“O enriquecimento ilícito está para a corrupção como a castração química para os crimes sexuais”
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“O enriquecimento ilícito está para a corrupção como a castração química para os crimes sexuais”

Mónica Quintela é advogada, foi deputada do PSD e porta-voz para a Justiça durante a liderança de Rui Rio. No Parlamento coordenou a representação do partido na Comissão de Assuntos Constitucionais. Nas eleições de março ficou de fora das listas do PSD. Continua a ser uma voz ativa e assertiva.
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A reforma da Justiça sempre foi uma prioridade de Rui Rio enquanto presidente do PSD, quando era o maior partido da oposição. Do que já leu do programa do Governo para a Justiça acha que esse caminho começou a ser feito da melhor forma?
A reforma da Justiça é uma necessidade estrutural para o país. Há muitos anos que devia ter sido feita e não tem havido vontade política e também o próprio sistema de Justiça contribui para isso. Porque os atores da Justiça vão perpetuando muitas vezes hábitos, rituais, práxis que estão acostumados e são muito difíceis à mudança. O programa do governo tem essencialmente normas programáticas de onde não se consegue perceber o que é que em concreto pretendem fazer. Muitas das normas que estão lá já transitaram do programa anterior do PSD, onde colaborei na sua realização para as anteriores eleições, quer em 2019, quer em 2022.

Tem algumas medidas novas com as quais concordo, tem outras com as quais sempre discordei, como a questão da criminalização do enriquecimento injustificado. Se bem que houve já aqui um avanço, porque no programa consta que, caso não seja possível legislar de forma a ter o acordo do Tribunal Constitucional (que já chumbou duas vezes), poderiam criar uma ação para a extinção do domínio.

Esta ação para a extinção do domínio é um instituto do direito brasileiro e que já existe no direito português, que é a perda ampliada de bens. Portanto, não percebo muito bem nessa parte em que é que o Governo diz que irá criar uma coisa que já existe.

Porque se opõe a esta criminalização?
Costumo dizer que a figura do enriquecimento ilícito, que considero uma figura demagógica, está para a criminalidade económico-financeira, para a corrupção, como a castração química está para a criminalidade sexual. É inconstitucional e não resolve o problema.

Acho que todas as pessoas que estão no terreno, todas as pessoas que conhecem o funcionamento dos tribunais, que conhecem a investigação criminal, sabem isso.

O Tribunal Constitucional foi claro. Temos a violação do princípio da proporcionalidade, porque há ausência de um bem jurídico concretamente a proteger.

Temos a violação do princípio da legalidade, porque não identifica a ação ou omissão concreta que se pretende incriminar. E depois temos a violação do princípio da presunção de inocência, sacrificando tríptico garantístico do princípio da presunção de inocência, com os seus derivantes do in dubio pro reo do direito ao silêncio e direito à não autoincriminação.

Esta inversão do ónus da prova é um facilitismo a quem tem de fazer a investigação ?
Claramente. E é um retrocesso civilizacional muito grande, é voltar quase às ordálias em termos de processo penal. Pergunto, porque é que na corrupção económico-financeira, o cidadão, o arguido, o suspeito, é que terá de provar que não praticou um crime? Além de ser inconstitucional, é a subversão total do sistema penal, do sistema criminal e do nosso ordenamento jurídico.

Para o enriquecimento injustificado ou ilícito, como se lhe queira chamar, passar no Tribunal Constitucional, é preciso que a nossa Constituição de 1976, com as revisões subsequentes, dê uma volta e fique de pernas para o ar. 

Mas esta é daquelas que pode passar em termos de revisão constitucional, se for o caso disso, porque pode ser feita uma maioria qualificada para aprovar isto, com o Chega e o PSD pelo menos.
Isso pode, a nossa Constituição, pode ficar de pernas para o ar.

Agora, isso é a subversão e a inversão total dos nossos princípios de direito criminal, designadamente do princípio da legalidade, do princípio da proporcionalidade. Todos aqueles princípios que informam a nossa ordem jurídica e que dão sustentáculo, garante e estribam os direitos, liberdades e garantias.

