"Precisamos de investimento, a câmara não pode ser um complicador"

A maioria absoluta no Cartaxo "foi uma surpresa", mais ainda porque não houve promessas eleitorais. A dívida herdada do PS ​​​​​​​é o maior dos problemas para o novo presidente social-democrata, João Heitor.

No que resta do jardim, ao lado da câmara, não há muita gente. Meia dúzia de homens de idade, sentados nos bancos de madeira, quase todos em silêncio, olham quem passa. E quem passa vem quase sempre da Rua Batalhoz ou do outro lado, da rua que tem Marcelino Mesquita [poeta, jornalista, deputado e dramaturgo que morreu em 1919] "virado de costas para o povo". A frase ser-me-ia dita mais tarde por João Heitor, novo presidente da câmara, que não entende "porque viraram a estátua ao contrário" quando "dantes estava de costas para o edifício da câmara", e que dali a minutos estaria na Martinica. "A mais famosa pastelaria do concelho", diz o empregado de mesa quando entramos.

João Heitor, 42 anos, licenciado em Educação Física, ex-diretor regional de "uma multinacional francesa, uma adubeira" [demitiu-se da empresa após ganhar as eleições], trabalhou com "crianças e jovens com necessidades, em Oeiras". "Depois fui trabalhar para as Páginas Amarelas, estive lá 14 anos, e recentemente, há sensivelmente um ano, entrei nesta multinacional. Saí porque não fazia sentido manter vínculo com a empresa. Alguém teria de fazer a minha função e depois se eu quisesse voltar o que é que se fazia àquela pessoa?", questiona.

A conversa é interrompida pelo empregado da pastelaria, que traz um galão e uma sandes mista - "ainda não tomei o pequeno-almoço", diz João Heitor -, e pelo Nelson, que aperta nas mãos uns papéis e uns jornais que me parecem ser antigos. "Eu sou de 79 e o João também." O novo presidente sorri. "Também sou, sim senhor. E ainda tenho o CD do Tiririca que tu me deste, lembras-te?" Não é fácil perceber as respostas do Nelson. A voz baixa e as palavras entrecortadas, quase impercetíveis, são, no entanto, deslindadas pelo antigo companheiro de escola. "O Nelson é da minha idade, eu era presidente da associação de estudantes e já nessa altura ele andava sempre ao pé de mim. O CD que me ofereceu foi por causa de uns jogos tradicionais que organizámos lá na escola. Ele queria participar e ninguém queria participar com ele. Aquilo metia cavalitas e ninguém queria andar com ele às costas... e eu disse-lhe: "Ó Nelson, deixa estar que fazes comigo." O CD vem daqui, ainda o tenho guardado." A parte final desta explicação já não foi ouvida pelo Nelson, que saiu a meio e se dirigiu para a porta de saída.

"Estávamos a falar da minha decisão de sair da empresa, não era? É uma consequência, é uma coisa natural, uma consequência das minhas decisões políticas. Manter um lugar em aberto não fazia sentido." Ficou surpreendido por ter ganho? Há dois meses não me parecia convicto... "Fomos percebendo, ao longo do caminho, que havia um grande descontentamento com a gestão anterior e um bom acolhimento à nossa mensagem, à nossa forma de estar. E a nossa perspetiva foi mudando. Percebemos que era possível ganhar, mas daí a ter maioria absoluta... foi de facto uma surpresa." E já percebeu o que se passou? "Acho que sim. O descontentamento e a forma como nos apresentámos, sempre muito construtivos. Essa é, de facto, a nossa forma de estar, não é um boneco que se criou. E sem fazer promessas porque não o podíamos fazer. Manifestámos sempre intenções sobre a forma como poderíamos fazer algumas coisas porque sabemos das limitações financeiras." E agora? "A câmara é o maior empregador do concelho. Só com as pessoas que trabalham no município é que vamos conseguir criar condições para dar melhores respostas às famílias, às empresas, às associações."

