"Quando temos de afastar a ‘fruta podre' é porque falhou o comando, a camaradagem, a IGAI e o ser humano”
O DN noticiou esta semana em primeira mão o resultado do inquérito da IGAI aberto na sequência da investigação do consórcio de jornalistas, em novembro de 2022, que identificou cerca de 600 perfis de polícias da GNR e PSP que propagavam mensagens de ódio racistas, xenófobas, misóginas e homofóbicas. O inquérito conduzido pela IGAI produziu 13 processos disciplinares. Destes, há neste momento, seis castigados. E há dois processos que ainda estão em curso. Quase dois anos depois, não lhe parece curto este resultado?
Esta investigação que a IGAI conduziu teve algumas condicionantes. Uma delas é que tomámos a decisão de apenas olharmos para aquilo que são redes abertas. Portanto, tudo aquilo que possa ter circulado em redes fechadas não analisámos porque se colocavam aqui questões de natureza jurídica que podiam ser sensíveis. Designadamente, se os senhores jornalistas, ao acederem a essas redes e às mensagens estavam a agir como um agente encoberto e se fosse essa a figura jurídica, teria que ter autorização judicial. E não teve. Não podíamos correr o risco e restringimo-nos a redes abertas. Há uma diferença considerável entre o universo que considerámos e o do consórcio.
De cerca de 600 desceu logo para quanto?
Não consigo neste momento dar-lhe o número, mas é considerável o número. Mais de 50% destas mensagens circulavam em redes fechadas. Depois, relativamente àquilo que foram os resultados, há aqui duas circunstâncias relevantes. A primeira é que, pelos perfis que analisámos, não conseguimos, em muitos casos, chegar à identidade das pessoas que postaram aquelas mensagens. Ou porque usavam siglas, ou porque usavam nicknames. Até porque não temos meios investigatórios, designadamente de poder apreender, nem de fazer peritagens aos computadores. Tínhamos que nos limitar àquilo que estava a circular em redes abertas. Finalmente, houve uma terceira circunstância, que é o facto de haver um número, diria que superior a 30 situações, de mensagens que podiam claramente enquadrar sanções de natureza disciplinar e algumas até criminal mas eram militares da GNR ou polícias da PSP que estavam reformados. O estatuto disciplinar, quer da GNR, quer da PSP, inviabiliza a possibilidade de sanção, a não ser que sejam casos extraordinariamente graves, como, por exemplo, um homicídio. Portanto, estas três circunstâncias condicionaram aquilo que foi o resultado da nossa Investigação. Chegamos efetivamente a este número de 13 processos disciplinares que foram instaurados. Cinco foram amnistiados por força da Lei da Amnistia, aprovada aquando da vinda do Papa Francisco a Portugal. Significa que esses arguidos já estavam acusados em processo disciplinar. Não estavam condenados, mas havia fortes indícios de que teriam infringido normas de natureza disciplinar. Depois há três processos, todos na PSP, em que foram aplicado dias de suspensão, um de 90, outro de 45 e outro de 120. Aquele em que foram aplicados 120 dias de suspensão foi o que nos pareceu mais grave porque se tratava de alguém que fazia a apologia da supremacia branca, falava num plano Kalergi. O Plano Kalergi refere-se a um senhor austríaco nascido em Tóquio em 1894, senhor Richard Kalergi, que muitos acham que foi o pai do que veio a ser a União Europeia. Idealizou uma Europa federada em que houvesse partilha de pessoas, de mercadorias, do que fosse. Ora, naquilo que eu considero que foi uma autêntica falsificação histórica, há grupos extremistas na Europa e também em Portugal que consideram este plano absolutamente malévolo e que visa trazer para o espaço europeu indivíduos oriundos de África e da Ásia, provocando uma mistura daquilo que consideram um conceito ultrapassado, que são raças, provocando o fim da raça branca. Isto é repulsivo. Por isso este digamos foi o polícia que teve a sanção mais mais pesada.
Ao fim dos 120 dias, este polícia está de volta ao serviço. Isso faz sentido? Que haja um polícia com essas ideias e continue a ser polícia?
Admito que isto possa causar alguma perplexidade. Isso foi ponderado na altura, mas tal e qual como acontece em processos de natureza criminal, só desistimos do ser humano quando não há nada a fazer. Esta pena é efetiva, enquanto as outras duas que referi são suspensas na sua execução durante dois anos. O que significa que se durante esses dois anos não voltarem a praticar nenhum ilícito disciplinar pelo qual sejam condenados, estas penas são arquivadas. Se voltarem a praticar algum ilícito disciplinar, terão que cumprir estas penas. No caso dos 120 dias, a pena é efetiva ele perderá 120 dias de antiguidade para efeitos de aposentação e de vencimento. Nós temos que acreditar. É por isso que há também nos processos crime penas de prisão suspensas na sua execução. Temos de agir em sede preventiva, na perspetiva de que o ser humano pode ser recuperado, pode ser ressocializado. Esperemos que esta pena, que são quatro meses sem vencimento e com perda de antiguidade, seja uma pena pesada que possa fazer este senhor agente refletir que isto são condutas inaceitáveis para um polícia. Porque quando estamos a falar de sanções, estamos sempre a falar de condutas reprováveis. Temos de medir, no caso concreto, se se justificará. Ou seja, se há perda de esperança relativamente a este polícia ou militar. Se houver, é evidente que as penas têm de ser expulsivas.
A esse propósito sublinho que desde Maio de 2022 até Março de 2023, que são os últimos dados sistematizados, na PSP foram demitidos 37 polícias por sanções disciplinares e aposentados compulsivamente 22. No mesmo período, na Guarda Nacional Republicana (GNR), foram demitidos 16 militares da GNR e houve duas reformas compulsivas. Já no SEF foram demitidos três inspetores do SEF, o que dá um total num período de cerca de dois anos de 80 penas expulsivas. É claro que nem todas estas penas têm a ver com a matéria discriminatória, mas tem a ver com condutas que merecem censura disciplinar.
Sabe quantas delas é que têm a ver com condutas discriminatórias?
Neste momento não tenho isso discriminado.
Há um pouco a ideia que há muitos processos disciplinares abertos e inquéritos, mas que depois o resultado acaba por ser pouco. E isto cria um pouco o sentimento de impunidade e dá da ideia da sociedade que não há, de facto, castigo. Acha que esses dados que nos acabou de dar conseguem contrariar esse sentimento de impunidade?
Claramente, sim. 80 penas expulsivas é um número bastante, bastante significativo. Porque a acrescem a estas outras penas, como as de suspensão, multa, repreensões e repreensões agravadas. E temos de ter aqui em consideração dois aspetos. O primeiro é que estamos a falar na PSP e na GNR, num universo, numa e noutra força de cerca de 22.000 homens e mulheres. Por outro lado, estes homens e mulheres beneficiam, tal como qualquer cidadão, porque não perdem os seus direitos de cidadania, do princípio de presunção de inocência. A investigação tem de demonstrar que fizeram aquilo pelo qual estão acusados e que o fizeram sem margem para dúvida. Este é o princípio. As pessoas não podem ser condenadas quando sai uma notícia num jornal ou numa televisão ou numa rede social. Tem que haver uma investigação profunda e séria. Se chegarmos à conclusão de que, efetivamente, os factos foram praticados, não há qualquer dúvida nem qualquer complacência e terão que ser condenados. Mas este é o número que, apesar de tudo, sendo significativo no universo que são as forças de segurança, permite-nos ter esperança relativamente à conduta dos polícias da PSP e da GNR.
A Ministra da Administração Interna que, por acaso, até foi uma das suas antecessoras no cargo, garantiu, aqui precisamente na entrevista DN-TSF, intransigência em relação a estes movimentos radicais dos polícias. Falou na necessidade de usar a formação que já está a ser feita para retirar a "fruta podre" das forças de segurança. Revê-se nesse propósito?
Tem sido essa a minha perspetiva desde sempre. Uma perspetiva preventiva. É por isso que temos em sede de recrutamento procurado que aqueles que têm ideais contrários ao Estado de Direito a não tenham lugar nas forças de segurança. Não podemos permitir que alguém que tem como função primordial defender o Estado de Direito e cumprir a Constituição e a lei seja o primeiro a contrariar esse Estado de Direito.
Criar um filtro…
Exato. Portanto, é isso que, em primeira linha, vamos procurar e que no recrutamento não entram.
E tem sido eficaz?
Tem sido eficaz. Os testes psicotécnicos foram alterados, foram introduzidos alguns itens que não existiam, que são a capacidade de empatia, o conhecimento da cultura de outros povos. É minha convicção de que o racismo, a xenofobia, a homofobia advêm de alguma ignorância. É absolutamente inaceitável num polícia.
Isso é uma exigência a acrescida num polícia não é?
É evidente que sim. Os polícias têm, tal e qual como os juízes e os procuradores, obrigações acrescidas de respeito pela Constituição e pela lei. Por isso, quando um polícia faz um comentário racista, xenófobo, homofóbico é todo o Estado de direito que fica em causa e é também a própria corporação. Por isso temos insistido muito na necessidade de haver um comando efetivo, porque estas coisas não aparecem do nada. Quer dizer, há sinais a que os senhores comandantes, nos mais diversos níveis hierárquicos, têm de estar atentos. E havendo sinais de que alguém tem este tipo de idiário, os senhores comandantes tem de agir. Assim como têm que agir os próprios camaradas. Quando chegamos a esta parte repressiva, em que temos que afastar a fruta podre, utilizando as palavras da senhora Ministra, é porque falhou o comando, falhou a camaradagem, falhou a IGAI também, enquanto entidade formativa, e falhou o ser humano claramente. Falhou muita coisa.
Mas tem sinais de que esses filtros estão a funcionar?
Acredito que sim na maioria dos casos. Esta reportagem que foi feita pelo consórcio de jornalistas - embora o número a que chegámos fosse, pelas circunstâncias que já referi, bastante diferente daquele que que era apontado - foi uma espécie de acordar de consciências. Isso acompanhado com a formação que temos feito em todas as sedes de distrito.
O plano de prevenção das manifestações de discriminação...
Exatamente. No âmbito desse plano, que tem várias vertentes, um deles, precisamente, o recrutamento. Tenho ido às escolas de Polícia e da Guarda e temos feito este esforço de, no país inteiro, numa perspetiva de maior proximidade com os formandos. A formação é dada com base em casos concretos, que considero que funciona melhor. Trabalhamos e analisamos casos concretos. Perante determinada situação, como é que agia? É muito importante para operacionais saber como é que agem numa situação em concreto. Também temos olhado muito para as redes sociais e chamado a atenção para a importância que tem o impacto que provoca no outro um comentário que seja racista ou xenófobo. Precisamente para tentar que se ponham não no lugar de quem vitimiza, mas no lugar da vítima. E julgo que isto tem resultado bem.
Sentiu, nestes cinco anos, que seriam necessárias outras capacidades de investigação para a IGAI?
A IGAI é uma inspeção com a natureza administrativa. Não é um tribunal. Um tribunal tem recurso a meios de produção de prova, a escutas, a buscas e apreensões, a perícias a computadores que uma entidade administrativa nunca poderá ter, porque não é essa a natureza da entidade administrativa. Agora também devo dizer que temos tido uma colaboração muito profícua e muito próxima com o Ministério Público (MP). Com muita frequência, quando há processos de natureza disciplinar e, ao mesmo tempo, de natureza criminal, temos articulado com o MP que nos dá informações acerca das diligências que tem feito nos processos. Portanto, com as polícias também. Aliás, o regime jurídico da atividade de inspeção da Administração direta e indireta do Estado prevê expressamente esse regime jurídico de colaboração estreita. Portanto, temo-nos articulado, designadamente com a Polícia Judiciária, com os processos de natureza de natureza criminal. Temos pedido elementos probatórios há ao MP e têm-nos sido sempre, sem exceção, facultados.
Neste momento quantos inspetores tem a IGAI?
Temos 11 inspetores num quadro de 14.
Ou seja, ainda faltam preencher três. Quantos é que tinha quando chegou a IGAI, há cinco anos? Lembra-se?
