Nova lei para pandemias já suscita dúvidas. Marcelo vai recorrer ao TC
A futura lei de emergência sanitária já tem passagem assegurada pelo Tribunal Constitucional (TC). A garantia foi deixada pelo Presidente da República, que ontem afirmou que enviará o texto para análise dos juízes do Palácio Ratton, mesmo que o diploma não lhe suscite qualquer questão de constitucionalidade. Uma forma de evitar futuras dúvidas sobre a conformidade da lei à Constituição. Em causa está o novo quadro jurídico aplicável em contexto de pandemia, regulando a aplicação de medidas como o isolamento e a quarentena dos cidadãos, a aplicação de cercas sanitárias, a proibição de ajuntamentos no espaço público ou o recolher obrigatório.
E as dúvidas sobre o texto - apresentado por uma comissão técnica, nomeada pelo Governo há cerca de um ano - não tardaram. No caso da Ordem dos Advogados (OA), são mesmo uma certeza: o texto é contrário à Constituição. "Uma emergência sanitária nunca pode ser declarada pelo Governo, ainda mais em casos tão graves como bioterrorismo, epidemia ou pandemia e muito menos por resolução do Conselho de Ministros", argumenta a instituição liderada por Luís Menezes Leitão, numa reação ao texto do anteprojeto, pedida pelo DN.
Para a OA mantém-se o mesmo problema que já se colocou com as restrições impostas ao abrigo da Lei de Bases da Proteção Civil e da figura legal da "situação de calamidade" - a "Constituição proíbe os órgãos de soberania de, conjunta ou separadamente, suspenderem o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência". Ou seja, para a Ordem a limitação destes direitos pura e simplesmente não é possível sem que seja acionado o estado de emergência.
A questão também é apontada pelo constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia. "Esta lei só será viável se tiver cobertura constitucional na criação de um estado de emergência sanitária a nível constitucional, porventura mais simplificado, que não seja tão amplo quanto o estado de emergência. Mas isso tem de ser na Constituição, não pode ser uma lei ordinária a fazê-lo", argumenta. Para Jorge Bacelar Gouveia - que faz notar que o grupo de trabalho que redigiu o anteprojeto não integrou nenhum especialista em Direito Constitucional - o texto tornado público na última quarta-feira "não foi um trabalho bem conseguido", resultando numa proposta "confusa e com artigos inconstitucionais". Exemplo disso é a possibilidade de recurso para os tribunais sem a mediação de um advogado, uma situação que diz ser contrária à Lei Fundamental.
Outro ponto que levanta muitas dúvidas é o da participação da Assembleia da República no processo de decisão. Segundo o texto cabe ao Governo declarar, em Conselho de Ministros, uma situação de "emergência de saúde pública"; num segundo momento cabe também ao Executivo a declaração da "fase crítica da emergência", através de decreto (que tem de passar pelo crivo do Presidente da República); já a prorrogação desta fase crítica caberá aos deputados. "Nunca tinha visto na minha vida de jurista, e já lá vão 35 anos, que o Governo começasse com uma coisa que depois é continuada pelo Parlamento", diz Bacelar Gouveia, defendendo que este cenário é "uma menorização do Parlamento, que só é chamado para a prorrogação". Também a OA sustenta que a intervenção do Parlamento apenas numa terceira fase é um cenário "manifestamente contrário" às competências da Assembleia da República, dado estar-se perante a limitação de Direitos, Liberdades e Garantias.
E é também neste campo que a imposição de situações de isolamento e quarentena levanta muitas dúvidas quer a Bacelar Gouveia, quer à OA, que qualifica como "inconstitucional" o artigo do anteprojeto que prevê que uma "autoridade de saúde decrete medidas de isolamento e quarentena durante catorze dias, sem qualquer controlo judicial, apenas com base num risco de propagação da doença, a cidadãos que podem estar perfeitamente saudáveis".
Ontem, Marcelo Rebelo de Sousa congratulou-se com a decisão do Governo de apresentar o anteprojeto, afirmando-se "muito contente com esse anúncio".
Considerando que agora "é ocasião para o Governo fazer aquilo que fez, que é ouvir uma série de entidades e avançar com essa lei", o Presidente da República acrescentou que "depois haverá uma proposta de lei, irá para o parlamento e será votada". "Eu desde já vos digo o que é que tenciono fazer com a lei: quando chegar às minhas mãos, apreciá-la e mandar para o Tribunal Constitucional em fiscalização preventiva, por uma razão preventiva", adiantou, acrescentando que "mais vale prevenir do que remediar".
O chefe de Estado especificou que, mesmo que não venha a ter dúvidas de inconstitucionalidade, tenciona ainda assim enviar o diploma para análise dos juízes do Palácio Ratton: "Temo que depois comece a haver em vários tribunais recursos ou impugnações de vários cidadãos".
A comissão técnica que elaborou o anteprojeto - que irá ainda passar por todo o processo legislativo parlamentar - foi presidida pelo juiz conselheiro jubilado António Henriques Gaspar, sendo também constituída pelo procurador-geral-adjunto João Possante, em representação da Procuradora-Geral da República, Ravi Afonso Pereira, em representação da provedora de Justiça, e Alexandre Abrantes, professor catedrático da Escola Nacional de Saúde Pública.
A comissão foi constituída por iniciativa do primeiro-ministro, António Costa, que em junho do ano passado defendeu que era o momento de iniciar "o processo de revisão do quadro jurídico de que o país deve dispor para enfrentar, com plena segurança jurídica, circunstâncias semelhantes [às que enfrentou na pandemia de covid-19] que num indesejado futuro possam ocorrer". "Tratando-se de uma legislação estruturante, o processo legislativo deve ser precedido de aprofundado estudo por uma comissão da mais elevada competência técnica, nas áreas jurídica e de saúde pública, e com o envolvimento da Provedoria de Justiça e da Procuradoria-Geral da República, no pleno exercício das suas competências de defesa da legalidade democrática e dos direitos dos cidadãos", referiu então o líder do Executivo.