Há determinados caminhos que não podem ser trilhados, portanto, não acredito que se vá revogar princípios que estão consolidados e que são basilares. Nós temos uma grande tradição jurídica, mesmo em termos de doutrina, muito importante no âmbito de trilhar o caminho dos direitos, liberdades e garantias dos direitos fundamentais.

Seria muito mau para o nosso sistema jurídico.

E destas medidas que estão no programa do Governo, quais é que identifica que possam representar resultados visíveis no combate à corrupção? 
Vária medidas do programa do Governo já estão plasmadas no ordenamento jurídico. Recordo aqui a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, que foi aprovada no Parlamento em 2021 que conheço perfeitamente pois fui uma das legisladoras por parte do PSD, no âmbito da qual houve muitas medidas que aprovámos e que foram fundamentais.

Como, por exemplo, o aprimorar o conceito do funcionário, o dar sequência às recomendações de organismos internacionais, como o Greco, a OCDE, as Nações Unidas. Quando, por exemplo, criminalizámos o tráfico de influência ativo para ato lícito, que era uma coisa que não existia, que era uma das recomendações do Greco.

Portanto, temos um ordenamento jurídico dotado de belíssimas leis. Temos é um problema de execução das leis. E depois temos o problema de os meios para as leis saírem do papel. E de os atores jurídicos, seja Ministério Público, seja magistrados judiciais, sejam polícias, incorporarem essas novas medidas e passá-las à prática. 

Mas qual é o problema principal? É a falta de vontade desses atores ou é a falta de meios?
Mexer na justiça, chamemos-lhe assim, é particularmente difícil porque há uma conjugação de fatores, que seja a própria corporalização das profissões jurídicas, todas elas muito arraigadas aos seus rituais, às suas práticas.

Se essas práticas forem alteradas, as leis podem ser implementadas também de forma diferente. Temos, por um lado, uma cultura jurídica muito conservadora, ainda muito saída, do um Estado Novo. Não houve muitas alterações na justiça após o 25 de Abril.

Não sei se muitas pessoas têm essa noção. Quer dizer, as principais alterações foram as mulheres que passaram a poder aceder à magistratura. Depois houve um instrumento fundamental que foi a Constituição de 1976, com as alterações em termos do Direito de Família ao Código Civil em 1977 em que a mulher deixou de estar subjugada, como estava até então, ao “chefe de família” - a mulher tinha que pedir autorização, pasme-se, ao marido para viajar para o estrangeiro, para trabalhar, o marido seria sempre o encarregado de educação dos filhos.

Havia um autoritarismo muito presente, com uma desigualdade de género e uma misoginia muito presente no nosso Código Civil, que só foi alterado em 1977. Essa é efetivamente uma alteração legislativa que aconteceu com o 25 de Abril, e muito bem.

No Código Penal, até 1982, no homicídio em virtude de adultério, havia atenuantes a favor do homem por se chamar os chamados crimes de honra. Só em 1995 é que houve uma alteração, que do meu ponto de vista foi o virar da página no olhar que a sociedade o ordenamento jurídico têm - se bem que ainda não passou totalmente ao papel em termos de cultura judicial - quanto a liberdade sexual que passou a ser erigida em termos de bem jurídico protegido e os crimes de violação e toda a criminalidade sexual passaram ser encarados de outra forma.

Pelo menos passou a ser legislado porque há sempre as cotadas do macho latino e, enfim, o cacete com pregos daquele acórdão do desembargador Neto Moura…

Mas isso são leis. E a cultura de funcionamento dos tribunais?
Não, isto não são leis, isto é a aplicação da lei. A lei já não diz isto, mas a cultura da aplicação da lei fez com que fossem proferidos estes acórdãos, mesmo quando a lei já não diz isto.

As leis já mudaram, mas a cultura de funcionamento dos tribunais não mudou, é isso que está a dizer?
Não mudou, é uma transformação lenta. Ou seja, há uma conjugação de fatores que torna difícil, efetivamente, uma mudança na justiça.