A pastelaria está meio vazia, há quatro mesas ocupadas, em duas delas apenas uma pessoa sentada. Nas ruas o retrato é igual, pouco movimento. "É da hora, são dez e meia, é um dia de semana", diz João Heitor. Ou é uma imagem do concelho?, pergunto. A hesitação não dura muito tempo. "Quero falar de investimentos, nós precisamos de investimentos. Este concelho tem de ser visto como amigo das empresas que se querem aqui instalar, que se querem aqui fixar e das que cá estão para continuarem cá. Mostrar o potencial que existe na zona industrial..." Mas, questiono, só lá existe uma empresa... "Só tem uma empresa e a câmara só lá tem 23% da participação social, mas queremos apresentar-nos como alguém que quer apoiar. Temos também um espaço onde há muitos anos se fala que se vão localizar empresas que é o Casal Branco, dez hectares, mas até à data não se concretizou nada." Espaço tem e que mais pode oferecer? "O que temos, nesta altura, não será assim tanto porque não podemos baixar derramas, não podemos reduzir IMI, estamos limitados. Mas sabemos que ao longo destes anos tem havido intenções de as empresas se fixarem cá, mas muitas vezes não se instalam porque deparam com muitas barreiras, muitos problemas, questões burocráticas. O município tem de se apresentar de outra forma, de braços abertos. Ser diligente, ser rápido na resolução das questões, ser... eu acho que a palavra certa é ser facilitador e não complicador. As vantagens geográficas são claramente o maior trunfo que nós temos nesta altura."

Antes de sairmos para percorrer a mais conhecida das ruas da cidade, que em tempos era das mais movimentadas e "apetecível até para gente de outros concelhos", pergunto pelo Tejo e pelo "passeio dos tristes". "... longe, o rio está longe. E está a apenas 12 quilómetros, mas parece que são 30. Nós sempre falámos do potencial do Tejo, mas depois pouca coisa se faz. Valada, a freguesia encostada ao rio, tem vindo a perder população de uma forma muito forte: de 2005 até agora já perdeu um terço dos eleitores. E porquê? Porque parece que está muito longe. A resolução do PDM tem uma importância enorme. As pessoas não podem lá fazer nada, estão extremamente limitadas. O rio não é de facto utilizado, não temos sabido tirar proveito do Tejo. Temos uma marina feita ao contrário, uma praia que não é uma praia, mas que tem todas as condições para o ser. Não há dinâmica desportiva associada ao rio que é uma coisa que tenho dificuldade em perceber. Temos de trabalhar para que isso aconteça." E o "passeio dos tristes"? "É uma expressão muito antiga, não é feliz, não nos deixa orgulhosos. Temos de a alterar, fazer que a ida a Valada não seja encarada dessa maneira."

Saímos para "a Batalhoz", atravessamos a estrada de sentido único, e seguimos rua acima. "Há muita loja fechada. Os comerciantes queixam-se bastante, é preciso fazer aqui um trabalho muito grande em conjunto com eles. A dinâmica comercial já se vai instalando noutras zonas, nomeadamente na João de Deus [avenida que fica ali perto a 500, 600 metros], mas aqui a referência é esta rua". A "loja do Guedes" fica poucos metros acima, do lado esquerdo. "Howell Guedes, desde 1904" está escrito na porta de entrada. "É a mais antiga de todas... bom dia, Frederico. Estou aqui com uns senhores do Diário de Notícias." Frederico Guedes está ao balcão a atender uma cliente. "É preciso pagar alguma coisa?", pergunta a senhora de meia idade. "Não, está tudo bem, tudo enviado", responde enquanto vem ao nosso encontro. "O Frederico já é bisneto da proprietária original... é um acérrimo defensor do comércio tradicional. Esta loja é uma referência no Cartaxo. É uma âncora aqui da rua. E aquilo que vende são coisas de que as pessoas precisam e usam, muitas já não se encontram noutros sítios", diz o autarca. "Estava ali a fazer um favor a uma cliente, às vezes é preciso", explica-se Frederico que está confiante na mudança política. "Ele sabe perfeitamente disso. No grupo dávamos as primeiras ajudas... é igual." Ajudas? "Claro, ele foi forcado. Sabe da importância das primeiras ajudas." Foram forcados juntos? "Não, eu fui bairrista, fui aqui no Cartaxo. O João esteve no Aposento [da Moita]. Agora vai ter de ter uma estaleca valente, temos de ir para cima, sempre a arrebitar. Andava um bocadinho, por aqui, a cantiga do maldizer e do bota-abaixo."