Tinha dez inspetores.
É pouco para a quantidade de processos que tem?
É pouco. No entanto, devo dizer que houve aqui uma evolução que, na minha perspetiva, até porque me interesso muito pela matéria da discriminação, foi muito positiva. Em julho de 2019 existiam 10 inspetores, mas apenas uma mulher. Neste momento temos paridade de género no corpo inspetivo. É evidente que gostaríamos de ter mais, mas também é importante perceber que o nosso modelo de controlo da atividade policial passa pela existência de inspeções na PSP e na GNR. Na IGAI apenas são investigados os casos mais graves. Portanto, digamos que não é todo o universo de natureza disciplinar que corre. Na IGAI são só situações em que implique mortes o uso de armas de fogo, matérias discriminatórias mais graves, ou processos de corrupção que envolvam montantes mais avultados.
O processo do ucraniano Ihor Homeniuk foi marcante. O inquérito que a IGAI conduziu revelou um SEF sem controlo, com procedimentos desumanos e que foi, podemos dizer, o começo do fim desta polícia. Uma das coisas que na altura foi constatada era que a IGAI, apesar de ter esse poder desde 2015, não tinha feito inspeções sem aviso prévio ao espaço da instalação de estrangeiros no aeroporto onde veio a morrer. Isto apesar de vários alertas de risco que tinham sido dados pela Provedoria de Justiça e outras organizações. Agora, com a mudança destes espaços do SEF para a PSP e já tendo sido noticiados problemas de sobrelotação, qual tem sido a atitude da IGAI?
Na altura em que tomei posse não estavam feitas inspeções sem aviso prévio a esses Espaços Equiparados a Centros de Instalação Temporária (EECIT), que é o local onde ficam as pessoas a quem é recusada a entrada e que têm de ser afastadas do território nacional. Depois de ter tomado posse, ainda em 2019, fizemos duas inspeções sem aviso prévio, uma a Faro e outra ao Funchal. Em 2020, que foi um ano peculiar, até porque o espaço aéreo teve fechado durante muito tempo, fizemos uma inspeção em Lisboa. Em 2021 fizemos sete inspeções sem aviso prévio. Cobrimos todos os sítios que existem.
Também o EECIT de Lisboa, em particular?
Em todos. Lisboa, mais do que uma vez. Em 2023 voltamos a fazer sete inspeções sem aviso prévio. É preciso referir que o nosso controlo nestes espaços não é feito só através destas inspeções. Um trabalho em que temos colocado especial enfoque e esforço é na monitorização dos retornos forçados. Casos em que alguém que cometeu um crime e tem uma pena de expulsão do território nacional para voltar ao país de origem. Ou quando é recusada a entrada em território nacional, como foi o caso do Ihor Homeniuk. São colocados neste espaço até haver avião que os leve de volta para o país de origem. Em todo o espaço europeu há uma entidade que executa este trabalho. Em Portugal era o SEF. Agora, com a extinção do SEF é a PSP e há uma entidade que monitoriza este trabalho. O monitor, por natureza, não interfere. Observa, toma notas e faz recomendações quando é caso disso. É no âmbito destas monitorização - e temos feito centenas - que temos que visitar os EECIT.
Já fizeram alguma desde que a PSP assumiu os EECIT?
Fazem-se imensas.
Cada vez que há um alerta de alguém, IGAI entra logo em cena?
O SEF anteriormente e a PSP agora tem obrigatoriamente de nos comunicar através de uma plataforma que vai haver um afastamento, qual é o país de destino, qual é o género do afastando, se há crianças ou não, se se tratam de pessoas conflituosas. A própria polícia faz uma avaliação de risco. Se o risco é elevado, de poder haver algum problema no afastamento, acompanhámos até ao destino, que pode ser o Rio de Janeiro, Luanda, o que for. O que fazemos é monitorizar, verificar se há uso da força e havendo uso da força, se esse uso foi adequado, proporcional. Verificarmos se foram cumpridos todos os direitos dos afastados. É um trabalho muito relevante e fazemos. centenas de monitorizações. Sendo certo que não fazemos todas, porque não se justifica. Fazemos todas aquelas em que há afastados particularmente vulneráveis ou pessoas particularmente conflituosas.
Outro aspeto que gostaria aqui de referir é que é vital que seja feito um Centro de Instalação Temporária para acolher estas pessoas. Só há um em Portugal, que é no Porto, que é o CIT de Santo António.
Só há espaços equiparados…
Exatamente. E os espaços equiparados são projetados para permanências de curtíssima duração. E quando digo curtíssima duração, estou a falar em dois, três dias. E o que se tem verificado é que por inexistência de um CIT as pessoas ficam 30 a 40 dias nestes espaços, o que é, na nossa perspetiva, inaceitável. Por isso temos vindo a insistir muito na necessidade de, na Grande Lisboa, ser construído um CIT. Penso que é vital que seja feito. Fizemos ainda, nesta área, uma recomendação. As recomendações não são vinculativas para nenhuma das forças de segurança, mas são uma indicação forte que é dada às polícias no sentido de que deverão adotar uma determinada conduta. Normalmente têm sido seguidas.
Deviam ser vinculativas não deviam? Quer dizer, porque são matérias essenciais...
Eu percebo, mas nós não temos uma relação de superioridade hierárquica relativamente à PSP e a GNR. Mas é a política da influência e, efetivamente, tem resultado porque, à exceção da última recomendação – fiz cinco no meu mandato, pois as recomendações devem ser utilizadas com alguma parcimónia, sem abusos - que diz respeito àquilo que nos parece absolutamente essencial, que é a identificação dos elementos das unidades especiais de polícia da GNR ou da PSP, que ainda não está implementada, todas as outras foram acolhidas . Esta última da identificação preocupa-nos particularmente. Surgiu a propósito de um incidente que houve num jogo entre o Guimarães e o Famalicão, em que, por força da utilização de um bastão por parte de um polícia da Unidade Especial de Polícia, um advogado ficou cego. Só por si já é suficientemente grave, mas agrava-se mais ainda pelo facto de não ter sido possível chegar à identificação de qual foi dos 11 polícias que foram constituídos arguidos no processo disciplinar e no processo crime, porque ninguém se chegou à frente a assumir a responsabilidade.
E aproveito para fazer aqui um apelo. Percebo que nestas corporações em que há um uso por vezes necessário da força, em que tem que haver um grande espírito de entreajuda e de camaradagem, que haja muita dificuldade em denunciar um camarada. Percebo isso. Agora, quem o fez devia honrar a farda que veste. Devia honrar, neste caso, a Polícia, e dizer fui eu que fiz e estou aqui para assumir as minhas responsabilidades. Isso não aconteceu. Há pouco tempo, e foi isso que me levou a fazer, esta recomendação, aconteceu outra situação, também no que seria um jogo de futebol entre o Famalicão e o Sporting, em que houve também o uso de força que provocou uma lesão corporal séria num cidadão, e também não foi possível identificar quem foi o polícia. Ora, num Estado de Direito isto não é possível acontecer. Admito que não tenham o nome por razões de segurança. Admito. Mas tem de ter um número, uma letra. E esse número ou essa letra há-de corresponder a um determinado polícia, a um determinado militar. Agora, haver esta impunidade, acho completamente inaceitável. Foi-me garantido pelo senhor Diretor Nacional da PSP, há dois dias, de que estão já em curso medidas no sentido de ser colocada a identificação, o que me obviamente causa grande satisfação.
Já integrou um grupo internacional de magistrados que discute o tema dos refugiados. Não sei se ainda está envolvida…
Integrava, neste momento já não.
Acha que há um problema de acolhimento e de integração de refugiados e de imigrantes em Portugal?
Julgo que é indiscutível que há. A integração é um trabalho que tem de ser feito em várias vertentes. Não podemos olhar só para a vertente de controlo da entrada, que é importante. É importante e sabermos quem entra em território nacional. Precisamos muito de imigrantes. Os imigrantes têm contribuído de uma forma decisiva para a sustentabilidade da Segurança Social. Mas é preciso sabermos que quem entra em Portugal são pessoas respeitadoras do Estado de Direito. Essas, naturalmente que são bem vindas. Agora é necessário depois fazer um trabalho também a nível social, de integração. E isso passa por aprenderem a língua. A língua é aquilo que nos permite comunicar e portanto, se não falam português, é muito difícil estabelecer essa comunicação e não havendo comunicação, não há integração. Vejo com alguma preocupação, embora não estejamos nem lá perto, aquilo que acontece, por exemplo, nas zonas limítrofes de Paris, em que há autênticos guetos de estrangeiros que não falam francês, que claramente não se integraram, que mantêm rigorosamente o mesmo tipo de comportamentos que tinham no seu no seu país de origem. Isso é preocupante, porque a integração passa pela partilha de cultura, pela partilha da língua, pela partilha de costumes. Não significando isso que devam esquecer as suas próprias culturas. Não é isso que estou que estou aqui a defender. Mas realmente esse trabalho tem que ser feito e tem que ser feito muito rapidamente.
Por que é que quis sair agora da IGAI? Creio que ainda faltava quase um ano para acabar o mandato. Teve receio de ser demitida?
Não tive, não. Tive a honra de trabalhar já com quatro ministros, o dr. Eduardo Cabrita a dra. Francisca Van Dunem, o dr. José Luís Carneiro e agora a dra. Margarida Blasco. A primeira coisa que faço na primeira reunião que tive com qualquer um destes senhores ministros, foi colocar o meu lugar à disposição. O meu lugar está sempre em cima da mesa dos senhores das senhoras ministras com que trabalho. Portanto, de todo. A ida para a Assembleia da República passou por duas vertentes. A primeira é porque é um desafio enorme e eu gosto de desafios. A Assembleia da República é a casa da Democracia, é a casa dos direitos e liberdades e por isso é uma casa onde, julgo, poderei ser tão feliz quanto fui na IGAI. Porque gostei muito destes cinco anos em que estive na IGAI. Foi um trabalho em que pus muito empenho e muito de mim, muito esforço. Por outro lado, o convite foi-me feito por uma pessoa, o senhor Presidente da Assembleia da República, que tenho como um modelo de idoneidade e de integridade. É uma pessoa por quem tenho um grande respeito e teria muita dificuldade em dizer que não a um convite vindo do Dr. José Pedro Aguiar Branco. Depois também acho que há um tempo. Na altura em que iniciei funções na IGAI tinha imensas ideias. Fizemos conferências nacionais e internacionais sobre saúde mental, sobre o desescalamento do conflito, sobre os retornos forçados. Vou deixar completamente organizadas duas conferências internacionais sobre o modelo de controlo da atividade policial. Vamos ter ucranianos. É uma oportunidade de conhecermos o modelo de controlo da atividade policial num país que está em guerra. Vamos ter representantes da Lituânia, da Irlanda do Norte, que tem também particularidades sérias no que diz respeito à atividade policial, franceses e espanhóis. Isto vai ser uma organização em conjunto com o EPAC (European Partners Against Corruption) que é uma organização internacional e que irá ter lugar em Lisboa . Depois sobre o mesmo tema com os países da CPLP. Sinto que fiz aquilo que me foi possível fazer. Fi-lo com muito entusiasmo. Agora é o tempo de ir fazer outra coisa.
Acha que vem aí bons tempos ou maus tempos para a futura inspetora-Geral da Administração Interna?
Eu acho que os tempos são sempre bons quando se abraça um projeto com entusiasmo. Acredito que o próximo inspetor-geral tenha esse entusiasmo e esse empenho.
Quais são os perigos?
Os perigos podem passar por aquilo que neste momento parece ser - e digo parece porque o digo com muito cuidado, não posso dizer afirmando - alguma adesão por parte de alguns membros das forças de segurança a movimentos mais radicais. O pensamento é livre. Já dizia o poeta não há machado que corte a raiz ao pensamento. O pensamento é livre. Na sua conduta diária, na interação com o cidadão e na interação com os seus camaradas, não pode haver comportamentos contrários ao Estado de Direito. Ponto final. Parágrafo.