E são os atores?
Os atores, a cultura e a falta de vontade política. Porque como há uma resistência, sempre, dos atores a introduzir mudanças, porque está tudo muito nas suas quintinhas, há também uma falta de vontade política.

Podia dizer que a Justiça é o parente pobre, mas nem sei se é o pobre se é o temível, mas sei é que tem estado relegada para um plano absolutamente secundário e não tem havido uma reforma, uma transformação da Justiça.

Aquilo que tem havido é uma gestão. Uma gestão corrente, quase de mercearia da Justiça, quase uma gestão corrente da Justiça, e impõe-se que haja efetivamente uma transformação, uma reforma estrutural da justiça. Isto mexe com a cultura dos tribunais, dos DIAP, da investigação criminal, mexe com uma série de coisas e mexe com a vontade política.

Porque aquilo que menos precisamos são leis. 

E isso vale no que diz respeito aos direitos das mulheres como também no combate à corrupção de que estamos a falar.
Exatamente. Ou seja, no fundo, é essa estagnação que existe a nível de mentalidade dos atores da justiça.  Veja-se a jurisdição administrativa e fiscal. As pessoas pensam o que é que isto tem a ver com a corrupção e com os tribunais criminais? Tem tudo a ver.

Se um cidadão para ir buscar uma licença à câmara, resolver qualquer problema da sua vida em que a parte contrária é a administração central ou local, portanto é o Estado, tem tudo a ver com o tribunal administrativo.

Se o cidadão pensa assim, bom, em vez de demorar aqui quatro ou cinco anos para resolver um problema aos balcões e depois 15 ou 20 anos num processo nos tribunais, se calhar consigo chegar lá de outra maneira. E é aqui que entra a corrupção.

Quando há bocado me perguntava sobre perspetivas para debelar e para combater quer a corrupção real, quer a perceção da corrupção, é a transparência. A jurisdição administrativa e fiscal a funcionar em pleno, porque não funciona.

Quando lhe digo a funcionar é porque ela está paralisada. Tenho processos gravíssimos de negligência médica em que morreram pessoas com mais de 20 anos à espera, que é uma coisa absolutamente inimaginável. Portanto, o cidadão desespera.

Desespera, isto já não é justiça, isto é denegação de justiça. E, portanto, toda esta parte é muito importante para o combate à corrupção. O combate à corrupção, como é que se faz? Prevenção. Como é que se previne? Educando as pessoas e alertando e denunciando as situações, dando exemplos.

E o Governo até fala disso no seu programa, . que já era uma coisa que vinha dos programas de trás, a prevenção e a educação no combate à corrupção e depois uma repressão que só pode ser feita com a eficácia da investigação criminal.

O combate à corrupção é feito com a eficácia no terreno e têm de ser dotados de meios os órgãos de polícia criminal, todos eles, e também o Ministério Público (MP), e tem de haver uma articulação muito melhor.

Quando falo de meios, falo de recursos humanos e sobretudo de perícias técnicas, porque a criminalidade económico-financeira faz-se muito à base da análise de perícias técnicas, análise contabilística, análise de estratos comerciais, ou seja, há um conjunto de operações comerciais e civis, de engenharias jurídicas que estão metidas na corrupção e na criminalidade económico-financeira e que é preciso que quem esteja a ver tenha uma visão global do ordenamento jurídico e que não pense só no tipo legal de crime, como ele está plasmado no Código Penal ou na legislação conexa.

Não é aceitável que se estejam anos à espera de uma perícia informática, não é aceitável o que se está a passar, por exemplo, no processo Marquês ou no processo BES, que são dois processos que têm contaminado completamente todo o ordenamento jurídico.

Espero que, porque estou convencida que muitos dos crimes irão prescrever, a solução do poder político não seja ir legislar em cima da perda do caso. Em cima do joelho, a quente, como aconteceu com as alterações que foram feitas no pós-processo Casa Pia e que resultem e redundem numa preterição dos direitos de garantia do cidadão.

Presumo que, pelo que tem estado a dizer, as iniciativas do ministro Pedro Duarte e da ministra da Justiça, Rita Júdice, de ouvir os partidos, sejam infrutíferas?
Penso que o PSD deve ter o seu programa e deve ouvir os outros partidos. Não somos os donos da sabedoria e de todos os quadrantes poderão ouvir boas ideias e conhecimento. 

Mas a ideia é de que nos próximos 60 dias digam lá o que pensam sobre isto que é para nós, eventualmente, mudarmos de ideias é um bocadinho uma perda de tempo porque já está tudo mais do que diagnosticado...
Está tudo diagnosticado. Toda a gente sabe o que é que as forças políticas pensam sobre todas aquelas matérias. Vi que uma das propostas do Governo tem a ver com acabar ou mitigar, não sei dizer com precisão a expressão, com os megaprocessos.

Todos nós estamos de acordo, só que isso já está na lei. Em 2021 fizemos as alterações às regras de separação e de conexão dos processos.

O MP já tem todos os instrumentos que lhe permitem fatiar os processos em vez de estar a fazer megaprocessos que são ingeríveis, que dão uma perceção muito má ao público.

Porque o público o que é que pensa? Estes megaprocessos, regra geral, têm a ver com pessoas com visibilidade e as pessoas pensam - lá estamos na perceção -, os poderosos safam-se, os bons advogados utilizam expedientes dilatórios, são recursos atrás de recursos e depois vamos a ver, e quando analisamos os processos que causam esta perceção e esta ideia, todos estes processos têm tramitação processual anormal. Por exemplo, o que acontece no processo Marquês não acontece em mais processo nenhum.

Estes prazos não estão no Código de Processo Penal. Ou seja, em milhares de processos que todos os dias tramitam nos DIAP e nos tribunais, não há nenhum como o Marquês. Portanto, não podemos legislar porque aconteceu uma excrescência que a ordem jurídica não soube resolver e que não soube de maneira nenhuma controlar.

Vimos isto agora a propósito da Operação Influencer, não se percebe porque é que desde o princípio não foram separados. Pode ser julgado um a um com muita mais eficácia e com uma dignificação da imagem da justiça completamente diferente.

Os novos presidentes do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (Paulo Lona) e da Associação de Juízes ( Nuno Matos) defendem uma revisão e até mesmo uma extinção desta fase de instrução, alegando que, em termos gerais, só servia para atrasar os processos. .. Não podia haver alguma alteração, nem que fosse cirúrgica, para mitigar essa perceção de que só serve para atrasar?
Se a instrução for feita como está prevista no Código de Processo Penal, não tem problema nenhum. Até porque é raríssimo na vida real, em 99% dos casos, requerer-se a abertura da instrução. Porque os advogados sabem que os juízes podem indeferir a produção de prova que já esteja no processo e essas decisões não são suscetíveis de recurso.

Portanto, não têm interesse em estar a abrir o jogo da defesa, em estar a mostrar o que é que vão fazer em julgamento. A instrução só se coloca nestes processos que têm visibilidade. E por isso é que temo que estes processos vão contaminar uma coisa que está bem e que funciona bem no dia a dia.

Agora, os magistrados não têm prazos perentórios, têm prazos meramente indicativos. Uma das propostas que está no programa do governo, que já vinha de trás, é que passem a cumprir os prazos. Claro que isso vai ter de levar depois à contingentação dos processos, porque para cumprir os prazos cada juiz e cada procurador tem de ter um número confortável de processos para os poder cumprir.

Não é estarem afundados em processos e ter de cumprir os prazos, porque senão depois prejudica-se a qualidade e isso não pode ser de maneira nenhuma. Porque depressa e bem, não há quem.

Nunca deixou de ser advogada, mesmo enquanto foi deputada. Tem uma perceção muito real daquilo que é o funcionamento da justiça dos tribunais. Houve um momento no Parlamento em que pediu um agendamento potestativo da Justiça e fez um retrato, diria, muito negativo da forma como o caos estava instalado nos tribunais. O que lhe queríamos perguntar era se mantém a frase, se resta aos cidadãos fazerem justiça pelas próprias mãos, face a este fracasso da Justiça?
Disse isso, mas não nesse contexto. Portanto, isso foi um agendamento potestativo em abril de 2023. Nessa minha intervenção corro as várias áreas da justiça, falo desde a questão da paralisação dos tribunais administrativos e fiscais, falo, inclusive, dos registos e notariados com conservatórias que nem sequer abriam, tínhamos o protesto todo dos oficiais de registo.

A senhora ministra da Justiça à data, a doutora Catarina Castro, nem sequer se fez representar, não esteve presente no Parlamento, o que acho que é muito mau, porque os ministros devem dar a cara e devem ir ali responder.

A cadeira ficou vazia, isso foi uma coisa que na altura achei que estava mal porque devia ter dado a cara. E estávamos em plena greve dos funcionários judiciais. Ou seja, naquela data já havia muitos julgamentos e diligências que tinham sido adiados. E aí a senhora ministra não revelou nenhuma aptidão para resolver o que quer que fosse.

Sou advogada há 32 anos e quando me perguntam o que precisam de fazer, porque não é lícito o recurso à ação direta, a pessoa não pode fazer justiça pelas suas próprias mãos, e eu digo que tem de se dar entrada, por exemplo, com o no processo tribunal administrativo e tributário, e perguntam-me se resolvo a situação rápido.

Mas depois tenho de dizer às pessoas que podem ter de esperar muito tempo e elas vão vendo o tempo passar e ficam desesperadas. Nos tribunais de família e menores a mesma coisa, nos criminais a mesma coisa.

O queixoso, a vítima, o assistente, desespera e arrepela os cabelos, porque são anos e anos e anos sem que a justiça seja feita, portanto, o retrato da justiça efetivamente é um retrato negro. E sendo a Justiça uma função de soberania do Estado e o Estado falha, o que é que resta ao cidadão? Não pode ir fazer justiça pelas suas próprias mãos, portanto, o que é que há? Denegação de justiça.

A pessoa fica cortada no seu direito de aceder à justiça. A imobilização que está a acontecer nos tribunais está a consubstanciar uma denegação de justiça. As pessoas ficam desesperadas porque não têm forma de resolver, porque são anos e anos e anos e custas judiciais altíssimas.

O acesso ao direito para quem não tem possibilidades, nenhumas, nenhumas, portanto, as regras do acesso ao direito têm de ser alteradas. Perdi a conta às vezes que disse isso, mas o regulamento das custas tem de ser revisto e tem de se baixar de forma comportável, adequado a um país como o nosso, que é um país pobre.

Basta ver o índice de pobreza. Portanto, esta justiça tem que acessível ao cidadão. O cidadão tem de poder aceder à justiça. Portanto, é nesta medida. Tive muita pena de traçar este quadro. Porque é que o tracei? Porque conheço os tribunais e sei que corresponde.

E desafio as pessoas a falar com todas as pessoas, ou com a esmagadora maioria dos cidadãos que recorreram à justiça, e essas pessoas relatam-lhes, mesmo que tenham obtido ganho de causa, ou seja, mesmo que tenham ganho a ação, mostram-se, a maioria das vezes, insatisfeitas.

A Justiça não é para servir as pessoas que lá trabalham, a Justiça é para servir as populações. É o acesso, é para fazer justiça, é para regular a paz social. A justiça existe para regular as tensões, para normatizar e para dar uma dimensão social à sociedade.

E não se pode perder este norte, isto para mim é absolutamente claro. E o Estado tem-se demitido do exercício das suas funções, porque está em gestão. Já nem falo dos edifícios nem nada, falo da falta de decisões atempadas na vida das pessoas, com grande repercussão na vida das pessoas.

Tem havido muitos casos recentes que cruzam política com justiça e com comunicação social. Já falámos aqui hoje que é um indivíduo é inocente até prova em contrário. Mas também podemos pensar que à luz atual é culpado mesmo que consiga provar a inocência, porque mesmo depois de absolvido acaba por ficar com uma aura em cima. Tivemos um caso agora recente de um primeiro-ministro que ainda não está resolvido. Temos outro na Madeira que envolve vários atores, seja na área da economia, seja no próprio Governo Regional. Já nos últimos dias com o novo Governo há alguns casos com o ministro das infraestruturas e também agora uma assessora do Governo. Estamos perante esta situação? Culpado mesmo com prova em contrário?
A pergunta que me coloca é extraordinariamente interessante, porque tenho dito muitas vezes que era importante haver uma reflexão, uma ponderação muito grande em termos de sociedade e em dos decisores sobre aquilo que se pretende efetivamente fazer.

O que é, pergunto, ou onde é que fica o princípio da presunção de inocência? Qual é o poder? O poder é o poder que o MP também tem para afastar pessoas de ocupar determinados cargos públicos. Não estou a dizer que o MP tenha sido essa a pretensão, mas a forma como está a ser entendido tem sido essa.

Basta haver, por exemplo, uma denúncia. Mas se temos uma denúncia anónima e a seguir perguntamos se fulano está a ser investigado e depois, se for replicado nos órgãos de comunicação social, essa pessoa fica com o estigma.

Houve casos, como Miguel Macedo ou Azeredo Lopes, que foram absolvidos, mas em termos de senso comum, foram absolvidos porque são poderosos, porque não se provou, ou porque não há fumo sem fogo. E a absolvição não tem a mesma visibilidade que têm os pelourinhos da praça pública e isso é uma coisa que me incomoda. Portanto, acho que tem de ser feita uma ponderação muito grande, a saber os princípios da ética republicana, os princípios da transparência, os princípios também da mulher de César, que também aqui conta.

É muito importante que tenhamos uma visão de seriedade e de escrutínio para o cidadão, mas temos de perceber se aquilo que está a acontecer é lícito. Ou seja, por exemplo, na Operação Influencer, um primeiro-ministro com uma maioria absoluta demitiu-se no âmbito de uma insurreição. Decorridos mais de cinco meses não foi sequer chamado, não obstante ter requerido no âmbito de leis processuais que também já o permitem. Ouvi no outro dia na televisão que ele gostaria e seria visto com muito bons olhos, até ir para a União Europeia, mas só se o processo estivesse resolvido até junho. E isto frustra-me muito.

Não pode haver poderes sem escrutínio. Essa prestação de contas tem de existir, portanto, temos de perceber o que é que está a acontecer, porque não se percebe. Repare, quando são dadas à estampa estas notícias, já para não falar na violação de segredo de Justiça, é suposto que a investigação esteja muito avançada e que esteja a ponto de se poder notificar a parte para se prestar a interrogatório.

E se houver fortes indícios ser constituído arguido e depois, porque é a última parte do inquérito, são vistas as provas todas e depois é constituído arguido se houver fortes indícios. Não se pode, do meu ponto de vista, andar aí a apregoar que A, B ou C é suspeito, é arguido e depois não temos consequências a não ser queimar o bom nome.

Há um tempo para a Justiça, a senhora procuradora-geral da República referiu isso, só que o tempo da Justiça não pode ser o tempo para a justiça. O tempo para a justiça é o tempo de destruição da vida dos cidadãos, isso não é justiça, isso é tudo menos justiça, isto é prepotência, é arrogância.

E não podemos aceitar, ou seja, tem de haver prestação de contas e as coisas têm de ser feitas de forma que o cidadão que está inocente veja rapidamente desfeitas e desvanecidas as suspeitas que sobre si impendem e que o cidadão que é culpado seja rapidamente submetido a julgamento.

Sempre, sem preterição das garantias de defesa para que possa depois ser feita a justiça. Até porque, repare, estas pessoas têm família à volta. Imagino, todos somos pessoas, todos temos família, imagino o que é que os filhos, os maridos, as mulheres, os pais, sentem ao ver o bom nome referido dessa maneira e muitas vezes empolado.

Como é que olha para o Parlamento atual e se está satisfeita com a maioria de direita e se conta ou não com aqueles 50 deputados do Chega para essa maioria de direita?
Olho com tristeza. E olho com tristeza porquê? Porque o PSD ganhou as eleições e fiquei felicíssima, obviamente, porque ao fim deste ciclo do PS no Governo entendo que não fizeram aquilo que se impunha, que tinham todas as condições para o fazer e que impõe-se virar a página.

É preciso ter esperança, é preciso ter esperança no futuro, portanto, acho que o PSD consubstancia essa esperança. Mas quando vi a margem, porque ficou sensivelmente 50 mil votos de diferença do PS, fico triste porque acho que com as atuais circunstâncias políticas que antecederam e que estiveram presentes na eleição das legislativas, era suposto que o PSD obtivesse um resultado muito mais robusto.

Além de ir em coligação, portanto, tinha aqui também os votos do CDS e elegeu dois deputados do CDS e, de resto, mantém os 78 iguais ao do PS. Acho que o PS apesar de ter perdido muitos, se calhar regressou mais ou menos ao seu volume normal, porque tinha tido uma maioria absoluta anormal por circunstâncias diferentes nas anteriores eleições, mas desta vez tendo um governo implodido por dentro, com um primeiro-ministro, mal ou bem - agora falamos outra vez da perceção pública - que se demitiu por casos e casinhos, portanto, um desgaste terrível que o governo teve. Perdi a conta às pessoas que saíram e entraram.

O Governo tinha todas as condições, tinha dinheiro, tinha o PRR, tinha maioria absoluta, tinha tudo para alavancar o país e nada fez e estas eleições decorrem exatamente nesta derrocada em que o cidadão se confrontou com o facto de o PS não ter feito nada e o PSD, infelizmente, não conseguiu capitalizar estes votos para si.

Vê-se numa situação em que está ali completamente trilhado no meio das várias forças políticas, em que por si só, sozinho, não vai a lado nenhum e, portanto, obriga a um jogo de cintura e a umas negociações muito contínuas, intensas e que não sei, enfim, vamos ver o futuro, o que é que vai acontecer e se vamos chegar a bom porto, porque me parece que se está uma situação política muito instável em termos do Parlamento. Portanto, não gosto, claramente, não gosto desta configuração do Parlamento.

E deve abrir as portas ao Chega?
Sou uma moderada, sou uma social-democrata, acredito na política personalista, humanista, na social-democracia. Discordo de tudo o que seja extremo, os extremos não gosto.

Acho que no equilíbrio, no bom senso, na sensatez, na moderação é que está o caminho e é essa a força que temos e ao Governo cabe conduzir um povo, conduzir uma nação, mesmo na forma de condução do povo, não é no exacerbar dos ódios, das desavenças, do apontar o que está mal de uma nação, não é no exacerbar de uma forma absolutamente exacerbada que se faz este caminho, não. E é perigoso, porque vemos o que é que está a acontecer lá fora com a extrema-direita.

Também a história nos diz o que é que aconteceu com a extrema-esquerda. Portanto, no centro, acho que na social-democracia, que é a minha família, é aí que procuro que as soluções sejam encontradas.

Surpreendeu-a as intervenções públicas recentes de Pedro Passos Coelho?
O doutor Pedro Passos Coelho, de resto como ele disse, tem todo o direito de expressar a sua opinião. Posso discordar das opiniões de uma pessoa e discordo de muitas, como muitos discordaram das minhas.

Portanto, acho que tem todo o direito de expressar a sua opinião e de falar, isto não há censura, quando muito bem entende. Portanto, a pergunta que me faz é no âmbito de um dever de lealdade para com o PSD. Ou seja, quando se pergunta se alguém diz determinadas coisas e num determinado momento político, isto tem a ver sobretudo com o partido que está no governo e se essas declarações e esse tempo político, esse timing, podem ter repercussões no exercício da governação que está em curso.