A conversa de Frederico é cortada por uma mulher de idade, de saco de pão na mão, que na pressa de falar com o "senhor presidente" até a máscara anticovid deixa cair ao chão. "O senhor desculpe interromper... vai ser o senhor que vai ser ali o da câmara?" João Heitor acena que sim e mal tem tempo para falar. "Olhe, tenho uma observação a fazer. Eu votei no senhor. É o seguinte, a gente tem o TUC que vai até à Ribeira e não sei por que razão não segue para cima. Vai um TUC buscar as pessoas ao comboio, mas vai só com uma pessoa e para cá não traz ninguém. Há pessoas que moram lá e o senhor do TUC não as quer trazer. É este pedido que lhe tenho a fazer... e obrigada, fiquei a gostar de o conhecer." E segue caminho descendo a rua. Frederico já está de novo na loja. Junto ao balcão já estão três clientes. Tem sido abordado muitas vezes assim? "Tenho... o que é bom. As pessoas têm aqui uma expectativa muito grande e justa, mas também têm a noção de que não vamos conseguir resolver tudo de uma vez só. As varinhas mágicas não existem. Não posso criar falsas expectativas", frisa João Heitor.

Começamos a descer a rua em direção ao mercado municipal que fica junto à câmara e que por ser segunda-feira está fechado. Do outro lado da rua, que já foi estrada nacional, fica a praça de toiros. Foi forcado porquê? "Sempre tive uma família aficionada e acompanhava as corridas de toiros desde pequenino e as coisas aconteceram com naturalidade. Até acabei por ir mais tarde para os forcados porque era atleta de alto rendimento, fazia karaté, fui inclusive campeão nacional. Em miúdo andávamos sempre aí a pegar vacas e nas ferras e eu já sabia o que aquilo doía quando a coisa não corria bem. Fui forcado durante cinco anos, foi uma época com memórias felizes. Foi uma época gira, porreira, de muita atividade, muita amizade. Na altura, fazíamos 30 corridas por ano, andávamos com a farda às costas o verão inteiro."

João Heitor já vai pouco a corridas, vai "quando é necessário apoiar, quando é preciso". Tem uma praça aqui ao lado... "Aqui vou. Faço questão de apoiar a festa, ver os forcados daqui e vou ver o Aposento da Moita quando posso, mas também quando sinto que é importante para eles. Toda a festa está a perder um bocadinho de força, está ser atacada por muito lado, mas também acho que está ainda muito enraizada para que possamos ter receio de que ela se perca."

Pegamos no carro e seguimos em direção à feira das segundas-feiras, contornamos o mercado à esquerda, seguimos em frente, viramos à direita na "João de Deus", na rotunda saímos à esquerda e viramos na primeira à direita. Umas centenas de metros à frente lá está a feira mensal. "Todas as segundas-feiras a seguir ao segundo domingo do mês. Já teve mais força, as pessoas antigamente estavam um mês à espera da feira porque havia coisas que precisavam de comprar que não havia à volta. Hoje é diferente, mas é importante que exista e que se estimule... mais que não seja para que as pessoas mais velhas se encontrem."

"Vieste feirar?", pergunta Rui Silva, um velho conhecido. "Há uns tempos largos que nos conhecemos. É agricultor, faz vinhos. E a vindima?", pergunta João Heitor. "Correu um bocado menos. A geada de março queimou. Desta vez só começo a podar lá p"ra dezembro." Meia dúzia de metros adiante uma mulher, sentada numa cadeira de plástico, acena. "Venha cá que não sabe quem eu sou, mas eu sei quem você é." Aproximamo-nos. "Sou a mãe do Adriano que trabalha na junta da Ereira. Diga-me lá, o que é que vocês agora vão fazer? Vão pôr um Cartaxo novo? Vão pôr um jardim em frente da câmara, tirar de lá aquele cimento todo?" "De repente, de repente não pode ser", responde João Heitor. "Pois não, também não há dinheiro. Sempre lhes disse: não se dá passo maior do que a perna. Eu bem os avisei."

Dali, de uma feira envelhecida - "sem gente nova, já reparou?", diz o novo presidente -, até à Quinta das Pratas, lugar do Museu do Vinho, a viagem é curta. A escola secundária em frente leva João Heitor ao próximo tema. "A pirâmide demográfica está a inverter. Fixar jovens aqui é difícil. Quem sai daqui para a faculdade dificilmente volta, não encontra sustento, onde arranjar emprego. Há muita gente que vive aqui, mas trabalha em Lisboa, fora do concelho. Percebe agora porque falo de investimento? Estamos a 35, 40 minutos de Lisboa, temos bons acessos, temos um potencial enorme... só precisamos de investimento. Saber resolver as necessidades das empresas."

artur.cassiano@dn.p

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG