra constitui desobediência agravada em um terço, com pena máxima de quase ano e meio de prisão ou multa a 160 dias.
O dever de permanecer no domicílio e não circular na via pública entre as 23h00 e as cinco da manhã - que se aplica desde sexta-feira em 45 concelhos em risco elevado ou muito elevado de contágio por covid-19, num total de 3,9 milhões de pessoas - é obrigatório e pode ser sancionado com prisão até um ano e quatro meses ou 160 dias de multa.
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A formulação que consta da resolução do Conselho de Ministros da última quinta-feira tem levantado dúvidas quanto à natureza da medida, ao referir que os "cidadãos devem abster-se de circular em espaços e vias públicas", sem falar expressamente em proibição. Mas Tiago Antunes, secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, não deixa margem para dúvidas. "É um dever, e em direito um dever é sinónimo de uma obrigação jurídica. E tanto o é que acarreta uma sanção que é das mais graves no nosso ordenamento, uma sanção criminal", diz ao DN.
Em causa está o crime de desobediência, que tem uma moldura penal de prisão até um ano ou 120 dias de multa, mas que neste caso é ainda "agravado em um terço" - ou seja, passa a um ano e quatro meses de prisão ou 160 dias de multa. Uma sanção prevista no Código Penal e que, neste caso em concreto, resulta do estabelecido na Lei de Bases da Proteção Civil e na resolução que declarou o estado de calamidade.
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"Se alguém estiver na rua a partir daquela hora os agentes da autoridade devem dar ordem àquela pessoa para se recolher", sublinha o secretário de Estado. Quem não respeitar essa ordem incorre então num crime de desobediência agravada. Significa isto que alguém pode ser preso por mais de um ano por estar na rua à meia-noite? A resposta é sim, embora o penalista Magalhães e Silva sublinhe ao DN que "raramente um tribunal aplica o máximo previsto na lei" nestes casos, dizendo não acreditar que se possa passar de penas suspensas ou multas de 30 dias, por exemplo.
Quanto à questão da constitucionalidade desta medida, depois de vários constitucionalistas terem já defendido que a norma é contrária à Lei Fundamental, Tiago Antunes sustenta que não, dado que se trata de uma "restrição" e não de uma "suspensão" de direitos, que "de facto não poderia ocorrer".
O secretário de Estado argumenta que a decisão do governo se fundamenta não no artigo 19 da Constituição - aquele que tem vindo a ser invocado em defesa da inconstitucionalidade da norma - mas no anterior. O artigo 18 estipula que "a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos". O artigo 19, que "regula a suspensão do exercício de direitos", estabelece que "os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição".
Em favor desta tese, Tiago Antunes cita o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) do último fim de semana, relativo à proibição de entrada e saída na Área Metropolitana de Lisboa, que resultou de uma intimação (ação urgente) apresentada por André Ventura. O STA determinou, por maioria, que aquela medida se refere "a uma restrição e não a uma suspensão de direitos, liberdades e garantias fundamentais, a qual se apresenta, ponderada a sua justificação, alcance e, relevantemente, todas as largas exceções previstas, não violadora do princípio da proibição do excesso, da necessidade, adequação e proporcionalidade".
Tiago Antunes defende que este é o mesmo princípio que se aplica à regra adicional tomada agora pelo Conselho de Ministros: "A medida não é permanente, é temporária, e tem um conjunto de exceções." As mesmas que estiveram em vigor quando a mesma norma foi posta em prática ao abrigo do estado de emergência, e que incluem, por exemplo, deslocações para o trabalho.
Norma é "inconstitucional"
Mas a interpretação do governo não é partilhada por muitos constitucionalistas. Para Jorge Miranda a medida é "inconstitucional": "São restrições muito fortes à liberdade de circulação das pessoas, que é um direito, liberdade e garantia, portanto pressuporia uma declaração do estado de emergência, eventualmente adaptado aos municípios em que a situação é mais grave."
Muitas vezes considerado como o "pai" da Constituição, Jorge Miranda defende que "há uma coisa que o legislador devia fazer: reformular a lei do estado de sítio e do estado de emergência" e definir em termos mais precisos o que é calamidade. "É um conceito que precisa de ser determinado, uma calamidade pode ser de muitas naturezas, pode ser uma calamidade natural, sanitária, pode haver calamidades que determinem umas situações, outras não" e a lei deve prever essa diferenciação, defende. "Há todo um trabalho de reformulação legislativa que me parece absolutamente indispensável. Toda a legislação tem de ser vista em conjunto e repensada para se evitar confusões", sustenta o constitucionalista.
Para Paulo Otero, a inconstitucionalidade está a montante, na própria Lei de Proteção Civil, que permite restrições à circulação - "essa norma legal é inconstitucional". Na mesma linha de Miranda, defende também que o "parlamento já podia e devia ter legislado" sobre a situação de emergência sanitária, "nem que para isso fosse necessário acrescentar um novo artigo à Constituição". Assim, "a Constituição é hoje uma peça de arqueologia", argumenta o constitucionalista: "Nos momentos-chave o que se vê é aquilo a que estamos a assistir agora." Ou seja, uma confusão em torno das figuras jurídicas que são usadas para responder à situação de pandemia.
O Presidente da República, ele próprio um constitucionalista, já se manifestou favorável às medidas tomadas pelo governo, defendendo que o executivo está a desenvolver um caminho "diferente" e "alternativo" no combate à pandemia. "Para situações diferentes têm de se encontrar soluções diferentes e a solução diferente que é encontrada agora não é uma solução nem de estado de emergência nem de confinamento total em todo o território, mas intervenções que são seletivas em função da situação dos municípios", disse Marcelo na última quinta-feira, depois de serem conhecidas as decisões do Conselho de Ministros. Recorde-se que Marcelo já disse que o país não voltaria atrás no desconfinamento, uma afirmação que deu início a uma troca de palavras com o primeiro-ministro, que na reação defendeu que ninguém, nem mesmo o Presidente da República, poderia dar essa garantia. Um episódio que terminou com Marcelo a dizer que o primeiro-ministro não desautoriza o Presidente da República e Costa a falar num "equívoco" e a negar conflitos com Belém.
IL faz queixa à Provedora de Justiça
Entre os partidos, a reação mais contundente foi a da Iniciativa Liberal, que apresentou queixa à provedora de Justiça das restrições impostas fora do estado de emergência, pedindo a Maria Lúcia Amaral que envie a resolução do Conselho de Ministros para o Tribunal Constitucional, para que seja verificada "a fiscalização da constitucionalidade das limitações e da Lei de Bases da Proteção Civil", segundo avançou no Twitter Bruno Horta Soares, candidato da IL a Lisboa. Também o PCP tem "muitas dúvidas" de constitucionalidade sobre esta medida, resultado do "tremendo erro" do Governo de "insistir nesta lógica de medidas restritivas", nas palavras do líder parlamentar, João Oliveira.
susete.francisco@dn.pt