O doutor Passos Coelho expressou bem as discordâncias que tem relativamente à atual direção do PSD e ao Governo que está constituído e tem todo o direito de as fazer. Se me surpreendeu, não me surpreendeu, penso que vem muito na linha do que é a política do doutor Passos Coelho. 

Vem na linha ou nota uma evolução?
Nunca o tinha ouvido falar sobre estas questões da família e ele não escreveu nenhum texto. Presumo, quero presumir, que ele não subscreva de forma alguma o estatuto da mulher doméstica, não é?

Portanto, acho que não pode um social-democrata pôr em causa a igualdade entre os seres humanos Homem e mulher são seres humanos absolutamente iguais.

Tem sido uma luta que temos travado ao longo de séculos, no âmbito da qual as conquistas que foram sendo feitas têm custado sangue, têm sido muito difíceis. Sabendo o esforço que todas as mulheres fazem para trabalhar, porque ainda estão muito oneradas para gerir as casas, gerir os filhos, virem agora quase como aquele estatuto do Bolsonaro... Se a memória não me falha, tinham um Ministério do Lar, uma coisa absolutamente extraordinária, por inacreditável, por aberrante, para a mulher doméstica. É uma coisa que considero um retrocesso civilizacional enorme.

É evidente que as mulheres podem ficar em casa se assim quiserem, mas desaconselho vivamente que o façam. E agora aqui é a advogada a falar e vou dizer-lhe porquê. Perdi a conta aos divórcios que fiz em que as mulheres ficaram numa posição absolutamente secundária e menorizada porque não trabalhavam, ou seja, tinham estado a criar os filhos, cozinhavam, tratavam dos idosos.

Claro que isto da mulher em casa resolve um problema que é do Estado, que é a falta das creches e dos lares de idosos. A mulher trata. Trata das crianças e trata dos idosos, só que não trata dela própria. E quando o marido se quiser divorciar, não só o marido tem um problema grande, porque voltamos aos divórcios antes de 2008 que eram divórcios de faca na liga, a expressão é esta, porque eram terríveis, porque teria sempre de se manter um nível de vida.

Era mau, é mau para o homem e é muito mau para a mulher e é péssimo para os filhos. Portanto, isto não pode de maneira nenhuma acontecer. Ou seja, a mulher tem de ser absolutamente, tal como o homem, o ser humano tem de ser economicamente independente.

E pode-se dizer que ficam apenas uns anos em casa a tratar dos filhos e recebem um subsídio. Não é só essa questão, não se resolve com o subsídio. Porque há uma progressão na carreira, ou seja, a pessoa que está em casa depois acaba por ficar com um sacrifício muito grande.

Louvo e presto uma homenagem a todas as mulheres - a minha mãe esteve sempre em casa, nunca trabalhou fora de casa - que se sacrificaram, em prol da família. Mas o tempo mudou. O tempo já não é este de maneira nenhuma.

Por isso, penso que o doutor Pedro Passos Coelho não subscreverá o que disse, penso que foi o doutor Paulo Otero, que as mulheres tinham mais apetência para determinadas funções. Essa frase só me merece um sorriso sarcástico.

E perguntava-lhe se é isso que pretenderia para uma filha dele e se um dia mais tarde visse uma filha dependente economicamente de um marido, um marido que até se podia dar ao luxo de ter outras terceiras pessoas por fora, porque a mulher não pode sequer discordar disso.

Ou seja, a independência económica é absolutamente fundamental e as mulheres não podem nunca abdicar dela. 

Pretende continuar ativa na política e contribuir para o PSD? 
Claro, estarei sempre disponível. Primeiro para ter uma colaboração cívica e de cidadania, porque acho que é importante, não nos devemos demitir de nos pronunciarmos e sobretudo se formos chamados a pronunciarmos.

Acho que é um dever que temos para com a sociedade, participar na vida pública e isso devia ser muito imbuído nos jovens, desde a mais tenra infância, até com prevenção da corrupção. Saber o que é a vida pública e saber que a vida pública não é só entrar nas juventudes para depois virem até determinados lugares.

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