O Comboio da Liberdade faz 50 anos

O Comboio da Liberdade faz 50 anos

Hoje, a família Soares celebra a data: 28 de abril de 1974 - Mário Soares era o primeiro exilado político a chegar a Portugal após a Revolução. Em Santa Apolónia, esperava-o uma multidão. Em casa, familiares e amigos. Olinda Alves lembra-se de que, nessa noite, serviu ao jantar bife com batatas fritas e ovo estrelado.
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Era 28 de abril de 1974, um domingo. Por volta da hora de almoço, ao fim de 24 horas de viagem, o Sud-Express  entrava na estação ferroviária de Santa Apolónia, em Lisboa. O comboio trazia a bordo o primeiro exilado político a chegar ao país após o fim da ditadura, derrubada apenas três dias antes pelo Movimento das Forças Armadas.

Mário Soares estava exilado desde 1970, em Paris, e na oposição ativa desde meados dos Anos 40. Preso por diversas vezes, foi deportado em 1968, por ordem de Salazar, para São Tomé. Com apenas 49 anos de idade em 1974, contava já 32 de oposição ao regime.

Com Mário Soares veio Maria de Jesus Barroso, sua mulher. Também o acompanhavam Francisco Ramos da Costa e Manuel Tito de Morais, camaradas de exílio e fundadores do Partido Socialista havia pouco mais de um ano (19 de abril de 1973) em Bad-Munstereifel, na República Federal da Alemanha.

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À espera do secretário-geral do PS estava uma multidão de anónimos empunhando cartazes. Figuras da oposição ao regime: Hermínio da Palma Inácio, preso político recentemente libertado, a viúva de Humberto Delgado, o candidato da oposição à Presidência da República durante o regime deposto, assassinado pela PIDE; os advogados Vasco da Gama Fernandes, Francisco Sousa Tavares e Salgado Zenha. Entre muitos outros.

Emersas no mar de gente, três presenças especiais, um trio de jovens de 24, 23 e 25 anos, respetivamente: João e Isabel, filhos de Mário Soares e Maria Barroso e o sobrinho Eduardo Barroso, aguardando com emoção os primeiros abraços em liberdade.

É 28 de abril de 2024. 50 anos depois, domingo de novo. João, de 74 anos, Isabel, de 73, e Eduardo, de 75, recordam aquele primeiro dia com um almoço, junto à Estação de Santa Apolónia. “É um almoço íntimo: eu, a minha irmã, o meu primo e as nossas famílias, para celebrar a chegada dos meus pais a Portugal há meio século”, diz João Soares.

Comboio atrasado

No dia 25 de Abril, Soares estava na Alemanha, em Bona, a convite do SPD, para uma audiência com o chanceler Willy Brandt. Avisado por telefone do levantamento militar, regressou de imediato a Paris, daí partindo para Lisboa, logo no dia 27. “A partir do 25 de Abril, fomos falando várias vezes ao telefone”, recorda o filho. Não tantas quantas desejariam: “Naquela altura não era fácil. Era preciso pedir ligação à telefonista”, recorda.

O Comboio da Liberdade - nome por que ficou conhecido - não cumpriu a tabela. Entre Vilar Formoso e Lisboa foram várias as paragens, motivadas pelo entusiasmo popular que o acompanhava. A cada paragem, Soares saía e juntava-se à população, “que festejava a liberdade e o seu regresso a Portugal”, diz Isabel Soares.

Em Santa Apolónia, a polícia militar tentava suster a população. Bandeiras portuguesas, cartazes - “Paz, Pão. Liberdade”, “Abril em Portugal”, “Igualdade e liberdade”. Um dos presentes erguia um cravo e Escritos Políticos, livro de Soares editado em 1969 e apreendido pela PIDE. Gritava-se “socialismo”. Cantava-se o hino nacional.

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Da varanda do 1.º andar da estação, Soares acenava para um largo a abarrotar. O gesto largo e generoso, o V de vitória. No parapeito, equilibravam-se fotógrafos. “Este é um dia memorável. As minhas primeiras palavras são para aqueles que ainda aqui não se encontram, e que ainda não têm a felicidade de estar aqui a viver este momento emocionante”, gritava, de megafone na mão.

“Quero dizer uma palavra para as Forças Armadas. Restituíram a voz e a alegria ao povo português, facto histórico que não podemos esquecer. Mas é agora ao povo, aos trabalhadores, que compete a tarefa principal: organizar a democracia e pôr fim à Guerra Colonial”. Ideia repetida, pouco depois, a jornalistas portugueses e franceses: “Vamos ajudar a Junta (de Salvação Nacional) no que pudermos, no restabelecimento das liberdades e para pôr um rápido termo à Guerra Colonial.”

De Santa Apolónia, Mário Soares seguiu de imediato para o Palácio da Cova da Moura, quartel-general da Junta de Salvação Nacional. Esperava-o o General Spínola.

A família chegou a custo ao Renault 16 bordeaux. João Soares ia ao volante. No banco da frente, Isabel e Eduardo. Atrás sentaram-se Maria de Jesus Barroso e Mário Soares. Com o vidro da janela aberto, Mário ia acenando à população. Na Avenida Infante Santo gritava-se “vitória”.

A reunião com Spínola foi breve. “Quinze, vinte minutos”, conta Isabel.
Mário Soares deixou o palácio quando a multidão declamava a palavra de ordem: “O povo unido jamais será vencido.” A família seguiria para a casa do Campo Grande.

Uma festa muito bonita

Isabel Soares recorda um dia “lisboeta”: “Estava quente, havia sol e uma luz fantástica.” Um dia “extraordinário”.

A tarde ia a meio quando chegaram ao Campo Grande. À família logo se juntaram os amigos. “Um rodopio de telefonemas e de visitas”, em festa espontânea. “Estavam todos os grandes amigos dos meus pais. Creio que os primeiros a chegar foram o José Manuel Galvão Teles e a mulher, que eram nossos vizinhos”, recorda Isabel.

Olinda Alves trabalhava em casa do casal Soares. “Para os que gostavam muito daquela família, foi uma festa”, diz. Começou por ser funcionária do Colégio Moderno. Quando uma das empregadas domésticas saiu, foi ajudar a família. “Ia para ficar pouco tempo, acabei por ficar para sempre.” Nascida em 1941, em Garganta, São Martinho de Anta, a transmontana recorda “os meninos”. “Quando fui para lá, eram crianças. Brinquei muito com eles.”
Tem saudades desses anos. “Muitas, imensas”. Do dia a dia na casa do Campo Grande, das temporadas em Nafarros, Sintra. “Estive com a família até partirem. Hoje tenho os filhos, que me tratam muito bem. Estiveram sempre comigo.” E Olinda com eles, “em todos os momentos”. “Foi uma família muito sacrificada pela PIDE.” 

Olinda testemunhou a felicidade do regresso: “Recordo-me de tudo.” O que serviu ao jantar? “Gostavam muito da minha comida. Dos meus pastéis de bacalhau com arroz de feijão. Naquele dia, fiz um prato que o pai e os filhos adoravam: bifes com batatas fritas e ovo estrelado.” Em liberdade.

alexandra.t.teles@dn.pt

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